De sua casa em Morningside Heights, em Manhattan, na cidade de Nova York, Samir Kumar geralmente pode ver arranha-céus no centro. Mas semana passada, a fumaça decorrente dos incêndios florestais no oeste dos Estados Unidos e no Canadá se alastrou para a costa leste, obscurecendo o horizonte da cidade de Nova York.
“Eu não estava acreditando nos efeitos reais dos incêndios florestais nesta costa”, revela Kumar.
O jovem de 29 anos é asmático e, enquanto caminhava pela vizinhança, relata que sentia que o ar estava pesado. Ele sentiu falta de ar, aperto no peito e teve que respirar mais fundo, mas conseguiu evitar um ataque de asma.
Kumar, cuja família é da Índia, conta que a qualidade do ar era muito ruim em Nova Delhi, mas nunca havia observado isso nos Estados Unidos.
Atualmente, cerca de 300 incêndios florestais estão ativos na Colúmbia Britânica e aproximadamente 80 em estados no oeste dos Estados Unidos. Os incêndios são agravados por ondas de calor e seca prolongada no oeste, dois padrões climáticos que se tornaram mais extremos devido às mudanças climáticas.
O maior registro até o momento é o incêndio Bootleg, no estado de Oregon, que no dia 16 de julho havia queimado mais de 161 mil hectares — uma área nove vezes o tamanho de Washington, D.C., onde alertas sobre a qualidade do ar também foram emitidos. Céus encobertos estendiam-se de Boston à Carolina do Norte. Os impactos extensos destacam que incêndios florestais não são mais um problema apenas para estados como a Califórnia, onde são mais comuns.
Uma pesquisa publicada em janeiro deste ano no periódico Proceedings of the National Academy of Sciences revela que, durante um grande incêndio, a fumaça resultante pode ser responsável por 25% da poluição prejudicial do ar nos Estados Unidos.
“O que está acontecendo na costa leste devido aos incêndios na costa oeste dos Estados Unidos mostra que o problema é nacional e global”, afirma Mary Prunicki, diretora de poluição do ar e de pesquisa em saúde da Universidade de Stanford.
O que sabemos sobre a fumaça produzida pelos incêndios florestais
Cada coluna de fumaça resultante de um incêndio florestal mistura diferentes substâncias, provenientes desde os tipos de árvores queimadas até construções ou outros objetos que podem ter sido incinerados pelo incêndio.
Cerca de 80% da fumaça constitui material particulado fino composto de gotículas sólidas e líquidas do material queimado, explica Prunicki.
Como pequenas partículas penetram nos pulmões das pessoas e causam doenças respiratórias, os cientistas rastreiam partículas de 2,5 mícrons de diâmetro, conhecidas como PM2.5, que são mais perigosas do que partículas grandes porque podem entrar na corrente sanguínea.
Por seu tamanho microscópico, uma partícula pode se alojar profundamente dentro do organismo. Em seguida, o sistema imunológico responde, liberando as mesmas células que empregaria para combater um vírus. A resposta imune sustentada pela inalação regular da poluição do ar pode afetar todo o organismo, desde os pulmões até o fígado ou o cérebro.
Para uma pessoa saudável exposta a esses níveis de fumaça por um curto período de tempo a cada ano, as ameaças em curto prazo, além de garganta ou olhos irritados, são relativamente baixas, explica Sarah Henderson, cientista de saúde ambiental da Universidade da Colúmbia Britânica.
Mas, à medida que a fumaça se espalha por todos os Estados Unidos e expõe milhões de pessoas, o impacto na saúde é mais disseminado entre os mais vulneráveis. Além de causar problemas respiratórios, a poluição do ar pode levar a problemas cardíacos.
“Farei uma comparação com um usuário de cocaína”, diz Henderson. “O risco de infarto para um usuário de cocaína é alto, mas poucas pessoas usam a droga. Porém todos respiramos esse ar”, e os riscos à saúde disparam quando um número maior de pessoas é exposto.
Aqueles que correm maior risco com a fumaça de incêndio florestal são pessoas com problemas respiratórios, como asma ou doença pulmonar obstrutiva crônica, e gestantes cujos fetos em desenvolvimento podem ser afetados.
Os níveis de PM2.5 são medidos pelo Índice de Qualidade do Ar (IQA) em uma escala de cinco níveis. Na cidade de Nova York, o IQA do dia 20 de julho atingiu 154, um nível que não é seguro para pessoas vulneráveis que respiram esse ar.
Além do mais, a fumaça de incêndios florestais pode prejudicar o sistema imunológico na capacidade de combater infecções de covid-19 e as variantes emergentes, pois já está lutando contra a poluição. Estudos mostram que pessoas expostas à poluição do ar têm maior probabilidade de morrer de covid-19.
“Qualquer tipo de distúrbio respiratório ou infecção prejudicará a capacidade imunológica de lutar contra outras infecções”, explica Prunicki. “Portanto, se a fumaça causar reações agora, quando uma pessoa contrair uma infecção, o corpo não estará preparado para combatê-la.”
