Liberação da pesca de sardinha, permissão para atracagem de grandes cruzeiros, instalação de recifes artificiais, federalização do arquipélago. Esses são os planos que o governo do presidente Jair Bolsonaro já sinalizou ter para Fernando de Noronha – criticados por especialistas por ameaçarem o arquipélago, considerado um santuário para muitas espécies.
O primeiro dos planos já está sendo colocado em prática. No fim de outubro, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), Fernando Lorencini, em conjunto com um representante da cooperativa de pescadores do arquipélago, assinaram termo de compromisso para permitir a pesca de sardinha na área do Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha.
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O termo libera a pesca da espécie a pescadores artesanais, inclusive com fins comerciais, em duas áreas do Parque Marinho, por um período de três anos, sempre entre 1° de novembro e 30 de abril. A atividade poderá ser realizada com rede ou tarrafa, em embarcações com até nove metros de comprimento. A quantidade de peixes está limitada a três quilos para cada pescador que estiver no barco e cinco quilos àqueles que realizarem a pesca direto na praia.
Em um vídeo publicado no Facebook, o secretário de Aquicultura e Pesca do Ministério da Agricultura, Jorge Seif, comemorou a liberação e mostrou imagens da pesca. “Estamos aqui em alto mar, Fernando de Noronha… Nós estamos vendo a pesca artesanal acontecendo graças à sardinha que foi liberada pelo ICMBio, MMA [Ministério do Meio Ambiente] e Secretaria Nacional de Aquicultura e Pesca”, disse.
Contradição no ICMBio
Apesar de o presidente do ICMBio ter assinado o documento, o termo contraria uma nota técnica do próprio órgão a respeito da pesca de sardinha em Noronha, de 2016.
Na ocasião, técnicos do instituto, responsável pela administração do parque, manifestaram-se contra a liberação da atividade, argumentando que “não há motivação nos contextos de conservação da biodiversidade, econômico ou histórico de tradicionalidade que justifiquem a abertura da atividade pesqueira dentro dos limites do Parnamar [Parque Nacional Marinho] de Fernando de Noronha”. Afirmaram, ainda, que “abrir exceção para a pesca da sardinha pode implicar em precedente para maior pressão para liberação de outras pescarias”.
Questionado pela reportagem, o ICMBio respondeu, por meio de nota, que “há estudo recente do órgão respaldando a pesca artesanal, no volume e forma aprovados, e que comprova que não há qualquer dano ao meio ambiente”. O Ministério do Meio Ambiente, por sua vez, não respondeu os questionamentos até o fechamento deste texto.
“Desmonte das políticas de proteção ambiental”
Doutor em Oceanografia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade de Pernambuco (UPE), Múcio Banja explica que a sardinha é uma das espécies-chave em termos de equilíbrio e manutenção da alimentação de animais como tubarões e golfinhos, que habitam a região de Fernando de Noronha – a Baía dos Golfinhos, inclusive, é o ponto de observação mais consistente do mundo para os golfinhos-rotadores.
“De repente uma determinação do governo federal aponta para a liberação da pesca, inclusive em áreas do parque que eram preservadas permanentemente para a pesca voltada ao uso comercial. E falar em pesca comercial assusta muito”, afirma.
“Liberar a pesca de uma única espécie, achando que a diminuição de apenas uma espécie em um sistema que está completamente interligado poderia não trazer problemas, é um erro fatal”, prossegue o especialista, que reforça que os danos causados neste período de liberação só poderão ser mensurados após 30 de abril de 2021.
Para reverter a liberação da pesca de sardinha no Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, o presidente da Comissão de Meio Ambiente (CMA) no Senado, Fabiano Contarato (Rede-ES), ajuizou, na Justiça Federal do Distrito Federal, na segunda semana de novembro, ação popular pedindo a nulidade do termo de compromisso. O senador sustenta que a licença descumpre leis ambientais e se soma à desarticulação das medidas de preservação dos ecossistemas que vem sendo promovida pelo Ministério do Meio Ambiente.
