No fundo do Oceano Pacífico, a centenas de quilômetros da terra, há algumas marcas curiosas em seu leito que nenhum animal poderia ter feito. Algumas parecem estreitos canais esculpidos no lodo claro. Outras se assemelham a marcas de garras, escavadas nos ecossistemas das profundezas marinhas por um monstro subaquático.
A humanidade deixou muitas marcas na superfície da Terra, mas esses traços de longa data no fundo do mar permanecem praticamente invisíveis. Ocasionalmente, eles são iluminados pelos refletores de veículos submersíveis operados remotamente, mas logo em seguida voltam à escuridão. Estão lá há décadas. Assim como as pegadas e rastros que os astronautas deixaram na Lua, ainda são visíveis agora, não há nada para apagá-los.
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A trilha que aparece na imagem do topo deste artigo tinha 37 anos quando foi fotografada há alguns anos, enquanto as marcas abaixo datam de 1989.
Essas marcas, que remontam às décadas de 1970 e 1980, são as primeiras tentativas dos ensaios de mineração em alto mar, deixadas para trás por navios equipados com dragas e arados, que partiram há muito tempo.
Recentemente, cientistas voltaram com câmeras e sondas para ver o que aconteceu com os ecossistemas locais — e o que eles encontraram são cicatrizes que nunca foram totalmente curadas.
Logo, haverá muito mais trilhas como essas esculpidas em todas as planícies abissais do oceano, uma das últimas áreas selvagens intocadas do planeta. O que as futuras gerações podem fazer com elas, e o que vão dizer sobre a busca da humanidade por recursos naturais no início do século 21?
Para entender por que essas marcas estão lá — e por que são importantes — precisamos mergulhar em um mar pré-histórico.
Um dia, um tubarão perdeu um dente, que afundou centenas de metros até o leito do oceano. Gradualmente, conforme a precipitação de metais a partir da água do mar se acumula no sedimento, o dente é revestido de minerais. E assim começa um dos fenômenos geológicos mais lentos da Terra: o crescimento de um nódulo polimetálico.
Nem todos começam com um dente — outros contêm fragmentos de conchas, de ossos ou nada — mas o ritmo lento de crescimento é sempre o mesmo. Eles levam milhões de anos para crescer apenas alguns centímetros. Mas com o tempo, se tornaram tão abundantes que cobrem grandes áreas da planície abissal do oceano.
Os nódulos foram descobertos durante uma viagem do HMS Challenger, navio da Marinha Real Britânica, em 1873. Quando trouxeram os depósitos minerais à superfície, os marinheiros os teriam agarrado com as mãos, fazendo-os esfarelar nas bordas.
Ao toque, eles deviam parecer mais suaves na parte de cima, mas ásperos na parte inferior, como pedra-pomes, onde haviam crescido envolvendo grãos sedimentares. Se tivessem levado ao nariz, não teriam detectado nenhum cheiro.
O químico da expedição foi um dos primeiros a notar que os nódulos não eram insignificantes. Eles eram feitos de “peróxido de manganês”, escreveu ele, que é “uma das principais substâncias utilizadas na fabricação de alvejante”. Sua localização remota, no entanto, significava que “eles nunca poderiam se tornar uma fonte rentável de suprimento”.
Mal sabia aquele químico como eles seriam importantes — para os organismos das profundezas do oceano e, mais tarde, para os seres humanos.
Anos depois, os cientistas descobririam que esses nódulos são como ilhas para algumas formas de vida. A planície abissal em que se encontram representa 50% da superfície da Terra — uma dimensão sublime que pode ser difícil de imaginar.
Se os oceanos fossem removidos repentinamente, veríamos que metade do nosso planeta é um vasto deserto de sedimentos soltos.
Em meio a essa planície árida, os nódulos oferecem uma superfície rara e firme para a vida se agarrar. Algumas esponjas e moluscos são específicos deles, enquanto nematelmintos e larvas de crustáceos foram encontrados vivendo em suas fendas.
“Eles são como as áreas rochosas em um jardim — você vai ter mais espécies vivendo lá do que se tivesse apenas terra”, diz Daniel Jones, do National Oceanography Centre em Southampton, no Reino Unido, que estuda os efeitos das intervenções humanas na vida marinha.
Mas, recentemente, esses nódulos também chamaram a atenção de um mamífero terrestre voraz, que precisa deles para seus smartphones. O que aquele químico da expedição de 1873 não identificou é que os nódulos também contêm metais, como cobalto, níquel, cobre, titânio e elementos de terras-raras. E que estes um dia teriam um valor imenso para os seres humanos.
À medida que a tecnologia do século 21 avança, também aumenta a demanda por matéria-prima, como o cobalto, que é usado em baterias íon lítio de carros e eletrônicos. O problema é que, atualmente, grande parte do material é proveniente de fontes problemáticas.
