No mês passado, entrei em um avião pela primeira vez em cinco anos.
Eu saí da minha casa em Londres e peguei um voo que atravessou o Atlântico para encontrar meu parceiro na Costa Rica.
A última vez que havia voado foi em 2014, quando em morava em Bordeaux, na França. Chegar a uma festa de despedida da minha irmã na Escócia de trem, minha opção habitual, levaria dias — tempo que eu não tinha naquele momento, então recorri a um avião.
A razão pela qual evito voar por anos é a grande “pegada de carbono” decorrente dessa forma de transporte. Desde a adolescência, sentia-me cada vez mais culpada pelas emissões (de poluentes) dos voos, o que foi piorando à medida que compreendia mais as mudanças climáticas e seus impactos.
Eventualmente, isso me levou a pegar voos apenas se absolutamente necessário.
E não estou sozinha. Ao longo do ano passado, um movimento antivoos conhecido como flight shame – em tradução livre para português, algo como “vergonha de voar”, ou no sueco flygskam, origem do movimento — vem ganhando adeptos na Europa.
O termo fala da culpa de voar em um momento em que o mundo precisa reduzir drasticamente as emissões de gases causadores do efeito estufa.
Para mim, isso reflete um contraste doloroso entre a satisfação de um voo de fim de semana e o impacto devastador das mudanças climáticas no mundo real.
Essa crescente resistência à aviação revigorou as viagens de trem — levando à redescoberta, por exemplo, dos trens noturnos. Políticos também vêm sendo pressionados para lidar com o impacto climático da aviação.
Mas, além da agenda ambiental, este movimento também está mudando nossas ideias de como, por que e para onde viajar.
Jornadas lentas
Embora “vergonha” seja um termo muito negativo, os objetivos do movimento são positivos – tanto para seus praticantes quanto para o meio ambiente em si. É menos importante constranger as pessoas do que mudar o padrão de viagem delas.
Os defensores do flight shame também destacam que de modo algum querem desencorajar as pessoas a explorar o mundo.
“Deixar de voar não significa deixar de viajar”, diz Anna Hughes, que realiza a campanha antivoo Flight Free 2020 no Reino Unido. “Existem tantos lugares que podemos alcançar por outros meios.”
Em vez disso, o movimento estimula o prazer de fazer jornadas lentas e planejadas, sem a aviação. Uma das escolhas óbvias é a viagem de trem, que provoca um décimo das emissões de voos.
“E, na minha opinião, é muito mais agradável”, acrescenta ela.
Em particular, os trens de alta velocidade têm um enorme potencial como alternativa: novas linhas da modalidade reduziram o transporte aéreo nas mesmas rotas em até 80%.
E mesmo que pegar alternativas aos aviões demore mais, outras formas de transporte podem ser mais gratificantes. Como Hughes, experimentei as alegrias das viagens lentas nos meus cinco anos em terra firme, desde o bate-papo com um casal de iranianos em um trem noturno para Verona até apreciar um uísque no bar em uma noite a caminho de Edimburgo.
A viagem lenta também não precisa se limitar a curtas distâncias. Roger Tyers é um sociólogo do clima que recentemente retornou de uma “viagem de campo sem voo” para a China, que o transportou por duas semanas de trem em cada sentido.
Pode parecer uma expedição assustadora, mas ele mostra brilho nos olhos ao falar de sua viagem de trem.
“Foi uma jornada fascinante”, diz ele. “Vi algumas coisas incríveis que você não veria estando em um avião.”
Ele lista uma série de outras vantagens: desintoxicação digital, leitura, trocas com pessoas diferentes e a fuga do jetlag, já que a mudança de fuso-horário é mais gradual.
“É apreciar o tamanho do nosso planeta e quão diverso ele é.”
Impactos climáticos
A título de comparação entre viagens de trem e avião, basta por exemplo um voo entre Londres e Moscou para usar um quinto da sua “pegada de carbono” de um ano inteiro.
Esta pegada é a quantidade de carbono que cada pessoa pode emitir considerando os limites perigosos para o aquecimento global. Fazer a mesma viagem de trem usaria 1/50 do “orçamento” anual e individual de carbono.
Além disso, acredita-se que o impacto das emissões de avião pelo menos duplique se forem incluídos outros poluentes emitidos além do CO2, como óxidos de nitrogênio liberados em grandes altitudes.
A conta é triplicada se você optar pela classe executiva, e não a econômica, devido aos assentos maiores – um uso menos eficiente do valioso espaço na cabine.
“Quanto mais você entende sobre o impacto climático dos voos, mais se sente culpada sempre que entra em um avião”, diz Hughes.
Raízes suecas
O movimento da “vergonha de voar” teve como marco inicial o ano de 2017, quando o cantor sueco Staffan Lindberg anunciou sua decisão de deixar de usar aviões.
Outras personalidades que aderiram à onde incluem o biatleta Björn Ferry, que se comprometeu a viajar para as competições de trem; e a cantora de ópera Malena Ernman, mãe de Greta Thunberg, a jovem ativista de 16 anos que está chamando a atenção do mundo para as mudanças climáticas.
