Enquanto várias cidades e Estados voltam a adotar neste março de 2021 políticas de isolamento mais rigorosas contra o coronavírus, há brasileiros que nunca deixaram o confinamento rigoroso em casa desde março do ano passado.
Foi naquele mês de 2020 que governos locais começaram a decretar o fechamento de serviços e comércio não essenciais como forma de conter o avanço do coronavírus, confirmado pela primeira vez no Brasil em 26 de fevereiro. Desde então, prefeituras e governos estaduais adotaram políticas mais ou menos rígidas de confinamento — e de flexibilização.
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Também variou ao longo dos últimos 12 meses, mas com clara tendência de queda na curva, o índice de isolamento social no país medido pelo Monitor Estadão/Inloco, a partir de dados GPS e Wi-Fi de celulares. A média de isolamento chegou a 62,2% em 22 de março de 2020. Já o ponto mais baixo foi registrado recentemente, em 26 de fevereiro de 2021: 31,1%.
Na menor parcela daqueles que se mantêm isolados — e mais ainda, em confinamento rígido — estão pessoas encontradas pela BBC News Brasil via redes sociais e entrevistadas por telefone a partir de quatro capitais: Curitiba, Goiânia, Rio de Janeiro e São Paulo.
Em comum, elas têm condições financeiras e de trabalho que permitem que fiquem em casa em tempo integral. Já as razões para este isolamento vão desde fatores de risco de saúde ao senso de coletividade.
Elas compartilham a seguir um pouco das suas rotinas, reflexões e histórias.
Caio, 33 anos, São Paulo: ‘Minha vida pessoal está em frangalhos’
Na cidade mais populosa do país, o paulistano Caio Corraini, de 33 anos, está há quase um ano cumprindo rigorosamente o isolamento em casa, onde mora sozinho.
Na verdade, ele tem a companhia da cadela Mococa — motivo para suas pouquíssimas saídas nesse período, e só para passeios que não ultrapassam o quarteirão.
Além disso, ele estima que saiu aproximadamente sete vezes durante o último ano. Algumas para visitar e fazer a mudança para a casa onde mora atualmente, outras para visitar clientes.
Datas comemorativas como Natal e Ano Novo não foram exceção — ele também passou confinado e sozinho.
“Acho que é meu dever, dadas as circunstâncias e as informações que temos, fazer um isolamento assim. Em outros países, vimos que o lockdown bem feito é efetivo, então decidi fazer minha parte. Se todos estivéssemos saindo só para o essencial mesmo, não teríamos tantas pessoas morrendo por dia.”
Mas Caio logo ressalta ter o “privilégio” de trabalhar 100% do tempo em casa. Ele é fundador e diretor-executivo da Maremoto, produtora especializada em podcasts.
“Sei que tem pessoas que precisam sair e ponto… Mas você abre o Instagram e vê fulano na praia, fico com raiva. Ao mesmo tempo, não tenho o que fazer. Em um país com um governo sério, a gente teria sido mais educado, conscientizado e, se fosse o caso, punido”, critica o empresário.
“No início de março (de 2020), não tinha ninguém na rua. Era uma cidade fantasma, o que para uma cidade como São Paulo era algo impressionante. Naquele momento, acreditei: vamos conseguir fazer o isolamento. Mas aí começou a abrir shopping, academia…”, diz, enumerando as flexibilizações que tiraram sua esperança.
“No começo, as pessoas estavam apavoradas. Hoje, a galera ligou o f*. Nós estamos no pior momento — isso de que o pior já passou é falso.”
Caio diz que, desde o início da pandemia, sua estimativa do quanto ela duraria foi prorrogada a cada três meses, até chegar ao momento atual, onde ele tenta não pensar muito mais até quando seu isolamento vai durar. A falta de perspectiva e “a briga de egos entre governos federal e estadual” cobram um preço do seu bem-estar.
“Sinceramente, às vezes evito acompanhar muito. Mas, às vezes, leio para me informar e pensar no futuro, tipo: esquece isso (de voltar ao ‘normal’) por mais um mês”, conta o paulistano.
O tempo em casa teve “100% de aproveitamento” na vida profissional, com a empresa crescendo, muito trabalho e a retomada de estudos de inglês, mas deixou sua vida pessoal ficou “em frangalhos”, como ele define.
“O ser humano é um bicho sociável, emocional, e esse campo está destroçado. Todos os dias sinto falta dos amigos, de marcar um encontro com alguma guria. Não posso fazer nada. É um preço muito alto, alto demais. Sinto como minha vida tivesse parado”, diz, acrescentando tratar desses temas na terapia — virtual, claro.
Na sua rotina de dias “todos iguais” do isolamento, como define, o mais perto que Caio chega da socialização da vida real é o encontro virtual com amigos enquanto jogam videogame.
Faz parte de sua programação de comunicação à distância também ligações para a avó, que mora no interior de São Paulo — inclusive outro motivo para seu confinamento rígido, porque pensar nos riscos que ela corre aumentam seu senso de responsabilidade, ele diz.
