Mônica Pinto / AmbienteBrasil
Mesmo em meio à exótica fauna humana da feira de artesanato realizada no Largo da Ordem, Centro de Curitiba, não passa despercebida a figura de Efigênia Ramos Rolim. Aos 75 anos, um metro e meio de altura, cabelos longos e totalmente brancos, ela é uma celebridade naquele aglomerado com aproximadamente mil barracas, entre as quais passeiam milhares de pessoas todos os domingos. Turistas não perdem a oportunidade de fotografá-la. É comum ver duas ou três máquinas em ação ao mesmo tempo, interrompendo a passagem caótica dos visitantes para imortalizar performances que incluem jogar-se no chão, pernas para cima.
Franzina e folclórica, Efigênia acumula méritos que transcendem a capacidade em sobressair lançando mão de um vestuário extravagante, sempre ornado por papéis de bala e embalagens plásticas. Como um clown a serviço do meio ambiente, ela tornou-se um símbolo não só do exercício criativo em materiais recicláveis, mas, sobretudo, da mobilidade social que se pode amealhar quando unem-se firmes convicções a boas doses de coragem. “Estou salvando a Terra”, diz, nas conversas com os muitos freqüentadores de sua barraca na feira.
Lá, ela vende bonecos, chapéus e vários estranhos instrumentos, tudo confeccionado em plásticos, borrachas, papéis, restos de couro – enfim, coisas que, para a maioria, seriam classificadas de imediato como lixo. À primeira vista, é difícil apontar qual a utilidade de algumas das peças, mas aí surge outro dos talentos de Efigênia: o de contadora de histórias. É assim que um tubo recoberto de couros, panos e tampas de garrafas Pet transforma-se no “Dr. Penenem”. No contexto de uma narração em que traficantes de animais lutam com a fiscalização do Ibama, esse personagem é o “médico e guardião da floresta”. Efigênia sopra o tubo e, desta forma, aciona o alarme do “Dr. Penenem”. O objeto esdrúxulo ganha alma e serventia.
Com os bonecos é a mesma coisa. Atores de um teatro cujo cenário é a educação ambiental, eles ensinam que o mosquito da dengue não deve ser combatido com venenos – o que mataria também insetos inocentes. Nessa parábola, um dos personagens, após aprender que o perigo mora sobretudo em pneus abandonados a céu aberto, carrega nas tintas. Exagera e põe-se a retirar até aqueles pneus com que borracharias identificam ao público seu ramo de serviço. Efigênia dá risadas enquanto narra tamanha atrapalhação.
Criatividade nas peças que sustentam seu jogo cênico levaram-na a locais como o Senado, no decorrer das comemorações pelos 500 anos do Brasil, e ao Encontro Nacional dos Contadores de Histórias, na terceira edição do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (2003). No mesmo ano, em setembro, foi apresentada como um dos destaques do Simpósio Internacional de Contadores de Histórias, promovido pelo SESC no Rio de Janeiro.
Natural de Abre Campo, em Minas Gerais, Efigênia mudou-se em 1964 para Londrina, no Paraná, com o objetivo de “tocar lavoura”. Poucos anos depois, uma “geada braba” matou a produção e o sonho. Restou-lhe um marido doente. Em 1971, busca novo endereço, Curitiba, onde o companheiro poderia receber melhor assistência médica. Depois da caminhada como lavadeira e bóia-fria, sucessivos percalços e decepções, perde-o em 1988.
Em 1990, já descobrira em si pendor para as rimas. Expunha seus livretos na Feira do Poeta, no centro de Curitiba, e, numa dessas idas e vindas, avistou algo no chão. “Brilhou nos meus olhos, pensei que fosse uma jóia”, conta. Nesse momento exato, quando se abaixou e conferiu a realidade, passava o futuro a limpo. Sua “jóia” era um papel de bala. “Escutei uma voz no meu coração: como vou dar vida a esses míseros caídos, que perderam o recheio?”. A resposta foi sua arte. “Tudo tem hora de nascer”, acredita a “Rainha de Papel”, título do documentário que retrata sua trajetória, produzido em 98, com direção de Estevan A. Silveira.
Há quem veja estilos semelhantes entre as peças de Efigênia e as do sergipano Arthur Bispo do Rosário, estas produzidas em seus anos de internamento na Colônia Juliano Moreira, o maior e mais antigo manicômio do Rio de Janeiro. Enquanto a intelectualidade hoje já nem mais discute se ele era “gênio ou louco”, a “Rainha do Papel” adentrou nas hostes da arte pela porta da frente. Não por acaso, em maio deste ano, ela era um dos três da exposição “Museu Bispo do Rosário + 3”, no respeitado – e moderníssimo – Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba.
Nada disso livrou-a de uma insegurança financeira que a leva, eventualmente, a sugerir a doação de R$ 1 pela conversa ou pelas fotos. Efigênia é, assim, um retrato da arte brasileira: os holofotes não lhe bastam para a sobrevivência. Nem com o trabalho constante no Projeto Fera – Festival de Arte da Rede Estudantil do Paraná -, do Governo do Estado, em que ministra oficinas.
Mãe de nove, avó de 16 e bisavó de quatro, Efigênia Ramos Rolim diz: “vim e venci, graças a Deus”. Mas a melhor expressão de seu espírito libertário e positivo talvez esteja em seus versos reproduzidos num blog: “eu não sei pra onde eu vou / ninguém sabe de onde eu vim / mas se Deus me convidou / vou ficar até o fim”.
(Fotos: Mônica Pinto)