Mas abaixo da superfície de gelo, que varia de acordo com as estações, a região esconde um tesouro de recursos naturais.
Estima-se que ali haja bilhões de barris de petróleo e trilhões de metros cúbicos de gás natural em reservas ainda a serem descobertas.
E uma superpotência luta para ser a primeira a explorá-las: a Rússia.
Décadas depois do colapso da União Soviética, Moscou embarcou em uma missão para perfurar o fundo do mar do Ártico, enviando uma frota de robôs e embarcações não tripuladas ao local.
Agora, depois de anos de perfuração na área, planeja usar uma tecnologia nunca antes vista para dar o próximo passo.
Bem-vindos ao Projeto Iceberg: um ambicioso plano para a utilização de tecnologia avançada em condições extremas.
Corrida antiga
A corrida pelos preciosos recursos do Ártico não é nova. As reservas de gás e petróleo estão cercadas por países poderosos – Rússia, Dinamarca, Noruega, Estados Unidos e Canadá disputam um pedaço desse tesouro.
A própria Rússia vem perfurando a região há décadas. Em agosto de 2007, enviou minissubmarinos ao Polo Norte, a 4,2 mil metros de profundidade, para colocar uma bandeira de titânio no fundo do mar e advogar para si o território.
Agora, a comunidade global observa o país tentar expandir seu controle e sua influência sobre as águas do Ártico.
Da mesma forma que extrair petróleo do Mar do Norte era considerado um desafio de engenharia nos anos 70, o Ártico apresenta inúmeros obstáculos. Com profundidades que chegam a até 5 mil metros e em grande medida coberto de gelo, o oceano é provavelmente o local mais difícil do mundo para fazer perfurações.
Mas jamais se tentou algo na linha do Projeto Iceberg.
A Fundação para Estudos Avançados da Rússia planeja “o desenvolvimento de campos de hidrocarbonetos com total autonomia sob a água, sob o gelo, nos mares do Ártico com condições severas de gelo”.
Em outras palavras: robôs submarinos para buscar petróleo.
Mas há quem sugira que as metas propostas pelo Projeto Iceberg não são realistas e que poderiam ser uma cortina de fumaça para o desenvolvimento de sistemas militares sob o gelo.
Supersubmarinos e usinas nucleares debaixo d’água
A peça-chave é Belgorod, o maior submarino nuclear já construído – são 182 metros de comprimento.
A embarcação vai realizar análises submarinas e colocar cabos de comunicação sob o gelo, mas sua principal função será servir de “navio-mãe” para uma frota de submarinos menores.
“O Belgorod é uma plataforma para o desenvolvimento de vários sistemas, incluindo aqueles que ainda não existem”, diz Vadim Kozyulin, analista de defesa do PIR Centre, um think tank focado em assuntos ligados à segurança e sediado em Moscou.
Esse é o motivo por trás do tamanho gigantesco do submarino: a embarcação acaba de ganhar uma nova estrutura de 30 metros, com instalações de ancoragem para submarinos tripulados e não tripulados.
Talvez o plano mais ambicioso do Projeto Iceberg seja o de que as primeiras usinas de energia nuclear funcionem como paradas para outros submarinos.
Essas estações de energia subaquáticas serão instaladas no fundo do mar e vão funcionar como pontos de recarga para a passagem de submarinos não tripulados.
O projeto atual consiste em um reator de 24 megawatts com uma vida útil de 25 anos. Cada um funcionará quase que inteiramente de forma autônoma, recebendo a visita de técnicos uma vez por ano para manutenção de rotina.
Mas a Rússia possui um histórico ruim em relação à segurança nuclear no mar, tendo perdido sete submarinos nucleares desde 1961, alguns deles por problemas de reator – os acidentes envolvendo navios operados pela antiga União Soviética representam 14 dos desastres nucleares mais graves ocorridos no mar.
Em determinada ocasião, um submarino inteiro foi exposto a altos níveis de radiação, enquanto outro sofreu uma perda de refrigeração e uma fusão parcial do reator. Um desses acidentes foi dramatizado no filme americano K-19: The Widowmaker (2002).
A empresa de energia russa, a Nikiet, argumenta que a ausência de operadores vai melhorar a segurança. Isso significa menos riscos de erros humanos, como o que causou o desastre de Chernobyl.
Uma das teorias que explica a causa do maior desastre nuclear da história é de que os operadores desligaram muitos dos sistemas de proteção do reator violando diretrizes técnicas.
“Acredito que grande parte da tecnologia nuclear proposta aqui está amadurecida e bem compreendida”, diz William Nuttall, professor de energia da Open University, no Reino Unido.
Eugene Shwageraus, do Centro de Energia Nuclear da Universidade de Cambridge, também no Reino Unido, diz que, mesmo não tripulado, o reator poderia ser supervisionado à distância. Neste sentido, segundo ele, seria semelhante a muitos reatores modernos que exigem pouco envolvimento do operador no dia a dia.
“Os reatores de hoje já são bastante ‘autônomos’, produzindo energia 24 horas por dia e durante sete dias por semana com operadores apenas observando as leituras dos instrumentos”, afirma.
Os reatores subaquáticos estão em estágio avançado de desenvolvimento, e o objetivo é que o primeiro entre em operação até 2020.
O fator robô
Embora haja seres humanos envolvidos nesse aspecto do projeto, muitas outras operações de rotina serão realizadas apenas por robôs.