Socializar também é a primeira pedida no hipotético cenário de fim da pandemia — mas só depois de ir ao cabelereiro.
“Não corto cabelo tem um ano. Primeira coisa que penso é fazer isso, depois comprar uma roupa nova e ir ver meus amigos”, diz.
Rute, 62 anos, Curitiba: ‘Deus está agindo através dessa vacina’
Perguntada pela reportagem o quanto, de 0 a 100, está isolada, a dona de casa Rute Marques Hensen, de 62 anos, não titubeia.
“100%. Só saio para tirar o lixo”, diz ela, que mora com o marido Volni Hensen, de 60 anos, em um apartamento em Curitiba, no Paraná.
Volni sai apenas para fazer tratamentos de um câncer de intestino, diagnosticado em 2019. A filha e o genro o levam de carro. O tratamento do tumor não foi interrompido ou afetado pela pandemia.
Mas é justamente a condição de saúde dele que, dentre vários motivos, faz o casal ficar o mais perto possível de um isolamento total.
“Eu não tenho problemas de saúde, mas meu marido tem um fator de risco, a baixa imunidade, então, por segurança, não saímos de casa”, explica Rute.
Ela reconhece que ficar muito tempo em casa já era uma costume antes da pandemia — e facilita a boa convivência com o marido. As únicas visitas que o casal recebe são da filha, do genro e da neta.
“Tenho que fazer as coisas na casa, o dia passa rápido. Passo café, limpo, faço almoço, depois cuido da netinha”
“Acostumei com o isolamento. Eu não era muito de sair, no máximo ia para a igreja, ou para o shopping com minha filha, ou para a chácara da minha irmã. Para mim, está tranquilo. Mas sinto falta dos meus amigos e da igreja, de ir aos cultos de domingo e de cantar no coral”, diz Rute, que segue acompanhando os cultos da Assembleia de Deus pela internet.
O coronavírus a deixou distante das duas irmãs e um irmão, que não vê desde o início da pandemia, e também enlutou a família — um cunhado de Rute faleceu de covid-19, após ter recebido uma visita infectada, ela conta.
Foi mais uma vítima fatal das muitas que conhecia. “Morei 11 anos em Manaus, tenho amigos lá. Perdi bastante amigo, parentes de amigos…”, enumera a dona de casa.
“Cada um é um, mas acho que as pessoas deveriam ter se cuidado mais. Muitas pessoas não estão levando a sério, não usam máscara… Se todos tivessem levado a sério a pandemia, a coisa não estaria como está.”
“Mas agora com a vacina vai ser muito melhor. Creio que Deus está agindo através dessa vacina. Me deu muita esperança.”
Vitor, 30 anos, Rio de Janeiro: ‘Quando saí, fiquei com medo de chegar perto das pessoas’
Se desde o final de março de 2020 o “mundo” do doutorando Vitor Tocci, de 30 anos, foi o apartamento que mora com a família, as únicas duas saídas de lá neste período foram um pouco como fazer uma expedição para outro planeta — no caso, a cidade do Rio de Janeiro em plena pandemia de coronavírus.
E como toda missão exige um planejamento, Vitor se antecipou para minimizar todos os riscos de infecção ao ir votar no primeiro e segundo turno das eleições municipais, em novembro de 2020.
Ele pesquisou antes se sua seção eleitoral havia mudado de lugar, acordou muito cedo no dia da votação e chegou antes que as filas se formassem.
“Eu estava até com receio (de sair de casa). Nunca tinha saído com máscara. Me arrumando, estranhei estar todo paramentado, parecia um astronauta”, lembra Vitor, que tem atrofia muscular espinhal e se locomove com cadeira de rodas, o que também explica seu planejamento para a saída.
“Apesar de ter poucas pessoas na rua quando saí, senti paranoia de chegar perto delas. Como a doença é muito nova, não sabia até que ponto estaria protegido mesmo de máscara e face shield. Foi uma sensação estranha, realmente estava com medo de chegar perto das pessoas.”
Vitor conta que considerou não ir por conta dos riscos, mas seu local de votação é perto de casa e ele queria fazer valer seu voto.
A rigidez no isolamento se explica em parte por sua condição de saúde — que já era uma preocupação antes do coronavírus, fazendo com que já se vacinasse anualmente contra a gripe.
“Tenho fraqueza nos meus músculos, e esta fraqueza afeta o pulmão. Se eu pegar covid, meu pulmão já não é normal. No início da pandemia conversei com minha neurologist,a e ela disse que eu não estou oficialmente no grupo de risco da doença”, conta.
“Mas sempre tive que tomar cuidado com qualquer gripe — quando pego uma, tenho que me medicar rápido, para combater logo no começo. Por duas vezes já evoluí para pneumonia, em uma delas tive que internar.”
