Por que nosso corpo tem mais dificuldade para combater infecções respiratórias no frio?

A disparada de casos de covid-19 no inverno nos Estados Unidos se deve a mais causas do que apenas o maior tempo em ambientes fechados.

A mudança das estações afeta as estruturas físicas dos vírus e as barreiras naturais do nosso corpo contra doenças. No inverno, o ar frio e seco e a falta de luz solar prejudicam nossa resistência contra infecções respiratórias, como as do novo coronavírus.
FOTO DE MUSTAFA OZTURK, ANADOLU AGENCY VIA GETTY IMAGES

“As doenças que aumentam no inverno devem, no verão, esmorecer, mas as que, no verão aumentam, devem, no inverno, esmorecer”, escreveu o pai da medicina, médico e filósofo grego Hipócrates, em 400 a.C.

Esse relato é considerado o primeiro estudo registrado da sazonalidade de uma doença, no caso, a gripe. Mas a razão da periodicidade de algumas doenças foi um mistério que intrigou os cientistas até a era moderna.

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Ainda não está completamente desvendado, mas agora os pesquisadores entendem que, com o decorrer das estações, os micróbios, seus hospedeiros e os ambientes habitados por eles mudam concomitantemente em interações complexas que deixam as pessoas mais ou menos propensas a contrair enfermidades.

“Se for perguntado a cinco epidemiologistas da gripe quais são os fatores relativos que contribuem para a doença, é provável que cada um dê uma resposta diferente”, brinca Dylan Morris, pós-doutorando da Universidade da Califórnia em Los Angeles que estuda a ecologia e a evolução dos vírus.

Dito isso, os cientistas descobriram como a mudança das estações afeta não apenas as estruturas físicas dos vírus, como também as barreiras naturais do corpo humano contra doenças. Especialmente no inverno, o ar frio e seco e a falta de luz solar prejudicam nossa resistência contra infecções respiratórias como as da gripe ou do coronavírus SARS-CoV-2.

Proliferação do novo coronavírus durante o inverno

Com base em experiências anteriores com gripes e resfriados sazonais, especialistas em saúde pública têm alertado sobre um possível aumento de casos do novo coronavírus no inverno, já que o clima frio obriga as pessoas a se manter em ambientes fechados, que são propícios à transmissão da doença pelo ar. Infelizmente, essa previsão se confirmou quando os casos, internações hospitalares e mortes nos Estados Unidos atingiram recordes históricos nas últimas semanas, sem nenhum sinal de trégua.

Morris e seus colegas divulgaram recentemente um estudo ainda não publicado que examina um dos fatores que poderiam ter ocasionado esse aumento: como a estabilidade do coronavírus muda em função da temperatura e da umidade do ar.

Eles constataram que temperaturas mais baixas e umidades extremas — tanto altas quanto baixas — mantêm o vírus estável e contagioso por mais tempo. Temperaturas mais baixas desaceleram reações químicas, como as que causam a degradação dos vírus, o que significa que o novo coronavírus pode flutuar ileso em gotículas respiratórias por mais tempo.

A baixa umidade reduz o tamanho das gotículas devido à sua evaporação, o que facilita a colisão entre o vírus e outras substâncias químicas na gotícula e, assim, provoca a inativação do vírus — mas apenas até certo ponto. Se as gotículas ficarem pequenas demais, os sais naturalmente existentes nos fluidos expelidos se cristalizam e aprisionam o vírus, preservando-o até que desperte quando a gotícula for dissolvida nas vias aéreas de um novo hospedeiro.

Infelizmente, a baixa temperatura e umidade são justamente a combinação encontrada nos meses de inverno. Outras variáveis, como pessoas em ambientes fechados sem receber luz solar suficiente, também não parecem muito favoráveis.

“Todos os fatores apontam para a mesma direção, há vários motivos para que vírus respiratórios sejam um desafio maior no inverno”, explica Morris.

Essas condições de inverno também podem afetar a outra metade da equação da infecção: como os corpos são infectados.

Aquele ar revigorante de inverno

Respirar o ar mais frio e seco chega a modificar a forma de funcionamento do sistema imunológico, afirma Akiko Iwasaki, imunologista da Universidade de Yale e pesquisadora do Instituto Médico Howard Hughes.

