As mudanças climáticas já atingiram todos os cantos do planeta e continuarão a reformular a existência humana pelos próximos séculos, com impactos mais intensos à medida que o aquecimento avança, alertam os cientistas.
O aquecimento de 1,1 grau Celsius do planeta desde o período pré-industrial provocou mudanças irreversíveis na Terra, algumas das quais, inevitáveis. Mas uma ação decisiva para cortar as emissões de forma brusca e ampla — mantendo o aumento total da temperatura o mais baixo possível — pode reduzir bastante os riscos de ultrapassarmos outros limiares perigosos que colocariam o planeta ainda mais em risco, de acordo com um novo e extenso relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (“IPCC”, na sigla em inglês) divulgado em 9 de agosto de 2021.
“Para estabilizar o clima, é preciso cessar imediatamente as emissões e ponto final”, afirma Charles Koven, um dos autores do relatório e cientista climático do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, na Califórnia.
O risco de mudanças irreversíveis ficou mais nítido
As temperaturas da Terra subiram de forma relativamente constante por décadas, em perfeita sincronia com o aumento dos gases de efeito estufa. A regra básica é simples: quanto mais emissão de dióxido de carbono, mais calor, e essa relação continuará, segundo consta no relatório.
No entanto os cientistas sabem, há mais de 30 anos, que existem limites ao sistema climático e que, se ultrapassados, podem remodelar drasticamente o mundo como o conhecemos — causando mudanças irreversíveis na escala de tempo humana. A redução das camadas de gelo na Groenlândia e na Antártida além de determinados limites, por exemplo, pode desencadear círculos viciosos de declínios que persistirão ainda que sejam suspensas as emissões amanhã.
“Jogamos roleta russa com o clima e ninguém sabe se há uma bala na agulha”, escreveu Wally Broecker, cientista climático pioneiro em 1987.
Desde então, uma profusão de pesquisas vem demonstrando que muitas dessas consequências podem ocorrer com variações na temperatura global ainda menores do que esperado e que algumas já podem ser sentidas. Embora ainda não se saiba ao certo os limites exatos, alguns podem estar no intervalo de aquecimento entre 1,5 e dois graus Celsius, os mesmos limites de aquecimento sugeridos no Acordo de Paris de 2015.
O novo relatório afirma que o planeta pode aquecer cerca de 1,4 grau Celsius acima das temperaturas pré-industriais até 2100 se for adotada uma estratégia mais ambiciosa de redução das emissões, ou quatro graus Celsius, se menos ambiciosa.
Ainda que sejam alcançadas apenas as menores temperaturas desse intervalo, mudanças irreversíveis poderão ocorrer em todos os cantos do planeta: nas regiões geladas, nos oceanos, em terra e na atmosfera. Mas os riscos se tornam muito maiores e mais difíceis de evitar com mais aquecimento.
“Quanto mais modificarmos o sistema climático em relação ao estado em que ele se manteve nos últimos milhares de anos, maior será a probabilidade de ultrapassarmos limites que mal prevíamos”, afirma Bob Kopp, autor do relatório e cientista climático da Universidade Rutgers.
Algumas dessas mudanças produzem efeitos bastante localizados. O desaparecimento das geleiras nas montanhas, por exemplo, pode afetar profundamente as comunidades que dependem delas para seu abastecimento hídrico. Outras, como o derretimento das principais camadas de gelo, produzem impactos globais. Muitas criam um círculo vicioso: por exemplo, os incêndios florestais são mais propensos a ocorrer em condições de aridez e calor que estão cada vez mais comuns devido às mudanças climáticas. À medida que a vegetação queima, é liberado carbono na atmosfera, acentuando o aquecimento planetário e tornando incêndios futuros ainda mais prováveis — um padrão bastante familiar nos dias de hoje.
O que é assustador, segundo Koven, é que “existem limites que podem ser cruzados e não saberemos que os cruzamos até que sejam ultrapassados”, o que ressalta a importância de fazer o possível para ficar longe dos limites teóricos.
A seguir, explicamos algumas das mudanças possivelmente irreversíveis que ainda podem ser evitadas com medidas decisivas.
