Em novembro de 2015, a cidade de Mariana ganhou pouco mais de mil novos habitantes. Em sua maioria, moradores dos distritos rurais de Paracatu e Bento Rodrigues, ambos engolidos pela lama de rejeito de minério de ferro que jorrou da barragem de Fundão, operada pela Samarco, no dia 5 daquele mês.
Dois anos depois, as famílias reassentadas estão espalhadas em imóveis alugados pela empresa enquanto esperam pela reconstrução de suas comunidades, prometidas para 2019, em terrenos recentemente adquiridos pela Fundação Renova, que hoje responde pelas ações de reparação da mineradora e de suas controladoras, Vale e BHP Billiton.
As dificuldades de adaptação à rotina provisória – que, ao todo, deve durar pelo menos três ou quatro anos – começaram pelo choque com a vida urbana.
Produtor rural de Paracatu, Marino D’Ângelo tomou um susto com o preço do tomate-cereja na primeira vez que teve de comprá-lo no mercado.
“Nossa Senhora, eu dava esse trem pros outros de balde”, diz ele, que conseguiu ser realocado em Águas Claras, a 50 minutos de Mariana, e voltou a cultivar sua horta com a esposa, Maria do Carmo, e a criar porcos e cabras.
Para os que permaneceram na sede – a grande maioria -, as mudanças profundas no cotidiano incluem a relação às vezes conflituosa com os 45 mil marianenses.
O pano de fundo é o aumento do desemprego no município, que saltou de 5% para 23% desde que as atividades da Samarco foram suspensas, segundo dados do Sistema Nacional de Emprego (Sine) local.
Para efeitos comparativos, na capital, Belo Horizonte, o salto foi de 9% em 2015 para 13,9% no primeiro semestre deste ano, conforme o IBGE.
“Uma minoria fora da realidade enxerga que eles são responsáveis pelo que aconteceu (a interrupção das operações da mineradora)”, disse à BBC Brasil o prefeito Duarte Júnior (PPS).
A grande maioria da população, ele acrescenta, “reconhece o sofrimento” das famílias dos distritos rurais reassentadas na sede.
O rompimento da barragem de Fundão matou 19 pessoas. Os 34 milhões de metros cúbicos de rejeito de minério desceram 55 km pelo rio Gualaxo do Norte até o Rio do Carmo e outros 22 até o Rio Doce.
O vazamento soterrou os distritos rurais de Bento Rodrigues, Paracatu e Gesteira e invadiu a cidade de Barra Longa, a 60 km de Mariana.
A avalanche de lama percorreu 663 km de cursos d’água e atingiu 39 municípios em Minas Gerais e no Espírito Santo – o maior desastre ambiental do país.
‘Somos todos atingidos’
De um ano para cá começaram a aparecer de forma esparsa no comércio de Mariana cartazes de apoio à retomada das atividades da empresa, que atuava há 44 anos na região e respondia por 89% da arrecadação do município, entre tributos pagos diretamente e recolhidos de forma indireta.
Um faixa pendurada em um sobrado na avenida próxima à rodoviária, na saída da cidade, diz “Somos todos atingidos”, em referência ao termo que tem sido usado para identificar os que foram afetados diretamente pelo rompimento da barragem.
As manifestações dos marianenses aparecem na seção de cartas do jornal local – na qual alguns leitores acusam os sobreviventes de extorquirem a mineradora -, nos bancos de praça e nas feiras de rua.
Um caso mais grave relatado por moradores e confirmado pela Prefeitura aconteceu em frente ao fórum de Mariana, onde um grupo de atingidos foi hostilizado quando esperava pelo início de uma audiência com a Renova.
“Passaram gritando: ‘Vão trabalhar, seus desocupados!'”, afirma a educadora Eliene Santos. “A visão geral é que nós somos um bando de aproveitadores, mas o que a gente está recebendo é direito.”
“Eu gostava muito mais da minha casa no Bento do que do apartamento em que eu moro hoje, mas vou fazer o que? Não tenho alternativa”.
“Eles acham que a gente está com muito dinheiro, que está muito bem”, diz Mônica Quintão, do sofá que ocupa boa parte da sala do pequeno apartamento em que vive no centro de Mariana.
