Em uma manhã de sábado na BR-262 em Miranda (MS), três homens fugiam do sol de maio sob a sombra das árvores. Esperavam compradores para as iscas de pesca que mantinham em suas bicicletas estacionadas às margens da rodovia. Mas os carros passavam sem parar, o que para eles era a prova da queda no turismo do qual tiram o sustento. Em um estado que decidiu instituir o “pesque e solte” a partir de 2020, esses vendedores já temem perder o negócio para o desinteresse de quem está acostumado a visitar o Pantanal e levar seu peixe para casa.
A chamada “cota zero” para os turistas mobiliza o debate no setor desde janeiro deste ano em Mato Grosso do Sul. A ideia é que todos os peixes capturados pelos pescadores com licença amadora passem a ser devolvidos ao rio.
“O que é a prática do ‘pesque e solte’? É você fisgar o peixe, você fotografar, e soltar o peixe novamente”, explicou ao G1 Ricardo Senna, secretário-adjunto da Secretaria de Meio Ambiente Desenvolvimento Econômico de Mato Grosso do Sul (Semade).
O governo chegou a sugerir que a medida fosse implementada ainda em 2019. Mas protestos por parte dos empresários de turismo fez com que o governo estadual recuasse e apenas reduzisse a cota atual de dez quilos para cinco quilos. Os turistas também podem continuar levando para casa um exemplar de peixe e cinco piranhas – um peixe predador com ciclo de reprodução distinto, e que existe em abundância na região.
Na série de reportagens do Desafio Natureza sobre caça e pesca ilegal, o G1 visitou os principais destinos da pesca turística no Pantanal e ouviu as opiniões contra e a favor da mudança.
Defendida pelo governo e pela maior parte dos empresários de turismo de pesca de Corumbá (MS) e de Cáceres (MT), as duas cidades com o maior número de visitantes, ela é vista com preocupação em outras regiões, como a de Miranda e Aquidauana (MT). O motivo é simples: ali, os rios têm água mais barrenta, enquanto o dourado, o peixe mais cobiçado pelo pescador movido apenas pela emoção da fisgada, prefere as águas limpas.
“Foi o pior movimento nos últimos 20 anos pra gente”, reclamou Gilson Tomicha Xavier, um dos comerciantes à beira da BR-262. Ele diz que vende iscas como tuvira, caranguejo e minhocoçu para turistas que viajam de carro para pescar no Rio Miranda.
“Hoje mesmo a gente está aqui desde as 4h da manhã para vender duas dúzias de minhoca. Geralmente, em outras temporadas, a gente vendia dez dúzias”, explicou Xavier, que ressalta que a venda de iscas pelos três colegas é o que sustenta 20 pessoas atualmente.
A situação descrita por ele é corroborada alguns metros adiante, na Rua Barão de Rio Branco. “Nós estamos em maio, plena temporada, clima ótimo, rio muito bom de peixe. E vocês podem observar que não tem turista nenhum aqui na loja”, afirmou Carlos Eduardo Murad de Góes, conhecido como Alemão e proprietário de uma loja de artigos de pesca e de uma pousada na beira do rio.
O turismo de pesca é atualmente uma das principais atividades econômicas da região e funciona durante oito meses por ano – entre novembro e fevereiro, no período de reprodução dos peixes, o defeso ou piracema, é proibido pescar no Pantanal sulmatogrossense.
Turistas são a maioria dos pescadores
Números fornecidos pelos governos estaduais mostram que quase 100 mil pescadores frequentam os rios pantaneiros. Em 2018, foram emitidas um total de 81.689 licenças de pesca amadora nos dois estados. Em 2019, o cadastro de pescadores profissionais ativos é de 14.413, mas, segundo a categoria, atualmente os números são inflados.
Quem tem carteira de pesca profissional pode retirar do rio até 125 quilos de peixe por semana, mas deve respeitar os tamanhos mínimos e máximos permitidos pelas normas, além de não poder cortar os peixes. Os espécimes são registrados em guias de pesca e só podem ser vendidos nas peixarias ou restaurantes e hotéis.