A República Democrática do Congo extrai mais de 60% do suprimento mundial de cobalto de minas terrestres, mas a atividade no país foi associada a abusos de direitos humanos e trabalho infantil.
Isso torna os nódulos oceânicos um alvo cada vez mais atraente, apesar dos enormes desafios de engenharia para chegar até eles. Em uma região do Pacífico — a Clarion Clipperton Zone (CCZ) —, uma estimativa conservadora sugere que há cerca de 20 bilhões de toneladas, se os nódulos forem removidos e secos.
Embora por décadas sua exploração tenha sido considerada não rentável, várias organizações de mineração estão se mobilizando agora para removê-los, junto com outros tipos de depósitos minerais subaquáticos. Se for adiante, centenas de quilômetros quadrados serão dragados por ano.
Qual será o impacto disso? Nas décadas de 1970 e 1980, pesquisadores e empresas de mineração deram os primeiros passos na tentativa de avaliar a viabilidade e as consequências ambientais.
Em várias áreas dentro da CCZ, assim como em outro local próximo ao Peru chamado Discol (DIS-turbance and re-COL-onisation), navios arrastaram ancinhos e arados de metal especializados sobre o leito do Pacífico para recolher os nódulos e trazê-los para a superfície.
Embora não simule exatamente o maquinário de dragagem planejado para futuras minas, e a escala seja muito menor, seus efeitos oferecem algumas das melhores evidências que temos.
Em alguns casos, os rastros foram deixados para trás por cientistas curiosos sobre o que aconteceria com um ecossistema intocado. Em outros, foram as próprias organizações de mineração emergentes, testando suas tecnologias de extração. Uma tentativa chegou a envolver, inclusive, a CIA, agência de inteligência americana.
A Ocean Minerals Company (OMCO), um consórcio de grupos da indústria liderado pelo que agora é a Lockheed Martin, realizou testes de extração no Hughes Glomar Explorer. Este navio mais tarde ganharia fama por outros motivos — ele também carregava uma garra gigante projetada para uma tentativa secreta de içar um submarino russo do fundo do mar.
Anos mais tarde, à medida que os planos para a mineração em alto mar se aceleravam e licenças exploratórias eram emitidas, os pesquisadores voltaram a esses locais no Pacífico para estudar os efeitos de longo prazo. O que eles descobriram é que, mesmo após décadas, a vida nessas trincheiras artificiais ainda não voltou ao normal.
Em terra, a vida tende a brotar nas cavidades aradas de um campo, mas nas profundezas do mar, as trincheiras são relativamente estéreis. As criaturas que dependiam dos nódulos, agora removidos, não podem recolonizar.
E outras, que requerem sedimentos moles para escavar e encontrar alimento, não podem viver nas superfícies compactadas artificialmente.
“As comunidades desses nódulos nas planícies abissais serão especialmente vulneráveis ao risco de extinção causado pelos esforços para extraí-los”, concluiu Lara Macheriotou, da Ghent University, na Bélgica, e seus colegas em um artigo publicado no início de 2020.
E é possível, dizem os cientistas, que tais efeitos durem centenas ou até milhares de anos.
A socióloga Barbara Adam propôs certa vez que o mundo pode ser pensado em termos de “timescapes” adjacentes, que são caracterizados por seu ritmo.
Ela descreveu como as escalas de tempo industriais ou agrícolas se movem em um ritmo muito mais rápido do que as naturais e ecológicas. Todos esses regimes temporais estão interligados, mas quando um é forçado a se mover no ritmo do outro, o dano ambiental de longo prazo se torna um risco.
O timescape das profundezas do oceano é lento e paciente. Portanto, quando a humanidade envia seu maquinário para lá para remover recursos naturais submarinos, há dois regimes diferentes de tempo colidindo: o ritmo de uma planície abissal versus uma ânsia desenfreada e de curto prazo por novas tecnologias.
A profundeza dos oceanos não poderia estar mais distante dos ecossistemas verdejantes e das sociedades apressadas que povoam os continentes. As temperaturas na planície abissal oscilam perto de zero, a pressão é esmagadora e quase não há luz.
Os organismos que se agarram à vida sobrevivem com uma dieta de “neve marinha”. Essa tempestade contínua de detritos orgânicos, geralmente digeridos três ou quatro vezes, cai da parte mais próxima da superfície do mar.
“É um ambiente com baixa temperatura, pouca comida e pouca energia, e isso tende a definir o ritmo de vida”, diz Jones.
“Os animais não estão sujeitos às mudanças físicas extremas que você tem em águas rasas. Esta é provavelmente uma área onde qualquer distúrbio é duradouro.”
