Contra mudanças climáticas, Embrapa faz intercâmbio com comunidades tradicionais

Quando o pesquisador Aldicir Scariot foi escalado para coordenar um projeto com comunidades extrativistas do norte de Minas Gerais, ele resolveu mapear todas as áreas que pertenciam às famílias para estudar como aprimorar a produção local sem que fosse preciso desmatar áreas vizinhas.

Doutor em biologia pela Universidade da Califórnia e membro da unidade da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) que lida com recursos genéticos e biotecnologia, Scariot estava a par do debate científico mais avançado sobre o tema. Mas ele teve de mudar os planos ao perceber que as comunidades encaravam seus territórios de outra maneira.

“A gente pensava muito na propriedade e nas divisões espaciais: aqui área produtiva, ali unidade de conservação. Mas as comunidades não olham só para a sua propriedade, e sim para a paisagem como um todo. Para elas todas as áreas são utilizáveis e passíveis de conservação e manejo”, ele conta à BBC Brasil.

Os trabalhos se moldaram à realidade, e a Embrapa passou a trabalhar não só nas áreas em posse das comunidades. Desde o início ficou claro para Scariot que seria preciso conciliar a perspectiva acadêmica com a tradicional.

“O desafio foi se despir da prepotência de achar que o único conhecimento válido era o acadêmico. Comunidades indígenas e tradicionais detêm um conhecimento que às vezes é milenar: ele vai passando de geração a geração e foi construído no dia a dia empiricamente, na observação e convivência com a natureza.”

Essa postura, diz o pesquisador, norteia os trabalhos da Embrapa num de seus projetos mais amplos: o Bem Diverso, coordenado por Scariot, apoiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e financiado pelo Fundo Global para o Meio Ambiente.

Iniciado há um ano e meio, o programa engloba seis territórios brasileiros com baixo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano): o Alto Rio Pardo (MG), o sertão do São Francisco (PE e BA), Sobral (CE), o Médio Mearim (MA), o Marajó (PA) e o Alto Acre (AC).

Segundo o pesquisador, mais de cem pessoas atuam no projeto, entre funcionários da Embrapa e parceiros locais. Em cada área a equipe escolheu espécies vegetais relevantes para as comunidades e tenta melhorar a qualidade dos produtos desde a coleta até o processamento. O objetivo é aumentar a renda das famílias e preservar os ecossistemas locais.

‘A touceira é como uma mãe’ – Coordenador do projeto no Marajó, o pesquisador da Embrapa Silas Mochiutti trabalha com produtores de açaí, principal fonte de renda de ribeirinhos da região. Mochiutti pesquisa a atividade há décadas, comparando diferentes métodos de manejo. “É difícil separar o que levamos a eles do que aprendemos com eles. Muitas informações vêm da vivência dos produtores, de coisas que vimos que davam certo”, afirma.

Uma das técnicas incorporadas pela empresa envolve a reprodução dos açaizeiros. Mochiutti diz ter ouvido de muitos ribeirinhos que, ao cortar um açaizeiro para que ele rebrote, deve-se extirpá-lo rente ao solo, caso contrário a árvore não renasce.

Presidente de uma cooperativa de produtores de açaí em Afuá (PA), Francisco Nazaré de Almeida explica à BBC Brasil o porquê da prática. “A touceira [conjunto de palmeiras originadas de um caule principal] é como uma mãe: enquanto ela tem um filho mamando, não consegue gerar outro. Então tem que cortar bem baixinho para que esse filho vá embora, os nutrientes do tronco possam descer e a touceira brote outra vez.”

Outra técnica absorvida pela Embrapa trata do transporte de mudas de açaí. O ribeirinho diz que só podem ser deslocadas mudas que estejam com as folhas dobradas. “A gente diz que essa muda está com o olho fechado – é como se ela estivesse dormindo na hora da mudança. Se a gente transporta uma muda de olho aberto, ela não pega.”

Silas Mochiutti diz que as duas técnicas jamais foram testadas em laboratório, mas passaram a ser difundidas por causa do sucesso verificado pelos produtores. “Às vezes são fenômenos quase inexplicáveis, mas que na prática dão resultado.”

O pesquisador diz que um ponto central do modelo proposto aos ribeirinhos é a combinação entre açaizeiros e outras espécies de árvores. Ele afirma que, conforme o preço do açaí subiu nos últimos anos, muitos ribeirinhos começaram a derrubar a mata nativa para ampliar as áreas de produção.

