Tchernobil é o maior desastre nuclear de todos os tempos?
O acidente da usina de Tchernobil, em 26 de abril de 1986, perto da cidade de Pripyat, no norte da Ucrânia, costuma ser descrito como o pior desastre nuclear da história. No entanto essa descrição sensacionalista é raramente explicada em maiores detalhes.
A Escala Internacional de Eventos Nucleares e Radiológicos (Ines) de fato classifica os eventos nucleares de zero a sete, entre acidentes, incidentes e anomalias. Desenvolvida pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e a Agência de Energia Atômica da OCDE, ela foi introduzida em 1990.
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O nível sete indica “acidente grave”, envolvendo “grande liberação de material radioativo com amplos efeitos para a saúde e o meio ambiente, exigindo implementação de contramedidas planejadas e ampliadas”. Tanto o acidente de Tchernobil como o de Fukushima, em 2011, foram categorizados assim (a Ines não prevê subcategorias).
Como explica Kate Brown, professora de ciência, tecnologia e sociedade do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), contudo, se o termo “desastre nuclear” não for só empregado para classificar eventos ou acidentes em reatores nucleares, mas também emissões radioativas causadas por humanos, então houve diversas ocasiões em que a contaminação nuclear foi maior do que a de Tchernobil.
Por exemplo, as usinas americanas e soviéticas que produziram o plutônio destinado à bombas nucleares “emitiram, cada uma, como parte de sua rotina diária de trabalho, pelo menos 350 milhões de curies [unidade de radioatividade] no meio ambiente circundante, e não foi um acidente”.
“Vamos olhar, ainda mais grave, a emissão de resíduos radioativos na detonação de bombas nucleares nos testes realizados em todo o mundo. Basta um só isótopo, de iodo radioativo, que é nocivo à saúde humana, porque é absorvido pela tireoide, causando câncer ou outras moléstias dessa glândula.”
“Tchernobil emitiu 45 milhões de curies de iodo radioativo em apenas dois anos de testes, em 1961 e 62. Os soviéticos e os americanos emitiram, não 45 milhões, mas 20 bilhões de curies de iodo radioativo.” E esses testes, insiste Brown, não foram por acidente ou erro humano, mas intencionais.
Há mutantes na zona de exclusão?
Uma das perguntas mais populares aos guias turísticos na zona de exclusão, a área em torno do antigo reator nuclear, é se existem mutantes. Propagada por numerosos jogos de computador, filmes e livros de horror, essa noção é equivocada.
Denis Vishnevsky, diretor do departamento de ecologia, flora e fauna da Reserva da Biosfera Radioativa e Ecológica de Tchernobil, assegura que nunca viu lobos de duas cabeças nem roedores de cinco pernas: “A influência da radiação ionizante pode causar uma certa reestruturação do corpo, porém no mais do caso ela simplesmente reduz a viabilidade de um organismo.”
Um exemplo é a alta mortalidade entre embriões de roedores, devido a defeitos genômicos que impedem o organismo de funcionar. Quando sobrevivem a fase intrauterina, esses animais por vezes portam deficiências que os impedem de subsistir em condições naturais.
Vishnevsky e seus colegas examinaram milhares de espécimes na zona de exclusão, mas não encontraram qualquer alteração morfológica inusitada. “Porque se trata sempre de animais que sobreviveram e venceram a luta pela sobrevivência”, é difícil compará-los com cobaias expostas deliberadamente por cientistas a radiação nos laboratórios.
A natureza voltou a tomar conta do local do desastre?
Relatórios intitulados “Vida florescendo em torno de Tchernobil” e séries de fotos sugerindo que a zona de exclusão se transformou num “paraíso natural” podem dar a impressão de que a natureza tenha se recuperado. Após pesquisar o local do desastre durante 25 anos, contudo, a professora Brown é taxativa: “Isso não é verdade.”
“É uma ideia muito sedutora, de que os humanos baguncem a natureza e tudo o que precisam fazer é se afastar, e a natureza se restabelece.” Na realidade, os biólogos registram um número de espécies de insetos, pássaros e mamíferos menor do que antes do acidente.
O fato de algumas espécies ameaçadas de extinção serem encontradas na zona de exclusão não é prova de saúde e vitalidade da área. Pelo contrário: houve significativo aumento da taxa de mortalidade e redução da expectativa de vida da população animal, com o registro de mais tumores e defeitos imunológicos, distúrbios dos sistemas sanguíneo e circulatório e envelhecimento precoce.