Os turistas também precisam registrar todos os peixes capturados.
As polícias ambientais usam o documento para controlar a quantidade de peixes de cada espécie que é retirada dos rios, e todos podem ser multados caso não apresentem a documentação de origem do pescado.
A terceira categoria de pescadores é composta pela população ribeirinha da região. Waldemar Magalhães é um de algumas centenas de pescadores artesanais, que ainda vivem na beira de rios como o Paraguai. Ele vive desde que nasceu perto da Serra do Amolar, próximo da divisa entre os dois estados pantaneiros e longe da urbanização.
O que dizem os turistas?
Na pousada de Alemão, na zona rural de Miranda e a poucos metros do rio homônimo, turistas sulmatogrossenses e de fora do estado desfrutavam de um fim de semana pescando na natureza. “Isso aqui é o paraíso. Uma vez ou duas por ano a gente está aqui pescando”, diz o gaúcho Oscar Marques, de 63 anos, logo após retornar de algumas horas no rio acompanhamento de um amigo e do piloteiro do barco.
Junto com ele, um balde cheio de palmitos, uma das espécies mais capturadas pelos pescadores na região, junto com o pintado, o pacu, a piraputanga e o cachara. Marques explica que as viagens de pesca costumam seguir a mesma rotina: sair de manhã para pescar durante algumas horas, voltar à pousada para o almoço e, depois de um descanso, retomar a pesca no rio até o fim do dia.
Ele conta que costuma viajar até lá desde o Rio Grande do Sul de carro porque carregar os equipamentos e, depois, os peixes capturados, é mais trabalhoso de avião. Há ainda grupos de turistas que fretam um ônibus para poder levar todo o material, além do que fisgarem durante a viagem.
O gaúcho e quase todos os outros pescadores amadores ouvidos pelo G1 se disseram favoráveis à cota zero para os turistas, mas com reservas: segundo eles, de nada valerá a cota zero se mudanças de comportamento não forem aplicadas também aos pescadores profissionais e os de subsistência, e que eles dizem serem responsáveis pela pesca predatória.
Para saber quantas pessoas dizem que não voltarão à região caso a cota zero saia do papel, Alemão começou a fazer uma enquete entre os clientes de sua loja.
Ele diz que outros comerciantes estão fazendo o mesmo, e o objetivo é levar os resultados até o governo no segundo semestre, com propostas de um meio termo, como liberar ou a cota de 5 kg, ou um exemplar de qualquer espécie, ou manter a cota de 2019 durante alguns anos, para dar tempo de o setor se adequar à oficialização do “pesque e solte”.
Amor e ódio pela cota zero
“A cota zero é [uma relação] de amor e ódio”, resumiu Joice Santana Marques. Nascida em Franca, no Interior de São Paulo, ela decidiu se mudar para Corumbá com 19 anos, para não ter que fazer carreira dentro de fábricas de sapato. Começou a trabalhar em uma agência de turismo, e há 20 anos tem o seu próprio negócio, incluindo um barco hotel. Ela acompanhou as regras da pesca ficarem cada vez mais rígidas no decorrer das décadas, à medida que o turismo se expandia.
“A gente necessita passar por essa mudança. A natureza não dá conta de reproduzir os peixes com tanta velocidade. Então, hoje os nossos peixes estão menores. Hoje a gente está perdendo mercado. Se eu for lá para o [Rio] Araguaia, eu vou pegar lá um monte de peixe de mais de 35 quilos.” – Joice Santana, empresária de turismo
Como a lei impõe um tamanho mínimo para que o peixe seja retirado do rio, na prática, Joice diz que boa parte da atividade de pesca no Pantanal já acontece no estilo “pesque e solte”, por causa da falta do peixe nas condições de abatimento.
A Embrapa Pantanal é uma das principais instituições que pesquisam o estoque de pescado na região. Segundo Agostinho Catella, um dos pesquisadores especialistas no tema, explica que uma das pesquisas usa grandes amostras das guias entregues pelos pescadores à polícia ambiental.
