A lancha, no momento, está passando por terra firme. Pelo menos é o que diz o mapa no celular. A barragem do rio Xingu se ergue rasante pouco antes da cidade de Altamira. Onde antes havia casas, hoje há água. Milhares de moradores foram removidos. Até o fim de 2019, o projeto de Belo Monte deverá estar pronto, após nove anos de obras: com 11.233 MW de potência instalada, será a terceira maior hidrelétrica do mundo.
“Belo monstro” – é assim que o austríaco Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu, prefere se referir à barragem. Em 2010, ele se dirigiu duas vezes ao então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, para manifestar sua preocupação sobre o projeto. “Lula me prometeu na época: nós nunca vamos empurrar esse projeto pela goela de vocês. Belo Monte só vai acontecer se todos estiverem de acordo.”
Kräutler diz ter confiado em Lula: “Na época, eu pensei que não precisaríamos ter medo, que no final não seria tão ruim como muitos temiam. Mas meses depois eu vi que estava errado.” Hoje, muitos em Altamira dão razão a ele. Em vez do prometido boom econômico, foram os problemas sociais e a violência que explodiram. Com a obra quase pronta, são poucos agora os que encontram trabalho.
Altamira está tomada por antigos trabalhadores do projeto, assim como por ex-moradores dos arredores que foram realocados para a cidade. Muitos ainda esperam do governo e da operadora Norte Energia a ajuda social prometida – especificamente, uma nova casa. A empresa prefere não se manifestar. Segundo a assessoria de imprensa, a dedicação no momento está voltada para os preparativos finais da barragem.
Segundo Antônia Melo, da ONG Xingu Vivo, operadora e governo gostam de se eximir de responsabilidade nesse caso. “Esse projetos são projetos ditatoriais”, resume ela, sobre uma luta de uma década. Ao longo dos anos, diz, as autoridades exerceram enorme pressão sobre as vozes críticas da sociedade civil. “Até hoje a Força Nacional está nos canteiros de obras.”
A Força Nacional costuma ser enviada pelo governo federal para locais de conflito. Na região, até na terra indígena Apyterewa no momento há soldados estacionados, ao lado de funcionários da Funai, órgão que vem sendo enfraquecido pelo governo Jair Bolsonaro. Eles assistem, sem qualquer reação, como cada vez mais garimpeiros entram no território em busca de ouro.
Na verdade, a vida na terra Apyterewa, habitada pelos indígenas Parakanã, deveria ter melhorado com Belo Monte. O território, reconhecido como deles em 2007, fica a cerca de 300 quilômetros da represa. Motocicletas, lanchas, um pequeno posto de saúde e geradores elétricos foram providenciados pela Norte Energia como compensação pela represa do Xingu.
Mas a principal promessa não foi cumprida. Todos os não indígenas deveriam ter sido expulsos. Mas imagens de satélite mostram como fazendeiros avançam cada vez mais sobre o leste do território. Garimpeiros, por sua vez, seguem ativos nos rios que bordeiam a terra Apyterewa, revirando as margens com escavadeiras e sugando o fundo do rio com tubulações acopladas a jangadas.
“A situação não está boa para nós, tem muitos invasores, garimpeiros, e eles estão contaminando o igarapé”, diz o guia Kaworé Parakanã. Há tempos que seu povo não pode mais beber da água do rio nem pescar ali, devido ao alto teor de mercúrio.
“O governo não está preocupado, não está presente. E a Força Nacional não pode fazer nada sem a permissão do ministro”, afirma.
Mas a ordem de Brasília simplesmente não vem. Sozinhos, eles apenas observam diante de uma placa, colocada pelo próprio Ministério da Justiça ao qual são subordinados: “Terra protegida”. Os invasores não se importam. “Mentiram para nós, que tirariam todos os invasores. Enganaram a gente, e até hoje estão enganando”, diz o guia.
As caminhonetes dos garimpeiros da região de São Félix do Xingu levam adesivos de Bolsonaro. O presidente, dizem, prometeu ficar do lado deles na campanha. E com o apoio de Bolsonaro eles se sentem mais à vontade para enfrentar as autoridades. Já houve, por exemplo, ataques a funcionários da Funai, órgão que neste ano foi tirado do Ministério da Justiça e colocado sob o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
“O problema não é mais jurídico. Hoje, o processo é político. Tem interesse político dentro da área, através de prefeitos, de vereadores e deputados, que têm interesse, que têm terras próximas às terras indígenas”, diz José Cleanton Curioso Ribeiro, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em Altamira.
Segundo ele, há algumas semanas os Parakanã foram abordados por altos representantes do governo com a oferta de que deixassem caminho aberto para os invasores, em troca de participação nos lucros. Uma oferta imoral, diz o representante do Cimi. Uma vez legitimados os invasores, a terra estará perdida para sempre.
Conflitos pela terra fazem parte do dia a dia aqui na fronteira agrícola, diz Andreia Macedo Barreto, defensora pública estadual do estado do Pará. Assim como o bispo Kräutler, ela se encontra atualmente sob proteção policial por ter sido ameaçada de morte. Poderosos latifundiários com influência política contra pequenos agricultores e indígenas – esse é o roteiro recorrente na região.
Só no município de Anapu, que faz limite com Altamira, Barreto acompanha 16 casos de assassinato de ativistas. Nenhum até agora resolvido. Pois, afirma ela, a partir do momento em que interesses poderosos e advogados caros entram em jogo, um processo caminha facilmente até a prescrição. Por outro lado, explica, “se o Estado tem interesse em criminalizar um sujeito rápido, ele faz”.
Isso atinge sobretudo membros da sociedade civil. Segundo a defensora pública, muitos juízes conservadores compartilham o pensamento do presidente Bolsonaro de que ativistas do MST são bandidos. Também a ideia, diz Barreto, de que fazendeiros podem atirar em invasores está impregnada na Justiça.
“A ideia da função social, que nós defendemos, do acesso à terra do pobre, não predomina no Judiciário”, diz a defensora pública. Belo Monte, resume ela, não trouxe à região a prometida melhora na qualidade de vida. Pelo contrário: faltam água potável limpa e ruas transitáveis.
“Belo Monte não trouxe um benefício social efetivo para a população. Esse passivo negativo das demandas sociais ainda não se conseguiu sanar. E acho que vai levar muito tempo para sanar os impactos de Belo Monte.”
Fonte: Deutsche Welle