Os cientistas têm atribuído a aparente biodiversidade à migração de espécies e à grande extensão do território. “A zona de exclusão compreende 2.600 quilômetros quadrados, e há ainda outros 2 mil quilômetros quadrados ao norte da zona de exclusão de Belarus”, observa Vishnevsky.
“Há também áreas no leste e oeste onde a densidade populacional humana é extremamente baixa. Temos um gigantesco potencial para preservar a fauna selvagem local”, a qual inclui linces, ursos e lobos, que precisam de muito espaço.
No entanto, mesmo 35 anos após o desastre, a terra ainda está contaminada de radiação, um terço da qual proveniente de elementos transuranianos com uma meia-vida de mais de 24 mil anos.
Tchernobil é segura para turistas?
A zona de exclusão já era um ímã para os turistas de catástrofes, mas em 2019, após o sucesso da minissérie da HBO Chernobyl, os números de visitas dobraram, para 124 mil por ano. A Agência Estatal da Ucrânia para Gestão da Zona de Exclusão estabeleceu uma série de rotas, permitindo aos turistas visitarem a região por terra, água ou ar.
Além disso, estabeleceu diversos regulamentos para proteger os turistas: eles devem estar cobertos da cabeça aos pés, não comer ou beber ao ar livre, e sempre seguir as trilhas oficiais. O Departamento Federal Alemão de Proteção Radiotiva calcula que a dose após um dia de visita não exceda 0,1 millisievert – aproximadamente a mesma absorvida durante um voo de longa distância entre a Alemanha e o Japão.
Certos tratamentos médicos expõem os pacientes a doses muito superiores, observa Sven Dokter, porta-voz da organização alemã de segurança nuclear Pesquisa Global de Segurança (GRS, na sigla em inglês): uma radiografia pélvica efetiva envolve de 0,3 a 0,7 millisievert, enquanto uma tomografia computadorizada do tórax chega a 4 a 7 millisieverts. Assim, uma visita à zona de exclusão não deveria representar danos, se os visitantes seguirem as regras e se ativerem ao tour oficial.
“Estamos bem longe das doses que exigiriam uma advertência contra tais visitas. Em média, cada cidadão da Alemanha recebe uma dose de 4 millisieverts por ano, a metade proveniente da radiação natural a que se está sempre exposto, a outra de procedimentos médicos padrão e de voos.”
Em seu site, a AIEA tampouco expressa ressalvas: “Certamente se pode visitar a área de Tchernobil, inclusive a zona de exclusão, que é de o raio de 40 quilômetros em torno da usina, cujos reatores estão agora todos desativados. Embora alguns isótopos radioativos liberados ainda permaneçam na atmosfera (como estrôncio 90 e césio 137), os níveis são toleráveis por períodos limitados.”
A área é habitada por humanos?
Hoje, Pripyat, a localidade fechada construída para servir a usina nuclear e abrigar seus empregados, costuma ser descrita como cidade-fantasma, assim como o município vizinho de Tchernobil. Contudo, nenhuma das duas tem estado totalmente vazia desde 1986. Milhares, principalmente homens, têm se hospedado lá, trabalhando em geral em turnos de duas semanas para manter funcional a infraestrutura básica de ambas as localidades.
Após a explosão do reator 4, os outros três seguiram operando, só sendo desativados em 1991, 96 e 2000. Unidades especiais do Ministério ucraniano do Interior patrulham a zona. Há também lojas e pelo menos dois hotéis em Tchernobil, sobretudo para visitantes de negócios.
Além disso, há um número desconhecido de habitantes não oficiais, entre os quais antigos residentes da área que optaram por retornar e se instalaram em lugarejos evacuados após o desastre. Entretanto, indagado pela DW sobre quantas pessoas vivem em Tchernobil, a resposta oficial da Agência Estatal para Gestão da Zona de Exclusão foi “ninguém”.
Em 2016, estimava-se que 180 indivíduos vivessem em toda a zona de exclusão. Como eram principalmente idosos, esse número pode ter caído. Embora oficialmente só sejam tolerados, o Estado os apoia financeiramente no dia a dia, entregando-lhes suas pensões uma vez ao mês e fornecendo-lhes mantimentos a cada dois ou três meses, numa loja ambulante.
Fonte: Deutsche Welle