Os “cavalos de batalha” serão submarinos não tripulados em águas profundas ou veículos subaquáticos autônomos (AUVs).
Os AUVs são atualmente usados em pequenos números por muitos países, e geralmente controlados de perto por operadores, em vez de circularem livremente. A Rússia já esteve em desvantagem nessa área, mas parece ter se recuperado.
O Harpsichord-2R-PM AUV foi desenvolvido para o Iceberg e pretende ser o precursor de uma família de diferentes veículos subaquáticos. Essa embarcação de duas toneladas, de 6 metros de comprimento (20 pés) no formato de um torpedo está sendo testada no Mar Negro, mas também vem sendo usada para ajudar a recuperar destroços de aeronaves.
Em 2009, um desses AUVs localizou um avião da Marinha da Rússia que caiu durante um voo teste, deixando 11 mortos.
A queda aconteceu no mar de Sakhalin, uma ilha russa perto do Japão, mas a busca por seus destroços foi dificultada pelo gelo e pelo clima adverso. A capacidade da AUV de operar sozinha embaixo d’água permitiu recuperar as caixas-pretas, necessárias para ajudar a determinar as causas do acidente.
Mas, apesar de sua função de monitoramento subaquático, os AUVs nunca foram usados para perfurar o fundo do mar.
Igor Vilnit, responsável pelo Escritório de Desenho Central para Engenharia Marítima Rubin, a maior empresa de design de submarinos da Rússia, afirma que o objetivo é ter um perfurador AUV em operação nos próximos cinco anos.
No entanto, em meio à perfuração e à exploração subaquática, há questões maiores que se estendem para além das tensões políticas.
A mudança climática está acelerando o derretimento das calotas do Ártico – e isso representa uma série de desafios para os povos locais, bem como para a vida selvagem. Um exemplo são os ursos polares.
Mas à medida que as temperaturas mais altas derretem a cobertura de gelo do Ártico, deixando a região mais acessível à ação humana, o aquecimento global também pode agravar a turbulência política na região.
Fortalecimento militar
Em uma entrevista a jornalistas em março do ano passado, o vice-primeiro-ministro russo, Dmitry Rogozin, disse que o desenvolvimento do Ártico ajudaria a fortalecer as relações com os países vizinhos. Segundo ele, a região deveria ser um “território de paz e cooperação”.
Mas sua declaração não é consistente com outras atividades russas na área.
Cerca de 50 ex-bases militares soviéticas foram recentemente reativadas. O Exército russo incorporou novas brigadas para o Ártico, chegando, inclusive, a exibir veículos especiais militares para operações polares na parada militar do ano passado.
A frota marinha da Rússia também vai ganhar seu próprio navio quebra-gelo de última geração, assim como navios-patrulha adaptados às condições locais, essencialmente mini-quebra-gelos armados com mísseis.
O Projeto Iceberg avança em meio às sanções impostas pelos países do Ocidente contra a Rússia por causa da anexação da península da Crimeia. As sanções restringem o acesso que companhias russas de gás e petróleo têm à tecnologia e à ajuda financeira necessárias para desenvolver poços no Ártico.
Apesar disso, a Rússia decidiu prosseguir sozinha. No início do ano passado, o país iniciou uma complexa operação de perfuração de uma península remota na extremidade do Mar de Laptev. O objetivo era alcançar reservas de petróleo a 15 mil metros de profundidade sob o oceano congelado.
Mas Kozyulin permanece cético quanto à cadeia de estações de carregamento de energia nuclear planejadas segundo as diretrizes do projeto. Segundo ele, essas estações são “muito fantasiosas”. Ele se pergunta por que, sendo essa operação supostamente comercial, companhias de petróleo russas como a Gazprom não estão envolvidas.
Isso leva a crer, argumenta o especialista, que a verdadeira proposta do projeto é militar. Os reatores subaquáticos poderiam ser usados, por exemplo, para prover energia a um sistema de monitoramento marítimo planejado pela Rússia, conhecido como Harmony, que detecta e rastreia submarinos da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).
Em paralelo, a Rússia está solicitando a expansão de seu território submarino no Ártico junto à Comissão dos Limites da Plataforma Continental da ONU. Tal reivindicação vai de encontro à de outros países, incluindo o Canadá, diz Stephen Blank, especialista em Rússia do think tank americano American Foreign Policy Council. A Rússia foi bem-sucedida com alguns de seus pedidos no ano passado.
“A Comissão concedeu à Rússia o direito a extensos territórios no Mar de Okhotsk (no Pacífico Ocidental) em 2013”, pondera. “Moscou rapidamente o converteu em um bastião naval exclusivo. Isso provavelmente servirá como um precedente em relação ao Ártico”, acrescenta.
Blank diz acreditar que o aumento do efetivo militar na região se deve aos temores de que outros países cheguem primeiro aos recursos energéticos do Ártico.
“Não me surpreenderia se eles também tivessem mantido algum tipo de projeto secreto em águas profundas por algum tempo”, afirma o especialista.
É difícil dizer se o plano russo de explorar gás e petróleo no Ártico é realista, ou se a Rússia simplesmente quer proteger o território para que possa explorá-lo em algum momento no futuro.
O que ninguém deve duvidar é da determinação de Moscou de ser pioneiro em se beneficiar da região.
Fonte: BBC