Ainda é possível evitar perdas catastróficas nas maiores reservas de gelo da Terra
O derretimento do gelo da Groenlândia e da Antártida já está alimentando uma elevação do nível do mar mais rápida do que em qualquer momento nos últimos três mil anos, ameaçando bilhões de habitantes litorâneos em todo o mundo. As emissões de gases de efeito estufa até hoje já garantem um aumento incessante das temperaturas pelos próximos séculos, mas o ritmo e a intensidade desse aumento ainda estão a nosso alcance, informa o relatório.
O relatório conclui que o nível do mar pode subir pouco mais de 0,5 metro até 2100 se as emissões forem interrompidas drasticamente, ou entre 60 e 90 centímetros se as emissões continuarem aumentando. Contudo, nas piores hipóteses — e se os pontos de inflexão da Antártida forem ultrapassados — esse número pode chegar a cerca de 1,8 metro.
As previsões mais assustadoras só se concretizarão se as camadas de gelo ultrapassarem limites críticos, após os quais as forças da física determinariam um ciclo contínuo de deterioração, mas “certamente é possível reduzir a possibilidade de que isso aconteça diminuindo as emissões”, afirma Baylor Fox-Kemper, um dos autores do relatório e oceanógrafo da Universidade Brown.
Somente a Antártida Ocidental possui gelo suficiente para elevar o nível global do mar em mais de três metros se todo ele for derretido, e suas características geológicas fazem dessa possibilidade uma preocupação concreta. A região tem formato côncavo: a rocha sob a camada de gelo maciço fica abaixo do nível do mar. O oceano é impedido de preencher a cavidade pela própria camada de gelo, que se estende sobre a borda e alcança o oceano em uma parede convexa. Mas se essa parede for rompida ou até mesmo retroceder discretamente para trás da borda, a água do oceano poderá escorrer pela lateral da cavidade e derreter o gelo por baixo, provavelmente acelerando o desaparecimento da camada de gelo.
Há evidências de que poderá ser desencadeado um declínio inevitável no gelo quando o aquecimento da Terra alcançar entre 1,5 e dois graus Celsius acima das temperaturas pré-industriais, e alguns cientistas acreditam que há sinais de que o processo já esteja em andamento, tornando urgente a redução das emissões.
O gelo no polo norte também pode passar a um estado novo e perigoso. Já está bastante vulnerável, pois o Ártico está aquecendo aproximadamente o dobro da média mundial, segundo consta no relatório.
A camada de gelo da Groenlândia, que, se desaparecesse, elevaria o nível do mar global em mais de sete metros, está encolhendo mais rápido do que em qualquer outro momento dos últimos 350 anos e está prestes a exceder o ritmo de degelo dos últimos 12 mil anos. Em um único dia extremamente quente no fim de julho, sua superfície derreteu água suficiente para cobrir todo o estado da Flórida com cinco centímetros de água.
Um dos principais ciclos de retroalimentação que poderia acelerar seu desaparecimento funciona assim: o forte sol durante o verão derrete a neve branca e brilhante acumulada sobre a camada de gelo, expondo o gelo mais denso e escuro abaixo e, algumas vezes, criando poças de água derretida. O gelo e a água mais escuros absorvem mais calor, causando mais derretimento, o que provoca mais degelo em um ciclo destrutivo incessante. O problema da redução do gelo durante os verões intensifica à medida que a camada de gelo fica menor e mais delgada: à medida que perde altura, sua superfície se aproxima do nível do mar, onde o ar é substancialmente mais quente, acelerando ainda mais o seu desaparecimento.
As águas oceânicas aquecidas pelas mudanças climáticas também derretem parte das bordas das camadas de gelo, provocando o rompimento de mais pedaços grandes. Mais gelo escorre para onde ficavam os pedaços desprendidos, provocando a ruptura de mais pedaços e assim por diante. É como tirar um chiclete de uma máquina de venda automática de chicletes: os outros caem no lugar do que saiu para serem os próximos.