“A captura da pesca profissional e artesanal vem estável, de 2002 até agora, e para a pesca amadora também”, disse ele, ressaltando que tanto os pescadores profissionais e artesanais quanto os amadores continuam pescando principalmente os peixes de grande porte.
“A cota zero, pelo que a gente entende, é uma demanda de um tipo de usuário. Agora, existem outros usuários, que têm outro perfil, estão interessados em levar o seu pescado para comer em família”, diz Catella, da Embrapa Pantanal.
Segundo ele, outros países com “estudos muito avançados nessa área”, como a Alemanha, inclusive já superaram a fase do “pesque e solte”, e estão reavaliando a política. “Está havendo agora uma segunda forma de enxergar a coisa: se for para você só vivenciar a captura, eu não concordo. Se você pescar para comer, eu concordo”, exemplificou ele sobre essa nova tendência em debate no exterior.
Enquanto isso, no Pantanal, iniciativas do turismo local já se antecipam às regras de 2020, seja com a sensibilização dos visitantes para que desistam de abater o peixe à oferta de descontos para o turista que topar adotar o “pesque e solte” desde já.
Transição da atividade econômica
Senna, da Semade, se considera “economista de formação e pescador de coração”, e afirma que o debate sobre a ‘cota zero’ tem ocorrido desde 2015 no estado. Segundo ele, o governo estadual está comprometido em manter a mesma cota dos pescadores profissionais, inclusive os que pescam a isca usada pelos turistas.
Conhecidos como ‘isqueiros’, essa parcela de pescadores pantaneiros é a mais vulnerável, já que a pesca de iscas é feita à noite e há riscos de picadas de escorpião ou inclusive ataques de onça-pintada – como o que ocorreu em junho de 2008 em Cáceres.
Lieze Francisco, conhecido na região do Carandazal entre Miranda e Corumbá como Zé Bicudo, lidera uma associação de pescadores de isca e diz que, com a redução dos turistas, seu negócio também foi afetado, já que os isqueiros atendem à demanda dos donos de pousada e lojas de pesca.
Em maio, ele disse ao G1 que, nos primeiros meses de 2018, já tinha juntado mais de R$ 3 mil para poder pagar as prestações do carro popular que financiou pelo Banco do Brasil. “Nesse ano até agora não consegui guardar nada”, afirmou Francisco.
“A gente não é contra ele [o projeto da cota zero] em si. Mas é contra a maneira com que ele está sendo aplicado. Isso é um projeto de longo prazo, que você precisa ir de quatro, oito, dez anos pra migrar as pessoas”, disse ele, que afirma ter mais de 50 e ser analfabeto, o que inviabiliza as possibilidades dele passar para o negócio de turismo de observação de animais.
Visão holística do setor
Claumir Cesar Muniz, professor da Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat) e pesquisador do Projeto Bichos do Pantanal, do Instituto Sustentar, afirma que a pesca no Pantanal envolve muitos setores, e por isso as mudanças de regras devem seguir uma “visão holística” do setor, “não só olhando para o pescador, que geralmente é o elo mais fraco desse processo”.
Segundo Senna, da Semade-MS, os objetivos da cota zero são “fazer o controle e monitoramento do estoque pesqueiro e, em paralelo, encontrar alternativas para que esse pescador tenha uma condição melhor de geração de renda”.
Já Agostinho Catella, da Embrapa, destaca a necessidade de o governo estadual montar um plano de manejo para a pesca. “Um plano adaptativo e compartilhado, porque na medida em que os usuários compartilham das decisões, eles automaticamente são fiscais do sistema.”
Segundo a Semade, a secretaria e a Embrapa se reuniram neste mês para discutir o tema e “serão necessárias outras reuniões para estabelecer novas parcerias para viabilizar a implementação de um plano” mas “ainda não há um prazo definido para sua implementação”.
Fonte: G1