Pela primeira vez, cientistas encontraram camadas de solo na superfície da Terra que parecem não abrigar nenhum tipo de vida. Os solos provêm de duas cordilheiras rochosas varridas pelo vento no interior da Antártida, a 480 quilômetros do Polo Sul, onde montanhas atravessam faixas de gelo com milhares de metros de espessura.
“Partimos do princípio de que os micróbios são resistentes e podem viver em qualquer lugar”, afirma Noah Fierer, ecologista microbiano da Universidade do Colorado, em Boulder, e chefe da equipe que estudou os solos. Organismos unicelulares já foram encontrados vivendo até mesmo em fontes hidrotermais com temperaturas acima de 93 graus Celsius; retidos em lagos formados sob quase um quilômetro de gelo na Antártida; e a 36 mil metros de altura na estratosfera da Terra. Mas depois de um ano de pesquisas, Fierer e seu aluno de doutorado Nicholas Dragone ainda não encontraram vida em alguns solos da Antártida.
Fierer e Dragone estudaram 11 montanhas, que apresentavam condições amplamente diferentes de solo. Os pesquisadores chegaram a encontrar bactérias e fungos nas montanhas mais baixas e menos geladas, mas nas montanhas mais altas, secas e frias, não encontraram nenhum sinal de vida.
“Não podemos dizer que são estéreis”, afirma Fierer. É comum que os microbiologistas detectem milhões de células em pequenos fragmentos de solo. Por isso, um número realmente baixo — 100 células vivas, por exemplo — pode acabar não sendo detectado. “Mas, até onde sabemos, esses solos não abrigam nenhuma vida microbiana.”
Procurando por sinais de vida
Independentemente de alguns desses solos realmente não abrigarem vida ou mesmo que futuramente seja constatado um número baixo de células vivas, esta nova descoberta — publicada recentemente no periódico JGR Biogeosciences — pode auxiliar na busca por vida em Marte. Os solos da Antártida estão congelados, saturados de sais tóxicos e não entram em contato com quantidades significativas de água em estado líquido há pelo menos dois milhões de anos — como ocorre também com os solos marcianos.
As amostras foram coletadas durante uma expedição de janeiro de 2018, financiada pela US National Science Foundation, a uma seção remota das Montanhas Transantárticas. As montanhas dividem o interior do continente, separando o alto planalto polar, a leste, do gelo mais baixo, a oeste. Os cientistas acamparam na geleira Shackleton, uma esteira de gelo de 96 quilômetros que se estende através de uma fenda nas montanhas. Para chegarem aos pontos mais altos e coletarem amostras acima e abaixo da geleira, os cientistas utilizaram um helicóptero.
Nas montanhas mais quentes e úmidas que ficam ao pé da geleira, a apenas algumas centenas de metros acima do nível do mar, foram encontrados solos habitados por animais menores do que sementes de gergelim, como vermes microscópicos, tardígrados, rotíferos e um tipo de inseto sem asa chamado colêmbolo. Esses solos arenosos abrigavam menos de um milésimo do número de bactérias que poderiam ser encontradas em um gramado bem cuidado — o que é suficiente para fornecer comida para os pequenos animais que vivem debaixo da superfície.
Já em visita às montanhas em pontos mais altos da geleira, os microbiologistas perceberam que os sinais de vida foram gradualmente diminuindo. No topo da geleira, eles visitaram duas montanhas: Schroeder e Roberts Massif. Essas montanhas se elevam a mais de 2,5 mil metros acima do nível do mar.
Byron Adams, biólogo da Universidade Brigham Young em Provo, Utah, que liderou o projeto, relembra que a visita ao monte Schroeder foi uma experiência chocante. A temperatura neste dia de verão estava perto de 18 graus Celsius negativos. Ventos uivantes, que lentamente evaporavam a neve e o gelo, mantendo as montanhas despidas, ameaçavam levar as pás de jardim utilizadas para recolher as amostras. O solo estava coberto de rochas vulcânicas avermelhadas, perfuradas e polidas por séculos de desgaste causado pelo vento.
Ao levantarem as rochas, os cientistas encontraram sais brancos encrustados na parte inferior. Eram cristais tóxicos de percloratos, cloratos e nitratos. Percloratos e cloratos são sais cáusticos e reativos usados em combustíveis de foguetes e alvejantes industriais, abundantes na superfície de Marte. Esses sais se acumulam em montanhas ressecadas da Antártida porque não há água para escoá-los.
“Parecia uma amostra do solo de Marte”, afirma Adams. O cientista também conta que, ao empurrar a pá, “foi possível perceber que aquele solo não era movido há muito tempo — talvez há milhões de anos”.