Em um artigo de 2015, Iwasaki e seus colegas demonstraram que as células que revestem as vias aéreas de camundongos produziram menos moléculas denominadas interferons quando mantidos sob um frio maior. Os interferons são uma classe de proteínas que indicam a presença de vírus e avisam as células do sistema imunológico que precisam ir a um determinado local para, com sorte, interromper o processo.

“Desde a publicação desse estudo, digo aos meus filhos para usarem um cachecol em volta do nariz — e, nos dias de hoje, obviamente, máscaras — para manter a temperatura mais quente no nariz”, afirma Iwasaki.

Mais recentemente, Iwasaki e sua equipe concluíram que a baixa umidade também pode enfraquecer a primeira linha de defesa aderente do corpo: o muco. As vias respiratórias são revestidas por uma substância pegajosa e, abaixo dela, por cílios, minúsculas pás semelhantes a dedos usadas em todo o reino animal para a movimentação. Esses dois componentes atuam em coordenação como uma correia transportadora: as substâncias viscosas se aderem ao muco, que é devolvido ao nariz e à boca pela agitação dos cílios. Alguém precisa de um lenço?

Esse processo é denominado de depuração mucociliar, e o ar frio e seco não o favorece. Como a baixa umidade desidrata as camadas de muco em nosso rosto e garganta, ela interrompe a movimentação dos cílios, dificultando a expulsão dos invasores pelo corpo.

“Esse processo ocorre ao inalar ar seco e, em seguida, combinado com a baixa temperatura do ar, há uma sobrecarga na resposta imune do hospedeiro, prejudicando o combate das infecções virais”, esclarece Iwasaki.

Iwasaki recomenda comprar um umidificador e manter sua casa com umidade entre 40% e 60%. “Dessa forma, reforçamos nossa resposta imune aos patógenos e, além disso, com o ar úmido, as partículas que contêm vírus acumulam água. Em vez de ficar suspensas, caem no chão”, explica ela.

Deleite solar

Manter-se o dia todo em ambientes fechados por causa da pandemia traz outra desvantagem do inverno: a redução da vitamina D. Você pode estar familiarizado com a vitamina D por sua constante indicação nas embalagens de leite. Mas, além de fortificar os ossos, a vitamina D desempenha um papel importante na modulação de nossas respostas imunes, afetando ao menos 200 vias metabólicas envolvidas nessas defesas essenciais, afirma Annelise Barron, bioengenheira da Universidade de Stanford que desenvolve versões sintéticas de moléculas naturais.

Seu interesse, em especial, é replicar o peptídeo (uma pequena proteína) denominado LL-37, uma potente molécula antiviral, antibacteriana e antifúngica naturalmente existente em humanos. O motivo desse interesse se deve ao fato de que os primatas são o único subgrupo de mamíferos que dependem da capacidade do corpo de absorver a luz solar e produzir vitamina D para produzir esse peptídeo antimicrobiano.

Nossa pele produz vitamina D por meio da radiação ultravioleta B do sol para decompor um dos anéis de carbono de um precursor químico do colesterol. Embora alimentos como peixes gordurosos ou leite fortificado possam fornecer parte de nossa vitamina D, a luz solar potencializa nossos níveis — e é esse o problema para quem vive longe do Equador.

“Em todo o mundo, durante os meses mais ensolarados, cerca de metade das pessoas apresenta deficiência de vitamina D”, afirma Barron. “No auge do inverno, esse percentual de deficiência de vitamina D passa a ser, em média, cerca de 80%.”

Níveis adequados de vitamina D estão associados a riscos mais baixos de doenças inflamatórias como diabetes tipo 1 e esclerose múltipla, bem como menor incidência de infecções respiratórias agudas. Embora Barron afirme que não se conhecem todos os impactos da vitamina D sobre a saúde, pesquisas vêm demonstrando continuamente deficiências de vitamina D nas populações dos Estados Unidos que vivem acima de 35 graus de latitude, uma área que inclui cidades tão ao sul quanto Las Vegas.

