Rã misteriosa desenvolveu conjunto completo de dentes

Há mais de 200 milhões de anos, os antepassados das rãs modernas perderam os dentes da mandíbula inferior. Então, como é que a rã marsupial de Guenther os recuperou?

As rãs marsupiais de Guenther têm dentição completa, desafiando a teoria evolucionária. Este espécime do adulto, pequeno o bastante para caber na palma da mão, pertence ao Museu de História Natural da Universidade de Kansas.
FOTO DE OF ZACH RANDALL, FLORIDA MUSEUM OF NATURAL HISTORY

Com membros longos e chifres vistosos sobre os olhos, a rã marsupial de Guenther é um anfíbio de aparência bizarra originário das florestas úmidas das encostas andinas. Assim como outras rãs marsupiais, essa espécie, conhecida como Gastrotheca guentheri, não produz girinos que nadam livremente na água, ela cria sua prole sob uma camada de pele que tem nas costas.

Mas esta rã tem uma característica ainda mais intrigante: uma dentição completa.

Espera. Rãs têm dentes? Na verdade, sim: a maioria tem um pequeno número de dentes na mandíbula superior. Mas praticamente todas as 7 mil rãs vivas atualmente não têm dentes ao longo da mandíbula inferior – exceto a G. guentheri.

Infelizmente, esta espécie não é avistada desde 1996 – e, mesmo antes disso, raramente era encontrada ou estudada. Existem poucas amostras preciosas destes animais nas coleções dos museus – deve existir menos de 30 espécimes no mundo inteiro. Portanto, não existiam imagens reais dos dentes em si.

Essa escassez de estudos deixou muitas questões pendentes, incluindo uma muito simples: Qual era a aparência da mandíbula desta rã tão estranha?

Uma tomografia computadorizada da mandíbula e dos dentes da rã marsupial de Guenther, a primeira visão clara dos dentes do animal.
FOTO DE CT SCAN BY DANIEL PALUH
Uma visão aproximada dos dentes da rã.
FOTO DE CT SCAN BY DANIEL PALUH

Daniel Paluh, herpetologista e doutorando da Universidade da Flórida, queria preencher essa lacuna de conhecimento. Juntamente com colegas do Museu de História Natural da Flórida, ele usou um micro-tomógrafo para examinar os crânios de seis espécimes de G. guentheri que estão preservados em álcool há décadas.

As imagens e análises resultantes deste estudos, publicados em 10 de novembro na revista científica Evolution, fornecem o primeiro vislumbre detalhado da mandíbula e dos dentes desta espécie.

Dentes perdidos, dentes recuperados 

O estudo também ajudou a responder a outras questões. Há cerca de 230 milhões de anos, os ancestrais das rãs modernas perderam para sempre os dentes de suas mandíbulas inferiores. Assim sendo, por que a rã marsupial de Guenther tem dentes e como foi que eles surgiram?

Paluh e seus colegas demonstraram claramente que esses dentes são genuínos, formados por um tecido ósseo chamado dentina e envoltos em esmalte, refutando sugestões de que essas estruturas podiam ser “pseudo-dentes”. Os pesquisadores também descobriram que esses dentes, provenientes do Museu de História Natural da Universidade do Kansas, se parecem muito com os dentes presentes ao longo das mandíbulas superiores de outras rãs marsupiais – reforçando a sua autenticidade.

Essas descobertas fornecem evidências tentadoras que refutam uma teoria evolucionária centenária conhecida como Lei da Irreversibilidade de Dollo. Cunhada pelo paleontologista Louis Dollo, a teoria postula que, uma vez que um traço é perdido em um grupo de organismos, desaparece para sempre. Um organismo não pode evoluir novamente algo que o seu antepassado perdeu, assim como humanos não desenvolveram caudas novamente.

Embora a lógica da teoria pareça estar correta, biólogos evolucionistas já descobriram brechas na Lei de Dollo com exemplos que vão desde lagartos que desenvolveram novamente a postura de ovos e bicho-paus que perdem e recuperam as asas.

Uma ilustração da rã marsupial de Guenther, que não é avistada por cientistas desde 1996.
FOTO DE ILLUSTRATION BY GABRIEL UGUETO

Mas a evolução de dentes de G. guentheri pode ser o caso mais improvável de todos. Em 2011, o biólogo evolucionista John Wiens reconstruiu as relações evolutivas entre 170 espécies diferentes de rãs para criar uma linha temporal   entre o momento em que as rãs perderam os dentes inferiores, há 230 milhões de anos, e o momento em que a G. guentheri recuperou os seus dentes. Wiens descobriu que os dentes só foram recuperados há cerca de 20 milhões de anos, um intervalo de tempo “sem precedentes” entre a perda de uma característica e o seu reaparecimento.