Ela sente a perda do convívio diário com os vizinhos e lembra com carinho da cachoeira que ficava a uma caminhada de sua casa e da mangueira que fazia sombra para ela e para a mãe depois do almoço. “Aqui a gente não tem vida social, é do trabalho pra casa.”
Os moradores dos distritos que desapareceram embaixo da lama estão habituados a dar entrevistas, especialmente nas semanas que antecedem o “aniversário” da tragédia.
Ainda assim, dois anos depois, muitos se emocionam ao falar sobre perder e sobre esperar.
O presidente da Renova, Roberto Waack, diz ver “com tristeza” as dificuldades de adaptação e afirma que a fundação tem buscado melhorar as condições de vida dos atingidos, com a criação de um centro de convivência em Mariana e a manutenção de suas festividades e manifestações culturais.
A geração de empatia, contudo, é algo sobre o qual “a gente não tem controle”, ele acrescenta.
As vítimas recebem, através do auxílio emergencial, um salário mínimo por mês, mais 20% por dependente e o valor de uma cesta básica.
Das indenizações, que ainda estão sendo negociadas, foram antecipados pagamentos de R$ 10 mil às famílias que tinham residência de uso eventual nos distritos atingidos, R$ 20 mil às que perderam a casa em que moravam e R$ 100 mil aos parentes de desaparecidos ou mortos.
No início acolher, depois conviver’
Eliene Santos viu a Escola Municipal Bento Rodrigues ruir diante do paredão de lama como se suas colunas fossem feitas “de farinha”.
No dia 5 de novembro de 2015, ela assistiu ao soterramento do lugar em que nasceu do alto de um morro, para onde levou às pressas 58 alunos que estavam em sala quando ela, diretora, foi avisada sobre o rompimento da barragem.
Na semana seguinte, os cerca de 100 alunos foram alocados na escola Dom Luciano, em Mariana, e recebidos com faixas e manifestações de apoio.
A relação, entretanto, foi se deteriorando ao longo do tempo e os alunos da escola, depois de alguns meses, chamavam as crianças de fora pejorativamente de “pés de lama”.
“Os meninos do Bento tinham uma estrutura toda montada a favor deles, recebiam ajuda, atenção, presentes. Isso pode der causado ciúmes, é normal”, contemporiza a diretora.
Em maio deste ano, a Escola Municipal Bento Rodrigues ganhou sede própria. A despedida na Dom Luciano, ao contrário do último ano, foi leve, com festa e homenagens. “No início é acolher, depois, conviver. Não é fácil.”
Do ciclo do ouro para o ciclo do minério
“Nós queremos o retorno da mineração”, diz o prefeito de Mariana, após ressalvar que a cidade deseja que os culpados pelo desastre sejam punidos.
A Samarco era a maior pagadora de impostos do município. Sem as atividades da empresa, ele afirma, a arrecadação despencou de uma média mensal de R$ 27 milhões em 2015 para R$ 16 milhões neste ano.
Em crise financeira, a Prefeitura tem dificuldade para prestar serviços básicos e vem tomando medidas sucessivas de redução de despesas.
Em fevereiro, foram cortados 300 cargos comissionados, cerca de 10% do total de funcionários da administração municipal, diz Duarte Júnior, que assumiu poucos meses antes da tragédia, em junho de 2015, quando era vice de Celso Cota (PSDB), que teve o mandato cassado.
“Nós passamos do ciclo do ouro para o ciclo do minério. Nunca nos preparamos para viver sem a mineração”.
Desde o ano passado a empresa vem tentando obter as licenças ambientais para voltar a operar. Em junho de 2016, protocolou na Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad) pedido para usar a cava Alegria do Sul – um buraco formado pela retirada de minério do complexo da empresa em Mariana – como depósito temporário de rejeitos.
No último mês de setembro, entrou com pedido de liberação de licença de operação corretiva. Mais geral, ela permitiria a retomada de uma série de atividades no complexo de Germano – lavra e tratamento de minério, extração de areia e cascalho para utilização na construção e realização de obras de infraestrutura como estradas e barragens.
À época, a Semad informou que não há prazo para a conclusão das análises dos estudos apresentados pela empresa e que o prazo legal é de um ano, descontados os eventuais pedidos de novos estudos.
Fonte: G1