O que não sabemos
Ainda existem muitas coisas que não sabemos sobre como a fumaça no ar afeta o organismo. Em abril passado, cientistas detectaram vestígios de bactérias e fungos contidos em fumaça. A fumaça de incêndio florestal foi associada a casos de febre do vale, um tipo de infecção fúngica, mas não está claro quais outros micróbios causadores de doenças podem estar presentes na fumaça e até onde eles podem ser transportados pelo ar.
Um estudo publicado em março na revista científica Nature Communications descobriu que a exposição a incêndios florestais com partículas PM2.5 aumentou as internações em até 10% de 1999 a 2012. A exposição a outras fontes de PM2.5, no entanto, aumentou os atendimentos hospitalares em pouco mais de 1%.
“Nosso estudo é uma indicação de que partículas PM2.5 decorrentes de incêndios florestais podem ser mais tóxicas” do que PM2.5 proveniente de outras fontes, como carros, ressalta Rosana Aguilera, cientista atmosférica da Universidade da Califórnia em San Diego e uma das autoras do estudo.
Ainda não se sabe exatamente por que PM2.5 de incêndios podem ser mais tóxicas.
No início deste mês, o Conselho de Recursos Atmosféricos da Califórnia (Carb, na sigla em inglês) publicou uma análise da espessa fumaça produzida pelo incêndio Camp Fire no estado em 2018, que atingiu 60 mil hectares, incendiou 19 mil edifícios, matou 85 pessoas e destruiu a cidade de Paradise.
A fumaça perdurou quase duas semanas no norte da Califórnia e chegou às cidades de São José e Modesto, a cerca de 241 quilômetros de distância. A fumaça continha níveis perigosos de metais como manganês, zinco e, o mais preocupante, chumbo.
Os altos níveis de chumbo na fumaça persistiram por 24 horas, dificultando a correlação a doenças específicas, mas a exposição ao metal foi associada a câncer e problemas reprodutivos em adultos e problemas de desenvolvimento em crianças.
“Não podemos relacionar essa exposição de curto prazo a um efeito específico na saúde, mas podemos dizer que o chumbo é muito perigoso e não existe um nível de exposição seguro”, enfatiza Bonnie Holmes-Gen, chefe do setor de Avaliação de Saúde e Exposição do Carb.
Ainda mais toxinas podem estar presentes na fumaça de incêndios florestais que queimam bairros, consumindo casas contendo itens manufaturados, como eletrônicos, isolamento térmico e plástico.
Em março, cientistas da Universidade da Califórnia em Davis identificaram moléculas tóxicas em cinzas coletadas de incêndios florestais de 2017 na Califórnia. Também continha muitas moléculas que eles não conseguiram identificar, segundo Irva Hertz-Picciotto, epidemiologista e diretora do centro de ciências da saúde da universidade.
Em um estudo em andamento, Hertz-Picciotto descobriu que, além dos sintomas respiratórios, como tosse, respiração ofegante ou crises asmáticas, as pessoas afetadas pela fumaça relatam altos níveis de estresse e ansiedade.
“Ter que evacuar sua casa e vê-la pegar fogo é um grande trauma”, observa ela. “Aspectos de saúde mental podem incluir transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). As pessoas podem ter flashbacks daquele momento.”
Pela primeira vez em sua história como estado, a população da Califórnia está diminuindo. Fatores como queda nas taxas de natalidade, os altos preços das moradias e tributação alta estão presentes há anos, e a covid-19 exacerbou essa tendência, atrasando as mudanças planejadas para o estado. Muitos sobreviventes de incêndios florestais também optaram por recomeçar a vida em outros estados.
“Se eu tivesse filhos provavelmente sairia deste estado”, considera Hertz-Picciotto. Durante o auge da temporada de incêndios florestais, em agosto, ela passará semanas fora de sua casa no norte da Califórnia, onde os incêndios florestais se tornaram comuns.
A redução da poluição do ar causada pela fumaça dos incêndios florestais na Califórnia e no restante do país exigirá a redução do número e da dimensão dos próprios incêndios florestais. Legisladores introduziram leis com o objetivo de melhorar o gerenciamentos das florestas, treinar mais bombeiros e tornar a infraestrutura mais resistente ao fogo.
“Em última análise, até que paremos de queimar combustíveis fósseis, a situação só vai piorar. Não tem como melhorar dessa forma”, afirma Hertz-Picciotto.
Sem abordar as mudanças climáticas, o calor extremo e a seca criarão condições para incêndios florestais, produzindo a fumaça prejudicial que agora se espalha por todo o país, afetando pessoas como Samir Kumar, na cidade de Nova York.
“Eu pensava em trabalhar na Índia e um dos principais obstáculos era a qualidade do ar. Talvez eu tenha que tomar uma decisão semelhante aqui”, conclui Kumar.
Fonte: National Geographic Brasil