Wiens, que atualmente trabalha na universidade do Arizona e não estava envolvido no estudo recente, acredita que G. guentheri teve uma vantagem quando se tratava de desenvolver novamente os dentes – ainda tinha uma rede funcional de genes para criar dentes ao longo da mandíbula superior.

“Não é como se eles tivessem que desenvolver novamente os dentes a partir do zero”, disse Wiens. “É só uma questão de os colocar em um lugar onde não estavam há 200 milhões de anos.”

Esse processo seria provavelmente impossível em outros anfíbios saltitantes, tais como os sapos, que são completamente desdentados. John Abramyan, um biólogo na universidade de Michigan-Dearborn que também não estava envolvido no estudo, investigou recentemente os genes que codificam o esmalte nos sapos que perderam completamente seus dentes há cerca de 60 milhões anos. Ele descobriu que o genes haviam essencialmente se degenerado em pseudogenes ao longo de milhões de anos.

“Estes genes estão essencialmente desempregados” e não são funcionais, disse Abramyan. “[Mas] como a maioria das rãs ainda produz dentes em suas mandíbulas superiores, em teoria, têm todas as ferramentas necessárias para fazer um dente funcional, não sendo assim um salto evolutivo.”

Um enigma evolucionário

No entanto, isso não nos diz por que ou como essa espécie recuperou seus dentes inferiores, embora a dieta certamente tenha um papel importante, disse Paluh. Sendo a principal ferramenta que os animais usam para morder e mastigar seus alimentos, os dentes são muitas vezes moldados pelo que está no cardápio. Paluh acredita que a tendência da maioria das rãs de comer pequenos insetos, e o uso de línguas pegajosas para prender presas, tornaram os dentes menos importantes para algumas espécies. Porém, a G. guentheri possui um apetite saudável que inclui presas do tamanho de lagartos e outros sapos. Quando se tenta caçar presas grandes, pode ser útil ter dentes inferiores para prender uma presa que está se contorcendo.

Mas se os dentes reapareceram para ajudar a rã marsupial de Guenther a engolir presas maiores, por que os dentes não evoluíram em outras rã carnívoras? Algumas rãs, como os enormes sapos “Pacman” da América do Sul, ostentam dentes pontudos ao longo da mandíbula inferior para segurar a presa. Mas esses dentes são pseudo-dentes – extensões ósseas da mandíbula, sem dentina e esmalte.

Algumas respostas podem estar escondidas nos embriões das rãs-arborícolas, de acordo com Alexa Sadier, uma bióloga evolucionária da universidade de Califórnia-Los Angeles. Apesar de explorar principalmente a evolução dos dentes em morcegos, ela recentemente fez a revisão de vários casos em que características desaparecidas permaneciam nos estágios iniciais do desenvolvimento de uma criatura. Sadier acredita que comparar o desenvolvimento da G. guentheri com o de embriões de outras espécies de rãs pode ajudar a obter informações sobre como e quando os genes ativam ou desativam a formação dos dentes.

Ela espera que, se os investigadores analisarem os embriões, encontrarão mais evidência dos dentes que desapareçam durante desenvolvimento- assim como o mecanismo genético que acompanha esse processo.

Paluh também espera fazer um trabalho genético de desenvolvimento na rã, mas embriões frescos não são uma opção viável – um espécime vivo de G. guentheri não é avistado na natureza desde 1996, nem no sopé úmido e vulcânico da Reserva Ecológica de Cotacachi Cayapas, no Equador, onde costumavam prosperar. Embora pouco se saiba sobre esses animais, sabe-se que seu número diminuiu à medida que a agricultura e a exploração madeireira devastam as florestas úmidas do Equador e da Colômbia. Alguns temem que a espécie já esteja extinta.

No entanto, não seria a primeira vez que uma rã supostamente extinta seria redescoberta. Em 2018, por exemplo, pesquisadores encontraram a rã marsupial com chifres (Gastrotheca cornuta) depois de não a conseguir avistar por 13 anos nas mesmas florestas úmidas equatorianas onde a G. guentheri vivia.

Paluh espera que a rã marsupial de Guenther reapareça-até porque amostras vivas deste anfíbio serão cruciais para aprender mais sobre seus dentes e resolver este enigma evolucionário.

Fonte: National Geographic Brasil