Especialmente durante a pandemia de covid-19, as pessoas têm ficado muito tempo dentro de casa — uma boa medida para conter a transmissão, mas ruim para a exposição à luz solar tão necessária para a produção de vitamina D. Algumas pesquisas também estão começando a demonstrar que muitos pacientes com a forma grave de covid-19 apresentam deficiência de vitamina D. Por exemplo, um estudo publicado no fim de novembro constatou que pacientes com covid-19 e deficiência de vitamina D tiveram uma taxa de mortalidade quase quatro vezes superior a daqueles com níveis normais de vitamina D no estudo. Essa causalidade ainda precisa ser mais investigada, pois os primeiros estudos sobre a suplementação de vitamina D para o tratamento de covid-19 apresentaram resultados positivos e neutros.

A pele mais escura às vezes pode restringir a produção de vitamina D, que foi apontado como possível explicação genética para o maior impacto da covid-19 em norte-americanos afrodescendentes e outras comunidades com tonalidade de pele mais morena. No entanto uma produção menos eficiente nem sempre se traduz em níveis menores de vitamina D em pessoas com pele escura em relação a comunidades brancas porque outras moléculas neutralizadoras da vitamina D também estão presentes em diferentes concentrações entre as populações. Além disso, numerosos fatores determinantes sociais sobre a saúde parecem desempenhar um papel mais considerável na sobrevivência de pacientes com covid-19 em comunidades minoritárias.

Ainda assim, tomar suplementos de vitamina D pode ajudar a aumentar a expressão das defesas naturais do organismo, afirma Barron, indicando um estudo recente que demonstrou que a suplementação melhorou a atividade de LL-37 durante o inverno. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas dos Estados Unidos, afirmou que toma um suplemento diário de vitamina D para estimular o sistema imunológico.

Barron recomenda duas mil unidades internacionais — a medida padrão das substâncias — como suplementação diária de vitamina D. É mais do que a recomendação dos Institutos Nacionais de Saúde entre 400 e 800 unidades internacionais, mas no limite superior da recomendação da Sociedade de Endocrinologia e muito aquém da dose diária de quatro mil unidades internacionais em que a vitamina D se torna tóxica a adultos.

O longo alcance das estações

A produção de vitamina D não é a única função corporal afetada pela sazonalidade da luz solar, afirma Micaela Martinez, ecologista de doenças infecciosas da Universidade de Colúmbia, que estuda ritmos biológicos e doenças sazonais.

Alguns pesquisadores já estão propondo estudar como a interrupção do sono afeta a vulnerabilidade de profissionais de saúde ao coronavírus e que hora do dia é melhor para a administração de dexametasona, medicação para pacientes com a forma grave de covid-19.

“Praticamente todos os aspectos do corpo humano — metabolismo, hormônios, imunidade — são alterados em função do ciclo diurno-noturno”, afirma ela.

Algumas pesquisas preliminares de cronobiologia com enfoque em doenças foram conduzidas sobre o ciclo diurno-noturno e a melatonina. E um estudo publicado em 2015 na revista científica Nature constatou uma sazonalidade na expressão de cerca de um quarto dos genes humanos, embora o grupo não tenha demonstrado como ou se essa variação na expressão gênica afetaria a resistência do sistema imunológico contra invasores.

“Não significa uma quantidade maior de infecções no inverno e menor no verão. Longe disso, significa que há uma estação ideal para cada doença infecciosa”, esclarece Martinez, cujo laboratório atualmente estuda os efeitos das mudanças sazonais sobre a resistência do sistema imunológico a diferentes patógenos. Historicamente, epidemias de sarampo se proliferaram na primavera e a poliomielite foi mais intensa no verão, afirma ela.

Qualquer que seja a estação do ano, Martinez está preocupada com o fato de que as pessoas não estão recebendo luz solar suficiente para ajudar a manter o equilíbrio funcional de seus corpos, já que mais pessoas passam seus dias dentro de casa. Em um estudo ainda não publicado divulgado em outubro, a equipe dela demonstrou como os participantes do estudo equipados com sensores de luz na cidade de Nova York tiveram pouca exposição à luz natural ao longo do ano e pouca variabilidade entre as estações.

“Eliminamos a maioria das mudanças sazonais da luminosidade solar só por ficar tempo demais em ambientes fechados”, diz Martinez.

Ela recomenda a exposição à luz solar pelas manhãs para ajudar na transição para o modo diurno e regular as funções vitais, além de, possivelmente, manter o corpo preparado para combater patógenos respiratórios como o SARS-CoV-2.

Fonte: National Geographic Brasil