Dividindo o apartamento com os pais e a irmã, são eles que saem para ir ao mercado e à farmácia. Vitor fica direto em casa, centrando a rotina em sua pesquisa de doutorado. A convivência entre todos “é a melhor possível, o que ajuda a passar pelo isolamento de uma forma melhor”, diz o jovem.
“Para ser sincero, sempre fui muito de ficar em casa. Saía para compromissos do doutorado ou para algum bar perto de casa com os amigos. Mas só ficar em casa é muito desgastante”, afirma.
“Inicialmente, eu achava que no final do ano (de 2020) já teríamos um controle maior dos casos. Mas da forma como (a resposta à pandemia) foi conduzida no Brasil, nunca houve controle dos casos, além de não ter vacina (suficiente).”
Assim, ficou para trás, junto com 2020, os planos de encontrar os parentes na tradicional festa que a família costuma fazer no fim do ano, reunindo mais de 40 pessoas — e que Vitor espera que possa acontecer em 2021, talvez com a disseminação da vacina contra a covid-19, que lhe deu “muita esperança”.
Mesmo reconhecendo que, diferente de sua família, há aglomerações e outras “flexibilizações” não recomendadas acontecendo pelo país, Vitor direciona suas críticas ao governo federal.
“Acho que a cobrança real deveria ser em cima de quem não está fazendo sua parte — que é o governo, boicotando a pandemia, o isolamento e a vacinação. Se tivéssemos um governo mais consciente, conseguiríamos manter as pessoas por mais tempo em lockdown.”
Avani, 63 anos, Goiânia: ‘Não vejo uma luz no fim do túnel’
Os únicos descuidos com o coronavírus que chegam perto da advogada Avani Guedes, de 63 anos, são os que ela vê da janela do seu apartamento em Goiânia, capital de Goiás, para fora.
Da janela para dentro, alimentos e livros comprados via internet são higienizados com álcool, visitas estão “proibidas” e os moradores — ela, um irmão de 39 anos e a mãe de 83 — evitam se aproximar. Até agora, nenhum dos três moradores teve sintomas e muito menos um diagnóstico de covid-19.
“Não abraço minha mãe há um ano, nem no aniversário dela. E sou da teoria de que é muito bom dar seis abraços por dia, para o bem interior”, lamenta.
Ir para a rua foi raridade desde o início da pandemia, de se contar nos dedos. Avani diz que saiu duas vezes para ir à farmácia e, uma vez ao mês, precisa ir ao banco.
“Minha mãe é idosa, com doenças pré-existentes, e já esteve na UTI três vezes. Eu e meu irmão somos hipertensos. Temos que ter muitas precauções.”
“Sei bem o que é uma UTI, o que significa intubar, ver uma mãe em estado grave. E as pessoas levam na brincadeira, o que me deixa estressada. Falta noção de coletividade, de respeito com aqueles que realmente precisam se resguardar contra a doença”, diz, referindo-se às pessoas que não adotam medidas de prevenção recomendadas.
“Da janela do meu apartamento vejo um terminal rodoviário, onde vejo pessoas sem máscara entrando em ônibus lotados. Claro que as pessoas são corresponsáveis, mas o poder público tem responsabilidade nisso.”
Esse tipo de descaso explica sua resposta não muito empolgada sobre as perspectivas após a vacinação da sua mãe, imunizada com a primeira dose no dia que a advogada conversou com a reportagem.
“Enquanto não tivermos certeza de que a situação do país e do mundo está realmente tranquila, vou continuar me resguardando.”
No isolamento, Avani decidiu começar uma graduação em Pedagogia pela internet e já está indo para o segundo semestre. Ela ainda trabalha como advogada, mas com uma carga horária mais tranquila por conta da idade.
“Eu pensei: o que vou fazer durante esse período dentro de um apartamento? Mesmo não sendo presencial, estudar te mantém em contato com as pessoas. E Pedagogia tem disciplinas de filosofia, que têm a ver com minha formação. Isso enriquece minha carreira”, conta.
“Mas o contato online tem uma distância, é diferente de fazer o curso com um grupo (presencialmente). Não sou do tempo da tecnologia, de ficar fazendo amizade pelo computador. Acho que tira o brilho da amizade, gosto de participar das festas, dar um abraço.”
Falando dos tempos em que o coronavírus ainda não existia, Avani se descreve como uma pessoa ativa, com hábito de viajar de carro, ir ao shopping e participar de congressos a trabalho.
“Já estou cansada. Reconheço que não todos os dias, mas em alguns acordo e vem uma tristeza porque você não vê luz no fim do túnel. Ainda não estou conseguindo ver luz no fim do túnel.”
Perguntada pela reportagem sobre o que faria em um dia hipótetico em que a pandemia não exista mais, a advogada ficou um tempo em silêncio.
“Nunca pensei no primeiro dia. Mas logo que a pandemia passar, estou pensando em mudar de cidade. Tenho irmãos morando em Brasília e pensei em nos juntarmos todos lá. Na pandemia, fiquei pensando: a vida é curta, ficar longe por quê?”
Fonte: BBC