O gelo da Groenlândia não desaparecerá amanhã. Os cientistas estimam que levaria mais de mil anos para que desintegrasse completamente e, talvez, milhares de anos a mais se conseguirmos cessar logo as emissões. No entanto, após serem ultrapassados determinados limites, o que alguns grupos estimam que poderiam representar um aquecimento médio de 2,7°C ou talvez ainda menos, seu desaparecimento provavelmente não será mais reversível, o que significa que o gelo continuará desaparecendo por séculos, ainda que as temperaturas se estabilizem.
Apesar disso, “não devemos desistir”, enfatiza Twila Moon, cientista climática do Centro Nacional de Dados sobre Neve e Gelo, no Colorado. “A quantidade de emissões lançadas na atmosfera e o grau de aquecimento que permitirmos afetarão o ritmo das mudanças.”
Limitar o aquecimento a 1,5°C, como constatado em um estudo recente, reduziria pela metade a elevação do nível do mar neste século.
Uma importante corrente oceânica pode desacelerar
Alterações perigosas em uma grande corrente oceânica que controla o clima ao redor da bacia do Atlântico também podem se tornar permanentes com mudanças climáticas descontroladas, concluiu o relatório.
A água circula continuamente pelos oceanos do mundo, transportando calor, carbono e muito mais ao redor do planeta. No Oceano Atlântico, parte dessa gigantesca e poderosa correia transportadora oceânica transfere calor para o norte, à medida que escoa pelo lado oeste da bacia. Esse calor afeta tudo, desde o clima diário nos Estados Unidos e na Europa até o nível do mar ao longo da costa leste dos Estados Unidos e os padrões de precipitação na África.
Mas as mudanças climáticas já estão desacelerando essa corrente. A velocidade da água é, em parte, controlada por sua densidade ao passar pela Groenlândia, onde geralmente resfria de modo rápido e afunda nas profundezas do oceano, como uma bola rolando colina abaixo. Mas a água que atinge esse ponto de imersão está cada vez mais quente e, simultaneamente, o gelo derretido da Groenlândia despeja água doce sobre ela — ambos os fatores deixam a água menos densa e, assim, menos propensa a afundar, o que desacelera toda a circulação. A pesquisa sugere que ela desacelerou cerca de 15% desde meados do século 20 e agora sua circulação está mais lenta do que em qualquer momento dos últimos mil anos.
Um colapso ainda mais extenso pode ocorrer. No passado, a circulação desacelerou e talvez até mesmo tenha cessado, provocando um resfriamento abrupto e uma reformulação geral dos padrões climáticos e de precipitação ao redor da bacia do Atlântico.
O novo relatório do IPCC reafirma que essa desaceleração com efeitos planetários é muito possível, embora improvável antes de 2100. Um declínio persistente, que provavelmente se estenderia por séculos, poderia deslocar os principais padrões de precipitação da Europa e da África de suas localizações atuais para o sul, enfraquecer as atuais monções anuais nas regiões tropicais da África e da Ásia, provocar uma elevação de mais de 30 centímetros no nível do mar ao longo dos costa leste dos Estados Unidos e muito mais.
Ninguém sabe ao certo quais são os limiares perigosos da corrente. “Todos os elementos para um cenário assustador estão presentes”, afirma Paola Cessi, oceanógrafa do Instituto Scripps de Oceanografia, na Califórnia. “E se persistirmos nesse rumo, certamente será inevitável.” Mas ações climáticas enérgicas ainda podem reverter o declínio, prevenindo ou até mesmo evitando os piores impactos.
O permafrost pode se desintegrar
O Ártico possui mais de 23 milhões de quilômetros quadrados de permafrost, solos que permanecem congelados o ano todo. Esses solos contêm grandes quantidades de matéria orgânica morta — segura e inerte enquanto está congelada. Mas quando o permafrost descongela, a matéria morta se transforma em gases de efeito estufa: o superpotente gás metano de efeito estufa, além do dióxido de carbono. Há mais carbono preso nesses solos do que existe atualmente na atmosfera.
Mas o Ártico está aquecendo mais rápido do que o restante do planeta, desestabilizando o permafrost e lentamente liberando seu carbono na atmosfera, o que, por sua vez, contribui para mais aquecimento e mais derretimento. Um relatório preliminar especial do IPCC publicado em 2019 sugeriu que o efeito de retroalimentação poderia intensificar com um aquecimento aproximado de três graus Celsius, mas o processo continuará, ainda que haja um aumento ainda maior nas temperaturas, afirma Koven.