Os pesquisadores acreditavam que mesmo nesses lugares mais elevados e inóspitos, eles ainda encontrariam alguns micróbios vivos no solo. Mas as expectativas foram diminuindo a partir do final de 2018, quando Dragone usou um método chamado “reação em cadeia da polimerase” (PCR, na sigla em inglês) para detectar DNA microbiano na terra. Dragone analisou 204 amostras de solos de montanhas acima e abaixo da geleira. As amostras das montanhas mais baixas e quentes produziram DNA abundante; mas 20% das amostras dos solos retirados de localidades mais elevadas, sendo a maioria delas dos montes Schroeder e Roberts Massif, não renderam absolutamente nada, sugerindo que continham poucos ou, até mesmo, nenhum micróbio.
“Quando Nicholas começou a me mostrar alguns dos resultados, pensei: ‘tem alguma coisa errada’”, disse Fierer. Ele pensou que poderia haver algo errado com as amostras ou com os próprios equipamentos do laboratório.
Dragone fez uma bateria de experimentos adicionais em busca de sinais de vida nas amostras. O cientista incubou o solo com glicose para ver se alguma forma de vida possivelmente presente no solo poderia convertê-la em dióxido de carbono. Tentou detectar uma substância química chamada ATP, usada por todos os tipos de vida na Terra para armazenar energia. Por meses, Dragone incubou pedaços de solo em variados coquetéis de nutrientes, tentando fazer com que qualquer micróbio presente crescesse em colônias.
“Nick tentou de tudo com essas amostras”, diz Fierer. Apesar de todos os testes, ele ainda não encontrou nada em algumas amostras de solo. “Isso foi realmente surpreendente”, conclui o microbiologista.
Realmente não há vida no solo?
Jacqueline Goordial, microbiologista ambiental da Universidade de Guelph, no Canadá, considera os resultados “interessantes”, especialmente pelos esforços de Dragone para descobrir os fatores que influenciam a probabilidade de encontrar micróbios em determinado local. Ele constatou que a altitude elevada e os altos níveis de sais de clorato eram os principais indicadores da não existência de vida detectável. “É uma descoberta bastante interessante”, diz Goordial. “Isso nos diz muito sobre os limites da vida na Terra”.
Mas Goordial não está totalmente convencida de que realmente não haja vida nos solos devido à sua própria experiência em outra região da Antártida.
Há alguns anos, ela estudou solos de um ambiente semelhante nas Montanhas Transantárticas — um lugar a mais de 800 quilômetros a noroeste da geleira Shackleton, chamado University Valley, em que provavelmente não há umidade significativa ou temperaturas de degelo há 120 mil anos. Goordial não encontrou sinais de vida nas amostras do solo desse local nem mesmo ao incubá-las por 20 meses a 5 graus Celsius negativos — temperatura típica de verão naquele vale. Porém, quando aqueceu as amostras a alguns graus acima do ponto de congelamento, várias delas mostraram crescimento bacteriano.
Determinar a existência de vida nesses solos depende de como definimos vida.
Já foram encontradas, por exemplo, células bacterianas ainda vivas após ficarem retidas por milhares de anos no gelo glacial. Nessa condição, as células podem desacelerar seu metabolismo em até um milhão de vezes. Elas entram em um estado de dormência e não fazem mais nada além de reparar danos ao DNA causados pela penetração de raios cósmicos no gelo. Goordial especula que esses “sobreviventes lentos” podem ser o que ela detectou em University Valley — e suspeita que se Dragone e Fierer analisassem dez vezes mais o solo, também poderiam encontrá-los nos montes Roberts Massif ou Schroeder.
Ajudando a procurar vida em Marte
Brent Christner, que estuda micróbios antárticos na Universidade da Flórida, em Gainesville, acredita que esses solos secos de grandes elevações podem ajudar a refinar a busca por vida em Marte.
Ele ressalta que as sondas Viking I e II, que pousaram em Marte em 1976, realizaram experimentos de detecção de vida baseados parcialmente em estudos de solos baixos próximos à costa da Antártida — uma região chamada Vales Secos. Alguns desses solos ficam úmidos com o gelo derretido durante o verão. Eles abrigam não apenas micróbios mas, em alguns lugares, minúsculos vermes e também outros animais.
Os solos mais altos e secos dos montes Roberts Massif e Schroeder podem ser um campo de provas ainda melhor para instrumentos destinados a pesquisas em Marte.
“As camadas superficiais de Marte são terríveis”, afirma Christner. “Não temos um organismo na Terra que consiga sobreviver naquela superfície” — pelo menos não nos primeiros cinco centímetros da superfície. Qualquer sonda que vá a Marte em busca de vida deve utilizar o local mais inóspito da Terra para se preparar.
Fonte: National Geographic Brasil