Com o coronavírus, data em que a humanidade extrapola a biocapacidade do planeta chegou três semanas mais tarde em 2020. Mas está claro que não é uma solução sustentável. Nem desejável.
Em 1970, a biocapacidade da Terra era mais do que suficiente para atender à demanda humana anual por recursos. Mas em meio século, vimos extrapolando constantemente o nosso único planeta. A humanidade agora consome cerca de 60% a mais do que a Terra pode produzir em um ano, o que significa que precisaríamos de mais de meio planeta extra para nos sustentar.
Em 31 de julho de 2019, a humanidade já havia esgotado seu orçamento de recursos para todo o ano. Este foi o Dia de Sobrecarga da Terra (Earth Overshoot Day) mais precoce já registrado pela Global Footprint Network (GFN), que há quase três décadas calcula os impactos ecológicos globais e nacionais.
Na época, a humanidade vinha ultrapassando sua biocapacidade – definida como a “capacidade dos ecossistemas de produzirem materiais biológicos usados pelos humanos e de absorverem os resíduos gerados por ele” – em alguns dias a mais a cada ano.
No entanto, devido à quarentena mundial provocada pelo coronavírus, 2020 reverteu essa tendência. Este ano, o Dia de Sobrecarga da Terra atrasou em mais de três semanas, chegando somente neste sábado (22/08).
As projeções revelam uma redução de quase 15% das emissões de CO2 (cerca de 60% da pegada total), como resultado da desaceleração, ditada pela pandemia, do uso de combustíveis fósseis nos setores de transporte, energia, indústria, aviação e residencial.
O cálculo global da Sobrecarga da Terra, que usa dados de organizações como a Agência Internacional de Energia, também inclui a produção florestal, que caiu quase 9%, e nossa pegada alimentar, que ficou estável.
Planeta de miséria ou de prosperidade?
Para Mathis Wackernagel, fundador e presidente da rede GFN, a contração deste ano é bem-vinda. Mas ele ressalta que ela é acidental, o que significa que não é sustentável.
“A tragédia deste ano é que a redução das emissões de carbono não se baseia numa infraestrutura melhor, como redes elétricas melhores ou cidades mais compactas”, explicou DW. “Precisamos mudar a data propositalmente, e não por um desastre.”
Para cumprir as metas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) de limitar o aquecimento global a 1,5-2 ºC em relação à era pré-industrial, a queda atual na curva de emissões teria que continuar na mesma taxa pela próxima década, aponta Wackernagel.
No momento, porém, se tem alcançado isso através de sofrimento econômico e social, “não fazendo nada, presos em casa”: Esse não é o tipo de transformação de que precisamos, não é duradoura.” A meta deve ser “nos ajustarmos sistematicamente ao orçamento físico que temos disponível”: “Queremos a miséria ou a prosperidade de um planeta?”
Para , o fundador da GFN., nascido na Suíça e vencedor do Prêmio Mundial de Sustentabilidade 2018, o coronavírus é um reflexo do próprio estresse ecológico. “Essas pressões que vemos na forma de pandemias, fome, mudanças climáticas, perda de biodiversidade, são todas manifestações de um desequilíbrio ecológico.”
Menos emissões para o benefício de todos
Um efeito colateral importante das reduções de emissões causadas por desastres é o fato de que “a dor vai ser distribuída de forma desigual”, afirma Wackernagel.
Grupos marginalizados, especialmente indivíduos de cor, têm sido desproporcionalmente afetados pelos “enormes impactos econômicos” da pandemia, apontou Sarah George, repórter-chefe da Edie, empresa de mídia do Reino Unido que promove práticas de negócios sustentáveis.
A Edie realizou em 2019 seu primeiro seminário online de Sobrecarga da Terra, com o objetivo de educar organizações a reduzirem sua pegada de recursos por meio de modelos de negócios sustentáveis para todos no longo prazo.
George diz que o webinário deste ano, em 22 de agosto, também abordará o equívoco difundido por alguns céticos do clima de que um futuro verde e de baixo consumo só é possível mediante as privações de uma quarentena.
“Eles têm usado a situação para dizer que o bloqueio é ‘o que os ativistas verdes desejam’, e que não podemos desfrutar de coisas como viagens internacionais, crescimento econômico, etc., num futuro verde.”
Mas, após pandemia, o objetivo é criar um modelo planetário através do qual as empresas possam combinar “melhores resultados econômicos e sociais” com “menores emissões e menos poluição do ar” anuncia George.
Dívida ecológica maior em países em desenvolvimento
Calculado globalmente e em relação a países individuais, o Dia de Sobrecarga da Terra, revela como as nações industrializadas estão consumindo a biocapacidade da Terra em ritmo muito mais acelerado.
Nos Estados Unidos, onde a data caiu em 14 de março, os cidadãos precisariam de cerca de cinco planetas para manter sua pegada ecológica descomunal. A Alemanha ultrapassou a marca 50 dias depois, em 3 de maio, mas, ainda assim, requereria três planetas. O Brasil, em comparação, exauriu seus recursos em 31 de julho em 2020, apresentando uma demanda de 1,7 planeta para se manter.
“Na Suécia, de acordo com o fundo mundial para a natureza WWF e a GFN, vivemos como se tivéssemos cerca de quatro planetas, e quase o mesmo vale para toda a região nórdica”, escreveu a ativista climática Greta Thunberg em outubro de 2019, ao rejeitar um prêmio ambiental do Conselho Nórdico, alegando que aqueles no poder deveriam, em vez disso, “dar ouvidos à melhor ciência que temos à nossa disposição”.
Embora a Escandinávia seja conhecida por sua liderança mundial em investimentos em energia renovável e em eletrificação de transporte rápido, no caso da Noruega, os dados da GFN mostram que o consumo individual permanece altamente insustentável. Em contraste, o posto avançado socialista de Cuba, que ultrapassa a marca em 1º de dezembro, é uma das poucas nações que quase consegue viver dentro de suas capacidades.
Na Austrália, país considerado gigante da biocapacidade devido a sua população relativamente pequena e seus vastos recursos naturais, observa-se um déficit de biocapacidade pela primeira vez na história, na sequência dos incêndios devastadores de 2019 e 2020. O continente mais seco do mundo esgotou sua capacidade ecológica em 30 de março. Uma Austrália devastada pelo fogo demonstrou, segundo um relatório da GFN, “quão frágil a biocapacidade pode ser”.
“Com a mudança climática e o uso excessivo de recursos, colocamos uma maior demanda nos ecossistemas essenciais para a sobrevivência não só da humanidade, mas também das espécies selvagens”, explicam os autores. “A demanda crescente combinada a uma biocapacidade menos robusta resulta numa combinação perigosa.”
Mas qualquer tentativa de mover a data em direção à compatibilidade com um único planeta exigirá uma redução sistemática de nossa pegada ecológica de uma forma que também esteja de acordo com as imposições da ciência climática.
Para Mathis Wackernagel, isso deve começar pelo indivíduo, um princípio que também é fundamental no combate ao coronavírus, pois “quem protege a si, protege a todos”.
Fonte: Deutsche Welle