Como a Argentina reagiu após Bolsonaro rejeitar ajuda para vítimas das enchentes na Bahia

Moradores de Ilhéus, no sul da Bahia, estão há dias embaixo d’água – REUTERS

O governo argentino do presidente Alberto Fernández ofereceu ajuda humanitária ao governo brasileiro para o socorro às vítimas das enchentes no Estado da Bahia.

A ajuda seria o envio de uma equipe de dez pessoas do organismo chamado Cascos Blancos (Capacetes Brancos), vinculado ao Ministério das Relações Exteriores do país, com especialização e longa trajetória de atuação em situações de tragédias internacionais.

O governo brasileiro dispensou a ajuda, argumentando que já está trabalhando nesta situação e, caso necessário, aceitaria a oferta argentina.

Mais tarde, o governador da Bahia, Rui Costa (PT), afirmou no Twitter que a Argentina ofereceu ajuda diretamente às cidades afetadas, apesar da negativa do governo Bolsonaro. “Me dirijo a todos os países do mundo: a Bahia aceitará diretamente, sem precisar passar pela diplomacia brasileira, qualquer tipo de ajuda neste momento”, escreveu o petista.

A dispensa brasileira foi destaque na imprensa do Brasil e da Argentina e noticiada também até em Portugal.

“Bolsonaro rejeitou a ajuda argentina para socorrer os danificados pelas inundações e a oposição o acusa de politizar o desastre natural”, publicou, nesta quinta-feira, o jornal argentino La Nación, de Buenos Aires.

A agência portuguesa Lusa também fez eco da negação do presidente brasileiro à oferta do país vizinho, informando que a resposta do Brasil foi a de que “tem recursos suficientes” e que há dois anos apresentou o mesmo argumento “quando rejeitou apoio para combater incêndios na Amazônia”.

Após a polêmica gerada, Bolsonaro disse, em suas redes sociais, nesta quinta-feira, que “o fraterno oferecimento” era “muito caro para o Brasil” e “aconteceu quando as Forças Armadas e a Defesa Civil já prestavam assistência local”.

Bolsonaro disse ainda que foi informado, através do Itamaraty, que a Chancelaria argentina tinha oferecido a ajuda “para trabalho de almoxarife e seleção de doações, montagem de barracas e assistência psicossocial à população afetada pelas enchentes na Bahia”.

Em suas redes sociais, na noite de quarta-feira, o governador da Bahia, Rui Costa, do Partido dos Trabalhadores (PT), chegou a agradecer “aos argentinos” e pediu “celeridade” ao governo federal para a “missão estrangeira”.

A ajuda, como Costa detalhou, consistiria no envio de profissionais especializados nas áreas de água e de saneamento, logística e apoio psicossocial para vítimas de desastre. “Isso inclui, por exemplo, a oferta de comprimidos para a potabilização de água”, escreveu o governador baiano.

Mais de 20 pessoas morreram durante alagamentos e deslizamentos na Bahia – REUTERS

A resposta do governo federal brasileiro ocorre num contexto de tragédia na Bahia, onde as chuvas que começaram no início do mês, já deixaram 24 pessoas mortas, 434 feridas, 630 mil pessoas afetadas e mais de 37 mil desabrigados, segundo dados da Superintendência de Proteção e Defesa Civil da Bahia.

Relação conturbada

A dispensa à participação dos especialistas argentinos contribuiu para alimentar o ambiente de distanciamento político entre os dois presidentes.

O presidente Alberto Fernández ratificou sua proximidade com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao recebê-lo como convidado especial para o ato público que marcou seus dois anos de gestão, no dia dez de dezembro passado, na Praça de Maio, que fica em frente à Casa Rosada.

Em seu discurso, o ex-presidente brasileiro, principal opositor de Bolsonaro na provável disputa eleitoral de 2022, agradeceu a visita de Fernández em sua prisão em Curitiba, em julho de 2019.

Naquela ocasião, Fernández realizava campanha política à Presidência. “Estou aqui para agradecer de coração a cada homem e mulher da Argentina que me deram sua solidariedade quando fui preso no Brasil. Quero agradecer ao meu companheiro Alberto Fernández”, disse Lula diante da multidão.

