Foram quase três anos até que a família de Natalia de Oliveira recebeu o aguardado telefonema com a notícia de que o corpo da irmã, Lecilda de Oliveira, havia sido encontrado. Ela diesapareceu enquanto trabalhava em 25 de janeiro de 2019, atingida pela avalanche de rejeitos após o rompimento da barragem da mina Córrego do Feijão, da Vale, em Brumadinho (MG). Outras 269 pessoas, incluindo duas gestantes, também morreram imediatamente.
“A gente espera tanto esse telefonema, e quando ele vem, você vive tudo de novo”, diz Natália à DW Brasil. “A minha mãe tem 82 anos e tinha medo de morrer e não sepultar a filha.”
Lecilda foi identificada por segmentos de seu corpo e enterrada em 30 de dezembro de 2021. Famílias de seis vítimas ainda esperam para velar suas joias, como costumam chamar os que faleceram na tragédia.
Mesmo após a identificação da irmã, Natália segue no comitê de buscas dos desaparecidos. “Todas as famílias continuam unidas. É um compromisso estabelecido, é missão, e não sei largar eles pra trás. Todos serão encontrados”, afirma.
Os 1.095 dias da Operação Brumadinho dos bombeiros marcam o maior trabalho de busca e salvamento da história, segundo a corporação. No momento, as atividades no local estão paralisadas devido aos riscos trazidos pelas fortes chuvas na região.
A área atingida pelos cerca de 10,5 milhões de metros cúbicos de rejeitos se estende por 270 hectares – o equivalente a 270 campos de futebol. A lama, que despencou de uma altura equivalente a um prédio de 28 andares e escorreu pelo vale a uma velocidade de 70 quilômetros por hora, praticamente não deu chance de sobrevivência para quem encontrou pelo caminho.
Ninguém foi preso
Muitos familiares dos mortos não gostam de falar publicamente sobre o sofrimento que têm enfrentado. Eles dizem não se conformar com o que consideram impunidade: ninguém foi preso até agora.
“É uma completa falta de justiça. A Vale é um CNPJ, não posso prender a Vale. Mas posso prender as pessoas [responsáveis]. Onde elas estão? Como estão vivendo nesses três anos? Será que elas têm coragem de colocar a vida dos outros em risco, de matar outras pessoas?”, questiona Natália.
Ela diz o mesmo sobre a empresa alemã TÜV Süd, que emitiu um certificado de estabilidade da estrutura meses antes do colapso. “A TÜV Süd também tem culpa, ela também causou [o rompimento]. A empresa nunca nos pediu desculpa, nunca assumiu ter a mão suja de sangue. A única maneira de ela pagar o mal que fez é financeiramente. Não existe reparação para uma perda familiar”, defende Natália.
Em janeiro de 2020, o Ministério Público (MP) de Minas Gerais apresentou uma denúncia contra 16 pessoas ligadas à Vale e à TÜV Süd por homicídio doloso duplamente qualificado e por diversos crimes ambientais. Segundo os promotores, um conluio entre as empresas teria levado à tragédia em Brumadinho. A denúncia foi aceita pela Justiça estadual.
Mas em outubro de 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou esse processo criminal e passou o caso para a Justiça Federal, após analisar o pedido de defesa de Fábio Schvartsman, então presidente da Vale. O processo foi enviado para reavaliação, e os denunciados, dessa forma, deixaram de ser réus.
Às vésperas do terceiro aniversário das mortes, o MP recorreu da decisão. Os promotores argumentam que “os acusados agiram assumindo o risco de provocar mortes, pois antes da tragédia efetuaram um cálculo econômico envolvendo o valor das vidas que seriam perdidas com a então provável ruptura da barragem”. Os responsáveis estariam “cientes do estado crítico da estrutura” e teriam se omitido, alega a ação.
Na Alemanha, um outro processo em andamento julga a responsabilidade da TÜV Sud.
Impactos duradouros
Rosângela Maria de Jesus, de 51 anos, nunca imaginou que a casa onde nasceu e cresceu seria tomada pelos rejeitos – três anos depois do rompimento. A construção, às margens do rio Paraopeba, no bairro Canto do Rio, em Brumadinho, foi atingida pela enchente que castigou a região neste mês.
Acostumada a ver a água invadir o local, Jesus conta que vivencia algo inédito. “O rejeito veio junto com a enchente. Depois que seca a água, vai ficando um barro seco por cima. Ele tem brilho, e a gente não consegue tirar, parece que tem uma cola. É bem fininho”, contou à DW Brasil.