Até agora, foi mesmo na Suécia que a ideia ganhou mais força. A hashtag #jagstannarpåmarken, que se traduz em algo como #euficonochão, tornou-se popular.
Os esforços de Thunberg para evitar voar impulsionaram ainda mais o movimento – apesar da reação feroz de alguns setores.
A ideia parece já ter causado um impacto mensurável nos deslocamentos na Suécia. Nos primeiros três meses de 2019, a operadora aeroportuária Swedavia AB registrou queda no número de passageiros em seus dez aeroportos.
A Swedavia diz que a preocupação com o clima é uma das razões por trás de uma queda de 3% no número de passageiros domésticos em 2018.
De acordo com uma pesquisa da ONG WWF, 23% dos suecos reduziram suas viagens aéreas em 2018 devido ao seu impacto climático.
O movimento antivoos também está ganhando força em outros lugares. Além da campanha Flight Free 2020 do Reino Unido, outros países como Canadá, Bélgica e França estão lançando suas próprias iniciativas.
Nestas campanhas, os signatários ficam tecnicamente comprometidos a permanecer em terra firme no ano seguinte caso 100.000 pessoas de seu país se inscrevam também, embora alguns possam optar por não voar mesmo que o número não seja alcançado.
Fazer a escolha de reduzir ou extinguir voos na vida pessoal é uma coisa, mas no trabalho a coisa pode ser mais complicada. Ainda assim, algumas pessoas e organizações estão buscando soluções.
O jornal dinamarquês Politiken, por exemplo, delineou planos para evitar voos domésticos feitos por jornalistas, compensar aqueles que são inevitáveis e redirecionar a editoria de turismo para roteiros acessíveis de trem.
A academia é outro setor que recorre muito a voos e está passando por mudanças nesta tendência. Vários cientistas especialistas no clima tornam públicos seus esforços para voar menos.
A pesquisadora Alice Larkin, que não voa há mais de uma década, argumenta que as instituições precisam ajustar seu planejamento para controlar o volume de voos por seus funcionários.
“Posso imaginar um mundo daqui a 20 anos em que as pessoas vão rir do fato de que costumávamos cruzar o mundo para uma reunião”, diz a especialista em energia e mudanças climáticas, acrescentando que a internet pode evitar boa parte das milhas percorridas — e poluídas — por voos.
Ela acha que é particularmente importante que os acadêmicos que trabalham com mudanças climáticas deem o exemplo, reduzindo sua pegada ambiental nos ares.
“Se você for ao médico e ele fumar, ao mesmo tempo em que recomenda que você pare de fumar, você vai pensar: ‘Bem, não tenho certeza de que (fumar) seja realmente ruim para mim’.”
Mudança sistêmica
Então, para onde está indo o movimento da “vergonha de voar”? As pessoas que individualmente deixam de entrar em aviões realmente podem conter o enorme aumento de voos previsto para o futuro, especialmente quando muitas viagens tendem a ser feitas por poucos passageiros frequentes?
O sociólogo Tyers argumenta que o efeito social das escolhas pessoais, como não voar, vai muito além das emissões economizadas naquele voo em particular.
“Acho que as pessoas perdem muito tempo falando sobre ação individual versus ação coletiva”, diz ele. “Não espero que todos façam o que eu faço. Eu só espero que a mensagem chege às pessoas que estariam dispostas a substituir os voos por outra coisa.”
Essa visão é apoiada por pesquisas. Ao realizar entrevistas, Steve Westlake, um candidato a doutorado na Universidade Cardiff, descobriu que a escolha de evitar voos tem efeitos sociais.
Os entrevistados indicaram que foi o compromisso demonstrado pelas pessoas que não voam que os influenciou a tentar voar menos também.
“Por ser difícil, isso tem um forte efeito comunicativo”, diz Westlake.
Obviamente, é esperado que nem todos estejam dispostos ou possam abrir mão dos voos dessa maneira.
Ainda assim, reduzir o que for viável ainda pode diminuir significativamente sua pegada de carbono.
Eu, por exemplo, nunca determinei uma regra rígida sobre nunca voar novamente, mas apenas tentar fazê-lo raramente e quando realmente parecer essencial – como a minha ida à Costa Rica.
As reduções voluntárias também têm um limite. O objetivo maior, argumenta Westlake, é que os voos sejam tributados e regulamentados pelos governos por seu impacto climático.
As propostas nesse sentido incluem a taxação do combustível usado na aviação e a taxação sobre passageiros frequentes. O governo sueco, por exemplo, introduziu um “imposto ecológico” na aviação e disse que investirá em trens noturnos.
Estimular algo aparentemente negativo como a vergonha pode ter suas armadilhas, no entanto.
“Como forma de estímulo [ao abandono dos voos], não gosto muito”, diz Westlake. “Porque toda a linguagem em torno da vergonha, da culpa e da moralização tem muitas conotações negativas.”
Hughes concorda, mas diz que campanhas como a dela também devem ser contundentes.
“Sentir vergonha de algo nas proporções certas pode ser realmente positivo”, diz.
A resposta, novamente, pode vir da Suécia e de outra palavra da agenda climática – tagskryt, que se traduz como o mais positivo e proativo “orgulho de usar o trem”.
Fonte: BBC