“O governo federal, com esse termo de compromisso, ampliou o desmonte das políticas de proteção e preservação ambiental. Os atos são passíveis de anulação na forma da legislação ambiental vigente, por serem lesivos ao meio ambiente e pelos evidentes indícios de ilegalidade e desvio de finalidade”, comenta o parlamentar.
A ação pontua que a liberação representa “claro retrocesso no grau de proteção ambiental conferido à região, sem qualquer fundamento legal que o autorize. A liberação da pesca na região representa a supressão da proteção ambiental e a violação de direitos das populações que residem na localidade, bem como risco iminente ao equilíbrio ecológico do Parque”.
Composto por 21 ilhas, Fernando de Noronha é dividido entre Parque Nacional Marinho, e Área de Proteção Ambiental (APA) e foi reconhecido, em 2001, como Patrimônio Natural Mundial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Cruzeiros internacionais
Em março, um dos filhos do presidente, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), prometeu que o governo iria colocar Fernando de Noronha de volta na rota dos cruzeiros internacionais.
Há cerca de sete anos Noronha não recebe cruzeiros de forma regular. As embarcações que tinham autorização para atracar na ilha tinham capacidade que variava de 150 a 200 passageiros. Agora, contudo, o governo esperar liberar embarcações com 600 passageiros ou mais.
Essa liberação, diz Banja, pressionaria ainda mais a capacidade de suporte de pessoas do arquipélago. “Hoje, só de moradores permanentes, temos mais de 6 mil indivíduos na ilha, fora o fluxo elevado de turistas. Embora não pareça, temos graves problemas sociais. Há pessoas com condições de moradia muito precárias. A chegada de mais turistas pelo mar, além do acesso pela via aérea, significa mais pessoas utilizando os recursos da ilha – e praticamente nenhum deles é produzido no arquipélago”, afirma.
Recifes artificiais e federalização
Também em março, o presidente da Agência Brasileira de Promoção Internacional do Turismo (Embratur), Gilson Machado, disse anunciou os planos de instalar pontos de recifes artificiais em Fernando de Noronha, com naufrágio de embarcações para “agregar ao turismo” de mergulho no arquipélago.
Recifes artificiais podem consistir em embarcações ou outras estruturas, como blocos de concreto. Juliano Dobis, diretor executivo da Associação MarBrasil e especialista em Gestão dos Recursos Naturais, afirma que, além da criação de novos pontos atrativos para atividade do mergulho, em alguns casos esses recifes têm como objetivo a conservação de biodiversidade.
“O fato de terem escolhido Fernando de Noronha para instalar recifes artificiais é uma ação completamente desnecessária e sem sentido, uma vez que naturalmente há uma diversidade enorme de ambientes subaquáticos que já favorecem a ocorrência e proteção da rica biodiversidade marinha existente”, afirma.
Outra intenção manifestada recentemente por Bolsonaro, durante uma live, é o de federalizar Fernando de Noronha. A administração do arquipélago é feita atualmente pela Agência Estadual de Meio Ambiente e pelo ICMBio e, conforme previsão da Constituição Federal de 1988, Fernando de Noronha faz parte do estado de Pernambuco.
“Amazônia, Pantanal e agora Fernando de Noronha”
O senador Humberto Costa (PT-PE) tem demonstrado preocupação com as ações planejadas pelo governo federal para o arquipélago. Ele afirma que o estado de Pernambuco não permitirá que o presidente “ameace Fernando de Noronha como está fazendo com a Amazônia e com o Pantanal“.
“O governo federal tem procurado produzir mudanças nas medidas, leis e até mesmo mecanismos infralegais que garantam a proteção do meio ambiente, da fauna e da flora brasileiras. Não tenho dúvidas de que o governo quer dar algum tipo de destinação ao arquipélago contrária à preservação ambiental”, diz Costa.
Pelo fato de ser a Constituição Federal que prevê que Noronha pertence ao estado de Pernambuco (artigo 15 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), Costa lembra que seria necessária uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para reverter a condição de distrito estadual do arquipélago. Para ser aprovada, a PEC precisaria da aprovação de três quintos do número total de deputados federais e senadores.
Fonte: Deutsche Welle