Presidente argentino, Alberto Fernández, é próximo de Lula – GETTY

À BBC News Brasil, o embaixador da Argentina em Brasília, Daniel Scioli, descartou, porém, nesta quinta-feira, que a rejeição de Bolsonaro possa ter implicações políticas em relação ao seu país.

“Há três dias oferecemos a ajuda humanitária com o envio de dez profissionais da comissão Cascos Blancos, que trabalha dentro da Chancelaria argentina. O Itamaraty respondeu de maneira muito elegante, como sempre ocorre com meu amigo França (Carlos Alberto Franco França), que a ajuda não era necessária no momento, mas que, se necessário, a aceitarão”, disse Scioli.

Quando perguntado sobre como a Argentina percebeu a resposta brasileira, o embaixador argentino disse: “Agradecemos e afirmamos que, se necessitarem, estamos à disposição”.

De acordo com o Itamaraty, conforme veiculado na imprensa brasileira, a situação “está sendo enfrentada com a mobilização interna de todos os recursos financeiros e de pessoal necessários” e que “na hipótese de agravamento da situação, requerendo-se necessidades suplementares de assistência, o governo brasileiro poderá vir a aceitar a oferta argentina de apoio da Comissão dos Capacetes Brancos, cujos trabalhos são amplamente reconhecidos”.

‘Muito caro’ x ‘custo zero’

Bolsonaro vem sendo criticado por curtir normalmente as férias em Santa Catarina enquanto população da Bahia sofre com as chuvas – EPA

Mas e ao fato de o presidente Bolsonaro ter dito que a ajuda seria “muito cara”?, perguntamos. Ao que Scioli respondeu: “Tenho certeza que quando ele disse ‘muito caro’ se referia a sentimentos porque estaria muito agradecido e valorizando (a oferta de ajuda) e não se referindo de nenhuma maneira a muito caro porque Cascos Blancos assumem todos os gastos e representariam custo zero para o Brasil”. De acordo com o embaixador, o único possível apoio à equipe argentina seria “talvez para alojamento”.

Ex-vice-presidente da Argentina, durante a gestão do ex-presidente Nestor Kirchner, entre 2003 e 2007, e ex-governandor da província de Buenos Aires, Scioli é conhecido, entre políticos da situação peronista e da oposição, como político habilidoso e que “trabalha para evitar os enfrentamentos”, segundo fontes da Chancelaria argentina.

Seu perfil teria sido decisivo para que fosse nomeado embaixador no Brasil, em meio a troca de farpas entre Bolsonaro e Fernández, na campanha presidencial e no início do governo argentino, e também de distanciamento inédito na história recente entre presidentes dos dois países.

Nas recentes reuniões virtuais do Mercosul e do G20, Bolsonaro e Fernández fizeram declarações sobre a rivalidade no futebol.

“Você ainda não me deu os parabéns”, teria dito o argentino ao brasileiro, durante a reunião do G20, depois que a seleção argentina venceu a Copa América, de acordo com a agência de notícias Telám, de Buenos Aires. Logo depois, os dois tiraram fotos juntos e sorridentes no evento.

Mas como em um ziguezague político, o clima teria voltado a ser menos afável, logo após o anúncio da visita de Lula para o ato do dia dez de dezembro, que marcou ainda o Dia da Democracia e dos Direitos Humanos, como informou a imprensa argentina.

Causou surpresa, por exemplo, a declaração de Bolsonaro sobre a exigência de quarentena para passageiros desembarcando da Argentina no território brasileiro diante do avanço da variante ômicron do coronavírus. Naquele momento, no fim de novembro, esta cepa ainda não causava preocupação na Argentina, onde o índice de vacinação atinge a mais de 70% com as duas doses, segundo dados do Ministério da Saúde.

De acordo com fontes do governo brasileiro, “a relação bilateral, envolvendo os vários ministérios e administrações corre seu curso normal e de forma fluída, apesar do distanciamento entre os dois presidentes”.

Fonte: BBC