Numa área rural do Camboja, as cascas do arroz são usadas para gerar eletricidade para as comunidades locais, normalmente dependentes dos altamente poluidores geradores a diesel. O projeto é financiado por indivíduos e empresas do outro lado do mundo que compram os assim chamados créditos de carbono, cada um equivalente a uma tonelada de CO2, para compensar as emissões de em seus países de origem.
Essa é apenas uma das maneiras como o CO2 é comercializado em todo o mundo, e um dos modelos de mercado de carbono que será discutido pelos negociadores na Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas (COP25), em Madri. O objetivo é chegar a um quadro regulatório para um sistema de mercado de carbono, uma questão complexa prevista no Artigo 6º do Acordo de Paris sobre o Clima.
Para Ann-Kathrin Schneider, diretora de políticas internacionais da ONG ambientalista Federação Alemã para o Meio Ambiente e Conservação da Natureza (Bund), o Artigo 6º impõe um “grande risco ao Acordo de Paris”. Ela acredita que o mercado de carbono poderia potencialmente desviar o foco dos países do objetivo de reduzir as emissões. “Não diria que esta é uma questão técnica. É um tema bastante político.”
Quase 200 países ratificaram o histórico acordo sobre o clima que visa limitar o aquecimento global a 2ºC acima dos níveis pré-industriais até o final do século 21, sendo o nível ideal 1,5ºC.
Entretanto as metas atuais de redução estabelecidas por cada país – chamadas de Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês) – fazem com que ambos os objetivos sejam considerados irreais. Com base nos números atuais, especialistas projetam um aumento da temperatura global de ao menos 3ºC.
Segundo seus defensores, contudo, o mercado do carbono pode ser essencial para metas climáticas ainda mais ambiciosas. Em Madri serão discutidos dois sistemas diferentes de comercialização de carbono. O primeiro visa permitir aos países que excederem suas metas climáticas vender os excessos da redução de emissões para as nações que enfrentam dificuldades em atingir seus próprios objetivos.
Por exemplo, se um país que estabeleceu como objetivo reduzir as emissões de CO2 a um total equivalente a 100 toneladas conseguir fazer reduções reais de 110 toneladas, poderá vender as dez excedentes a outro que não conseguiu atingir suas próprias metas.
Prós e contras do comércio de emissão
Stefano de Clara, diretor de políticas internacionais da ONG International Emissions Trading Association (Ieta), dedicada a estabelecer um parâmetro comercial internacional para as reduções, defende esquemas desse tipo como “ferramentas essenciais” para permitir aos países honrarem os compromissos assumidos no Acordo de Paris.
“Idealmente, poderíamos ter um mercado global a pleno vapor, onde todos negociem entre si”, afirmou à DW, acrescentando que cada vez mais países consideram os mercados de carbono como um mecanismo para atingir seus objetivos nacionais.
Entretanto os críticos se mostram preocupados com o interesse crescente nesses sistemas, argumentando que poderia levar alguns países a estabelecer metas nacionais baixas para que possam vender seus créditos excedentes. “Atingir NDCs pouco ambiciosas não deveria bastar para participar de mecanismos baseados nos mercados”, afirmou à DW Carsten Warnecke, cofundador do Instituto NewClimate.
A seu ver, todas as NDCs devem ser suficientemente ambiciosas para que se fique bem abaixo dos 2ºC, e apenas os países cujas metas estejam alinhadas com o Acordo de Paris possam participar dos sistemas de negociação de carbono: “Em teoria, apenas uns poucos países estariam aptos a vender seus excedentes de redução de emissões.”
Gilles Dufrasne, responsável pela política de preços de carbono do Carbon Market Watch, vai ainda mais longe. Ao invés de os créditos de carbono excedentes das metas domésticas de emissão serem vendidos a outras nações, o capital seria guardado para atingir outro alvo de Paris: a criação de um fundo anual de 100 bilhões de dólares para medidas de mitigação e adaptação nos países em desenvolvimento, normalmente os mais afetados pelas mudanças climáticas.
“Assim, levam-se em conta as finanças, mas não se atribui a redução das emissões a si próprio, seja um país ou uma empresa. “Passa a ser um acréscimo, que é o que os mercados, até a compra de créditos, deveriam ser: um sistema para realmente aumentar as ambições para provocar maiores reduções das emissões.”
As regras para gerir o comércio através da compensação também farão parte das discussões sobre o Artigo 6º em Madri, com negociadores desenvolvendo regras para o Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável, ferramenta que substitui o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (CDM), criado há mais de uma década sob o Protocolo de Kyoto.
O CDM permitiu que países ricos compensassem suas emissões domésticas de CO2 financiando programas de desenvolvimento sustentáveis para redução em nações emergentes. Entretanto o Carbon Market Watch calcula que 85% dos projetos financiados através desse mecanismo teriam prosseguido, de qualquer modo.
“Era para ser um sistema que permitisse aos países criarem metas mais ambiciosas”, explica Dufrasne. “Mas na verdade o que conseguiu foi tornar mais barato atingir as metas existentes, e ainda é possível argumentar que enfraqueceu os objetivos de realmente reduzir emissões. Os países compravam créditos que realmente não representam muita coisa.”
Os críticos também afirmam que os créditos utilizados sob o CDM eram baratos demais, e não deveriam ser incluídos em nenhum dos novos esquemas, ponto que gera polêmica entre os países que detêm esses créditos.
Minando o Acordo de Paris?
Ambientalistas ressaltam que regras rígidas são essenciais ao êxito de qualquer esquema global de comércio, e devem evitar dupla contagem, na qual ambos os países, os que vendem e compram, reivindicam o mérito pelas reduções.
Stefano de Clara, do IETA, argumenta que, se os negociadores em Madri conseguirem assegurar regulamentações rigorosas, o Artigo 6º fornecerá incentivo necessário a assegurar altos padrões no mercado de emissões, o que acarretaria naturalmente metas ambiciosas.
“Se um país gasta o dinheiro dos contribuintes para fomentar reduções de emissões no exterior, então não buscaria reduções ou créditos que não possam ser confiáveis. Sob essa lógica, esse poderia se tornar um atrativo para os países.”
Entretanto, Ann-Kathrin Schneider ressalva que incluir os mercados de carbono no Acordo de Paris poderia acabar por miná-lo: “Tememos que, se o Artigo 6º for decidido nesta conferência, desviará de outros instrumentos, como o abandono gradual dos combustíveis fósseis; e que se tente uma saída fácil das ambições climáticas, reduzindo-as, em vez de aumentá-las.”
A subdiretora da ONG alemã Bund frisa que urgência no combate à crise do clima é mais necessária agora do que nunca. Para ela, assim como para muitos de seus companheiros de causa, apenas ações nacionais diretas poderão fazer a tão necessária diferença.
Fonte: Deutsche Welle