Mas, embora essas regiões possam parecer desertos do mar — certamente em comparação com os vibrantes corais de águas rasas tropicais —, elas são grandes reservatórios de biodiversidade e desempenham um papel vital no ciclo do carbono por meio do sequestro natural.
“Muitos dos animais que vemos são novos para a ciência… e alguns organismos têm compostos ativos farmaceuticamente”, diz Jones.
No longo prazo, também há potencial para interação com a atividade pesqueira mais acima na coluna de água.
“Há funções desempenhadas por essas comunidades que podem não se tornar valiosas por séculos em alguns casos.”
Muitas vezes não conseguimos ver a vida dentro deste vasto espaço, porque é muito pequena e dispersa demais para se capturar sua dimensão com uma fotografia. Não há megafauna carismática para exibir em cartazes. Mas a vida existe em uma diversidade impressionante e cobre metade do nosso planeta.
Alguns podem argumentar que danificar a vida nas profundezas do oceano é um sacrifício que vale a pena ser feito, se comparado aos abusos de direitos humanos cometidos em minas na África.
No entanto, é improvável que um tipo de mineração simplesmente substitua o outro, diz David Santillo, do Greenpeace Research Laboratories da Universidade de Exeter, no Reino Unido, que recentemente foi coautor de uma análise sobre mineração no fundo do mar e seus potenciais impactos publicada na revista científica Frontiers in Marine Science.
“Há diferentes empresas envolvidas, diferentes mercados de certa forma, diferentes pressões por parte da demanda e incentivos… então, se a mineração no fundo do mar decolar, é mais provável que se torne simplesmente uma fonte adicional de minerais.”
Embora a importância da vida nas profundezas do oceano possa ser difícil de quantificar em termos morais ou econômicos, ela tem um valor intrínseco. E o fato de suas escalas de tempo lentas e de longo prazo serem interrompidas tão rápido deveria ser motivo para cautela, de acordo com os cientistas com quem conversei.
Quanto às trilhas dragadas, se as futuras gerações um dia as encontrarem no fundo do oceano, elas terão perdurado por muito tempo além da vida útil do smartphone, laptop ou carro elétrico que ajudou a esculpi-las.
Nas palavras de David Farrier, autor do livro Footprints, esses vestígios acabam por se tornar os “futuros fósseis”. Na era do Antropoceno, Farrier argumenta que estamos deixando para trás heranças industriais, químicas e geológicas indesejáveis que persistirão por séculos.
“Os futuros fósseis são nosso legado e, portanto, nossa oportunidade de escolher como seremos lembrados”, escreve ele.
“Eles vão registrar se continuamos imprudentes, apesar dos perigos que sabíamos que estavam à frente, ou se nos importamos o suficiente para mudar nosso rumo. Nossas pegadas vão revelar como vivemos para quem ainda estiver por aqui para descobri-las, sugerindo as coisas que estimamos ou negligenciamos, as jornadas que fizemos e a direção que escolhemos seguir.”
É possível que essas marcas possam ser interpretadas como um sinal contundente de nossos hábitos de consumo no início do século 21.
“Se vamos ficar sem certos minerais, a menos que destruamos uma grande área do leito oceânico, então certamente este é o sinal para repensar o quão esbanjadores estamos sendo com os minerais que temos”, diz Santillo.
“Se o que acabamos fazendo com a mineração no fundo do mar é simplesmente estender os padrões de consumo insustentáveis por mais 30 anos, ou até mesmo acelerá-los trazendo ainda mais produtos para o mercado… não teremos mudado nada.”
Sentado em Londres enquanto escrevo este artigo, meu mundo é pequeno e de curto prazo, circunscrito às restrições do lockdown no Reino Unido e do home office.
No entanto, minha mente vagou nas últimas semanas de volta às planícies abissais. Em uma época em que muitos dos mapas que vejo traçam a propagação do coronavírus, eis uma região do planeta que não poderia estar mais distante da pandemia.
Talvez parte do que me atrai seja o extremo absoluto deste deserto oceânico. Provavelmente nunca vou conseguir ver com meus próprios olhos. Até mesmo os cientistas que o estudam agora usam câmeras operadas remotamente, em vez de descerem eles próprios até o leito do oceano.
O fundo do mar, e a vida dentro dele, tem uma escala que desafia a imaginação, tanto espacial quanto temporalmente. Não é afetado pelo o que está acontecendo em terra — e isso é verdade há milênios.
No entanto, este pode ser o século em que isso vai mudar; onde deixaremos muito mais do que um ou dois fragmentos no fundo do oceano.
Quando os pesquisadores falam sobre intervenções humanas no fundo do mar, uma palavra que costumam usar é “distúrbio”. Na linguagem científica, se refere à suspensão e dispersão de pluma de sedimentos e os efeitos nas comunidades submarinas. Mas a palavra distúrbio tem outro significado — também é um transtorno irracional.
Fonte: BBC