Desde 11 de janeiro, ela dorme num abrigo providenciado pela Igreja Católica na cidade, onde passou a cozinhar para as 80 pessoas acolhidas. “Sem chances de voltar pra casa, ainda tem muito minério pra ser tirado de lá de dentro. Eu perdi toda a mobília. Desde a tragédia [de 2019], o rio ficou muito assoreado. A gente nunca mais vai dormir sossegado”, diz, em referência ao medo de novos rompimentos.
A quase 200 quilômetros do epicentro da tragédia, em Curvelo, Eliana afirma travar uma batalha diária para se manter no sítio onde vive, próximo ao Paraopeba. A poluição trazida pelos rejeitos aniquilou todas as atividades que geravam renda para a família: pescaria profissional, cultivo de alimentos e criação de animais.
“Minha família é muito atingida. Perdemos toda a renda. Meu filho está em sofrimento mental, perdeu a vontade de viver”, disse por telefone à DW Brasil. No dia em que falou com a reportagem, Eliana estava no hospital, aonde chegara de madrugada para salvar a vida do filho, de 28 anos.
Ela recebeu por um ano um auxílio emergencial da Vale, mas água potável para o consumo da família nunca foi fornecida pela mineradora. O abastecimento desde então é feito por caminhões da Copasa, que enchem um tanque na comunidade.
“A gente é obrigada a pagar por essa água que chega em casa suja. Não é seguro. A água é fedida, escura”, afirma Eliana.
Os assessores técnicos que atuam nos territórios atingidos confirmam o cenário caótico. “Nós vemos uma violência, violações de direitos que acabam sendo invisibilizadas”, afirma o Instituto Guaicuy, uma das três assessorias técnicas independentes nomeadas pela Justiça para apoiar moradores na busca por reparação.
Até o fim de 2021, o instituto enviou à Vale 273 ofícios solicitando atendimento a atingidos, que pedem reconhecimento de direitos como pagamento emergencial, fornecimento de água ou ração, por exemplo.
“Nós presenciamos muito adoecimento, indignação, revolta. A ré do processo, a Vale, acaba sendo a última ditadora das regras do jogo”, afirma o corpo técnico.
Questionada pela DW Brasil, a Vale respondeu que faz entregas emergenciais via caminhão pipa e de água mineral em cerca de 620 núcleos familiares. São atendidos quem não possuía água encanada e fazia captação diretamente do Paraopeba; usuários de poços artesianos e cisternas a até 100 metros da margem do rio, de Brumadinho a Pompéu.
Eliana, que mora a 200 metros da margem, não compreende esse critério adotado. Impedida de usar a água contaminada pelos rejeitos do Paraopeba e cansada de reclamar, a moradora diz sofrer diversas tentativas de intimidação. “A Vale sabe o que causou na nossa vida. Os funcionários dela vão na nossa casa, fazem muitas perguntas, vão embora e depois voltam para negar o direito. Eles fazem tudo o que podem pra maltratar a gente”, denuncia.
Sensação de insegurança
Natália de Oliveira diz ter acreditado que as mortes da irmã e das outras vítimas trariam mudanças. “A gente se agarrou na história de que essas pessoas fizeram esse sacrifico de morrer aqui pra mudar a história da mineração. Mas a cada dia chega uma notícia de que outras barragens podem romper, de que outras famílias podem passar por isso”, afirma.
Com as fortes chuvas neste mês, uma vistoria feita pelo MP em Minas Gerais constatou que, das 31 estruturas supervisionadas por apresentarem algum grau de emergência, 18 terão que passar por intervenções.
Uma alerta emitido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS) pede providências.
Para os especialistas, os sucessivos rompimentos, transbordamentos, “obras emergenciais” e ameaças de colapso de dezenas de barragens são exemplos dos riscos que envolvem o afrouxamento das regras ambientais no país.
“Minas é um dos estados pioneiros na chamada flexibilização do licenciamento ambiental”, diz a nota. “O avanço da mineração a qualquer custo, enfim, que se sustenta na pilhagem, no abuso de poder e na elevação de estruturas de engenharia erguidas para além dos limites técnicos aceitáveis, coloca o meio ambiente e a vida da população em risco”, argumenta.
Para Maria Teresa Corujo, ativista e ex-conselheira da Câmara de Atividades Minerárias do Conselho Ambiental de Minas Gerais, que denunciou várias ilegalidades durante o processo de licenciamento que autorizou a ampliação das atividades da Vale em Brumadinho um mês antes da tragédia, as mudanças esperadas não vieram.
“As duas tragédias, Mariana e Brumadinho, não trouxeram qualquer segurança quanto ao que é certificado pelas mineradoras. Pelo contrário. Estamos diante de situações suspeitas quanto ao risco de barragens. Estamos cada vez mais preocupados”, afirma.
Fonte: Deutsche Welle