É meia noite no vale Ladakh, no Himalaia, extremo norte da Índia, a 3,5 mil metros acima do nível do mar. É o período mais frio do dia em um dos lugares mais frios do planeta – no auge do inverno, a temperatura chega a -30ºC.
Um grupo de dez voluntários está reunido para colocar em prática um plano capaz de resolver a falta d’água crônica que afeta a região. Eles estão construindo geleiras de mais de 30 metros de altura na esperança de que derretam na primavera e forneçam a água necessária aos vilarejos e agricultores.
As estruturas de gelo são fruto da mente do engenheiro Sonam Wangchuk. Nascido ali, ele trabalha há vários anos em soluções inovadoras para problemas cotidianos das comunidades locais.
“Tendemos a buscar soluções criadas em Nova York ou Nova Déli, que não funcionam para nós aqui”, diz ele. “Acredito que o povo das montanhas tem de encontrar soluções por conta própria.”
Isolamento
Os 300 mil habitantes de Ladakh enfrentam condições de vida duras. Os vilarejos ficam em locais remotos a altitudes que variam entre 2,7 mil e 4 mil metros acima do nível do mar. As estradas ficam bloqueadas durante a maior parte do inverno, isolando a região do resto do país.
Chove muito pouco ali. A média é de 100 milímetros por ano – em comparação, a média anual é de 450 milímetros no sertão de Pernambuco, segundo dados do Laboratório de Meteorologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco.
Wangchuk diz que os efeitos das mudanças climáticas e o aquecimento global estão intensificando os problemas locais ao mexer com seu já delicado equilíbrio hídrico.
“Vemos que as geleiras estão encolhendo, sendo encontradas em altitudes cada vez maiores. Há menos água na primavera, mas, nos meses de verão, temos enfrentado inundações perigosas. O fluxo de água no vale tornou-se irregular”, explica ele.
Wangchuk inspirou-se em um colega de profissão que trabalha na região, o engenheiro Chewang Norphel, que criou uma geleira artificial plana em altitudes de 4 mil metros ou mais. Mas os moradores dos vilarejos relutavam em subir até lá.
Wangchuk conta que estava cruzando uma ponte quando teve a ideia de congelar suas estruturas.
“Notei que havia gelo sob a ponte, que, a 3 mil metros de altitude, é a área mais baixa e quente da região. Então, pensei que se a gente protegesse o gelo da incidência direta do sol, a gente poderia armazená-lo.”
‘Stupas’
Então, em 2013, ele e seus estudantes da Escola Alternativa Secmol começaram a fabricar próximo do vilarejo de Phyang protótipos destas estruturas, chamadas de stupas, por causa de sua semelhança com a stupas tibetanas – belas construções religiosas, formadas por domos ou cones e com extremidade pontiagudas, usadas para guardar relíquias, como os restos mortais de monges budistas.
A tecnologia por trás delas é simples. Uma das extremidades do cano fica enterrada abaixo do ponto de congelamento, profundidade em que a umidade do solo congela, enquanto o restante se eleva acima do chão.
A diferença de altura, temperatura e força gravitacional cria pressão dentro do cano, fazendo com que a água subterrânea seja bombeada para fora do cano, como em uma fonte, e congele gradualmente ao entrar e contato com o ar frio, formando uma pirâmide de gelo.
“Congelamos a água que não costuma ser usada no inverno. Por causa da forma geométrica da estrutura, o gelo não derrete até o fim da primavera”, diz Wangchuk. Nessa época, explica, a água pode ser usada para irrigar plantações.
Sucesso e ampliação
Como o invento tem uma forma semelhante à stupa religiosa, Wangchuk acredita que isso faz com que elas sejam mais familiares aos habitantes locais. Depois de obter sucesso com uma das estruturas, em 2014, um monastério da região se envolveu na iniciativa, e monges budistas pediram que fossem construídas outras 20.
Uma campanha para financiar a empreitada arrecadou US$ 125,2 mil (R$ 396 mil), que custeou a construção de uma linha de transmissão de 2,3 km para levar água até Phyang. Wangchuk afirma que esses canos comportam a produção de até 50 stupas de gelo.
Ele agora está ajudando a construir novas estruturas próximo da cidade de St. Moritz, na Suíça. Depois de testar o primeiro protótipo, o plano é expandir o projeto para combater os efeitos do rápido derretimento das geleiras das montanhas do país.
“Em troca dessa tecnologia, os suíços compartilharão seus conhecimentos sobre turismo sustentável com as pessoas de Phyang, para recuperar a economia decadente do vilarejo”, diz Wangchuk.
Ele diz estar otimista com o futuro: “Queremos treinar os jovens por meio de nossa universidade e esperamos estar criando uma nova geração de empreendedores do gelo.”
*Essa reportagem faz parte da série “Inovadores: Transformando Vidas”, que trata de soluções criadas para lidar com os principais desafios atuais do sul da Ásia, um projeto financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates
Fonte: G1