Mas Mochiutti diz que a estratégia não funciona. Segundo ele, é importante manter outras espécies porque essas árvores servem de abrigo a abelhas que polinizam os açaizeiros, ajudam a fixar nutrientes no solo e protegem as palmeiras de doenças. Ele diz que em áreas que mesclam árvores nativas e açaizeiros, a produção de açaí chega a cem sacas por hectare, enquanto oscila entre 20 e 30 sacas em áreas pouco diversas.

Mudanças climáticas – Presidente da Embrapa, Maurício Antônio Lopes diz à BBC Brasil que pressões para que a agropecuária brasileira reduza a emissão de gases causadores do efeito estufa têm estimulado a pesquisa de técnicas que conciliam preservação e produção. “O Brasil é hoje o país com a política pública mais bem estruturada de agricultura de baixo carbono, que depende inteiramente de tecnologias desenvolvidas por nós”, ele afirma.

Entre as técnicas já disponíveis, Lopes destaca o modelo lavoura-pecuária-floresta (que combina criação de gado, cultivo agrícola e florestas plantadas), a fixação biológica de nitrogênio (que reduz a necessidade de fertilizantes no plantio da soja) e o plantio direto na palha (que diminui a erosão e amplia a absorção de água pelo solo).

O presidente da Embrapa diz que pesquisas com comunidades tradicionais e produtos nativos são outro elemento importante da estratégia da empresa frente às mudanças climáticas. Além das atividades do programa Bem Diverso, há pesquisas em curso sobre o controle de pragas em cupuaçuzeiros, o desenvolvimento de variedades de açaí, técnicas de manejo do umbu, o uso da permacultura e práticas agroflorestais, entre outras.

Um dos projetos mais bem sucedidos da Embrapa nesse campo, segundo Lopes, foi o resgate de um maracujá nativo do Cerrado, mais doce e menos azedo que os tipos mais comuns.

“Era uma planta daninha que, uns 20 anos atrás, crescia aí pelos matos”, ele diz. Pesquisadores estudaram a planta e fizeram vários cruzamentos até chegar à versão final, batizada de Pérola do Cerrado. “Hoje é uma alternativa econômica fantástica para produtores da região”, afirma. Segundo Lopes, a fruta causou frisson entre chefs estrangeiros que visitaram recentemente a Embrapa.

‘Sabedoria de faculdade’ – No Alto Rio Pardo, a Embrapa distribuiu sementes do novo maracujá a comunidades geraizeiras, populações tradicionais que vivem no Cerrado do norte mineiro. Membro da comunidade de Água Boa, a geraizeira Maria Neuracy de Fá diz que o Pérola do Cerrado se adaptou bem às roças locais e virou fonte de renda para o grupo.

Ela elogia a convivência com os pesquisadores. “A gente trabalha e colhe os frutos no Cerrado, e eles vêm com a sabedoria deles de faculdade. É uma troca de experiência.”

A geraizeira diz que um dos pontos mais úteis do programa é o apoio ao intercâmbio com outras comunidades tradicionais. Na quinta-feira, ela viajou para Diamantina (MG) para aprender com moradores locais como fazer cosméticos a partir de frutos e plantas medicinais.

Mas nem todas as comunidades geraizeiras sentiram os efeitos do trabalho. Representante do grupo na comissão de povos tradicionais do governo de Minas, Orlando dos Santos disse desconhecer os trabalhos da Embrapa na região do Alto Rio Pardo, que engloba 22 municípios.

Para ele, a atuação da empresa é bem-vinda, já que autoridades locais dão pouca atenção aos geraizeiros. “Os políticos daqui não aprovam a ideia de comunidades tradicionais, porque nós mexemos com os interesses dos latifundiários.” Santos diz que a principal bandeira dos geraizeiros é conter a monocultura do eucalipto, que avança sobre o Cerrado e destrói nascentes.

Aldicir Scariot, da Embrapa, também diz se preocupar com a atividade. Segundo ele, um dos objetivos do programa é “empoderar as comunidades locais e contribuir para a reorganização do território, conservando as nascentes e tornando-as mais resilientes às mudanças climáticas”.

Para Isabel Figueiredo, coordenadora do Instituto Sociedade, População e Natureza, ONG que atua com várias comunidades tradicionais brasileiras, os trabalhos da Embrapa nesse campo “ainda são muito tímidos” se comparados ao que a empresa investe em commodities ou outros setores.

Segundo Figueiredo, os pesquisadores da Embrapa que lidam com comunidades tradicionais, conservação e desenvolvimento sustentável são minoritários.

Mas ela diz que a Embrapa “pode fazer a diferença se entrar para valer nessa agenda”.”O pouco que já existe vem gerando resultados relevantes, mas ainda é uma turma que atua ali dentro numa espécie de resistência”, afirma. (Fonte: G1)