“Acreditamos que esses processos funcionem como uma espécie de retroalimentação positiva, desestabilizando o sistema climático e dificultando ainda mais o cumprimento de nossas metas climáticas”, prossegue ele. Mas reduções acentuadas nas emissões podem desacelerar ou até reverter as emissões de carbono pelo ecossistema do permafrost, evitando o pior cenário dos efeitos de retroalimentação.
A floresta amazônica pode se transformar em cerrado
Nos dias atuais, a floresta amazônica faz algo notável: produz sua própria água.
A chuva que atinge a parte oriental da floresta é proveniente do Oceano Atlântico. As árvores absorvem a água e a expelem de volta na forma de vapor que se condensa em novas nuvens, as quais são deslocadas, por sua vez, pela brisa na direção oeste, chovendo pelo caminho e continuando o ciclo. Uma única molécula de água pode ser reciclada cinco vezes ao longo da extensão da floresta equatorial.
Mas o desmatamento, a degradação florestal e as próprias mudanças climáticas interrompem esse processo, alerta David Lapola, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil, estimulando uma transição da vegetação de floresta para outra mais adaptada a condições áridas e provocando uma mudança duradoura em todo o ecossistema.
As espécies adaptadas à estiagem conservam mais água, emitindo e devolvendo menos água à atmosfera e, com isso, interrompendo o ciclo de chuva, o que acentua a aridez. Espécies de cerrado já estão presentes em trechos no sudeste da Amazônia.
A Amazônia possui aproximadamente entre 150 e 200 bilhões de toneladas de carbono, cerca de 15% do orçamento de carbono restante sugerido por esse relatório do IPCC para ter 50% de chance de manter o aquecimento abaixo de dois graus Celsius. A perda hídrica implicaria a perda de grande parte do carbono armazenado, explica Lapola.
Ainda não se sabe exatamente qual é o limiar crítico. Um estudo sugere que uma perda de 40% da floresta ou um aquecimento superior a quatro graus Celsius poderia causar mudanças permanentes e irreversíveis. Outros acreditam que basta uma mudança ainda menor. O desmatamento desenfreado — estimativas sugerem que quase 20% da floresta foi desmatada — e o aquecimento implacável estão tornando essa perspectiva preocupantemente iminente.
“Essa previsão foi feita há 20 anos, mas, originalmente, a expectativa era que ocorreria a partir de 2050”, afirma Lapola. Mas agora, ao analisar o cenário atual, fica evidente que “foi uma previsão otimista em comparação com o que está sendo observado”.
E a lista não para por aí. É hora de agir.
Essas são somente algumas das mudanças irreversíveis que podem ser esperadas se o clima planetário aquecer ainda mais, segundo o relatório. Grandes mudanças nas monções, a intensificação do aquecimento, acidificação e perda de oxigênio dos oceanos, mais eventos de calor extremo em níveis limítrofes à sobrevivência humana: as mudanças climáticas não deixam nenhum canto do planeta ileso.
E como cada pequena fração adicional de aquecimento produzirá impactos ainda maiores do que a fração anterior, os piores impactos podem ser evitados com ações enérgicas. Por exemplo, uma onda de calor que teria ocorrido historicamente uma vez a cada 50 anos no momento atual é cerca de cinco vezes mais provável; com um aquecimento de dois graus Celsius, será 14 vezes mais provável; mas em um mundo quatro graus Celsius mais quente, seria 40 vezes mais provável, constata o relatório.
Este é o momento categórico para evitar esses riscos adicionais, adverte Tim Lenton, cientista climático da Universidade de Exeter que alerta sobre as mudanças climáticas irreversíveis há anos.
“É preciso agir como se estivéssemos em uma emergência climática”, prossegue Lenton. “As pessoas despertaram e disseram: ‘droga, o cientista não estava blefando’, mas agora, passados 30 anos, esta é a situação atual. É preciso agir agora.”
Fonte: National Geographic Brasil