Com a cauda queimada e as patas muito feridas, o jupará que acaba de chegar ao Centro de Medicina e Pesquisa de Animais Silvestre (Cema), na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), é mais uma vítima das queimadas no Pantanal.
Sandra Ramiro, coordenadora do centro, diz que o caso é bastante grave. “É uma fêmea, chegou muito desidratada e ainda está se estabilizando”, comenta a médica veterinária sobre o animal, também chamado de macaco-da-meia-noite em algumas regiões. Foi Ramiro quem recebeu na madrugada desta terça-feira (22/09) o jupará resgatado e levado da zona do fogo a Cuiabá pela Polícia Ambiental.
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Três antas gravemente feridas e encaminhadas ao hospital da universidade, infelizmente, não sobreviveram. Um filhote de veado-catingueiro que teve as quatro patas queimadas ainda resiste sob os cuidados dos veterinários e com amamentação artificial.
“A grande dificuldade é a gravidade de cada lesão. São queimaduras de segundo e terceiro graus que comprometem ligamento e causam exposição óssea, já que a pele é consumida pela queimadura”, comenta Ramiro.
O estresse que o atendimento gera nesses animais silvestres também complica o tratamento. São necessárias bandagens por longo tempo nas regiões afetadas e uso de pomadas específicas.
“Quando existe possibilidade de tratamento alternativo, a gente trabalha em parceria com instituições”, afirma a veterinária. Foi o que aconteceu com duas onças pintadas que a UFMT acolheu e logo encaminhou à NEX, ONG que trabalha com felinos ameaçados de extinção. Chamados de Amanaci e Ousado, os animais recebem aplicações de células-tronco, e o quadro de saúde tem evoluído, segundo a equipe.
Mas as cenas de terror geradas pelo sofrimento dos animais no Pantanal mato-grossense permanecem. Dados atualizados pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) estimam que pelo menos 22% do bioma foram perdidos para o fogo em 2020.
Terra arrasada e fome
“O mais difícil é a todo momento encontrar cadáveres carbonizados. E pensar no sofrimento que o animal teve. Eram jacarés e outros que estavam ali, vivendo em equilíbrio”, lamenta Carla Sassi, veterinária que atua no Grupo de Resgate de Animais em Desastres (GRAD).
De Poconé a Porto Jofre, no Mato Grosso, as equipes voluntárias, que contam atualmente com nove pessoas, ajudam a matar a fome e a sede da fauna que sobrevive às chamas.
Depois da devastação provocada pelos incêndios, a ameaça crescente é a da chamada fome cinzenta.
“Os animais perambulam desorientados em busca de água e comida. O fogo acabou com quase toda a reserva [de comida], eles não têm o que comer”, explica Sassi.
Para trazer um pouco de alívio, os voluntários montaram 72 pontos de abastecimento. Eles têm servido de refúgio para animais como lontra, jabuti, iguana, serpentes, entre outros.
Mesmo os que são encontrados vivos e aparentemente saudáveis já começam a emagrecer devido à escassez de alimento, segundo os voluntários. “Não dá para imaginar, para mensurar, quantos morreram e quantos ainda vão morrer neste período. Estamos arrasados, mas a equipe tenta se manter firme e forte”, diz Sassi.
À base de doações, o GRAD foi formado em 2011 e já atuou em diversas situações, como a tragédia naquele ano provocada por deslizamentos de terra em Nova Friburgo; após o colapso das barragens de mineração em Mariana, em 2015, e em Brumadinho, em 2019; durante as queimadas no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros; e após enchentes.
“Mas nunca vimos nada como o que está acontecendo no Pantanal. É muito surreal”, afirma Sassi, que também destaca os desafios logísticos, como a falta de diversas pontes na estrada que foram consumidas pelo fogo.
Além do GRAD, outras organizações estão de plantão no Pantanal e atuam sob coordenação da Secretaria de Estado de Meio Ambiente, que ativou no fim de agosto um posto de atendimento emergencial para os animais silvestres resgatados.
Desde então, foram atendidos espécies como tuiuiú (a ave símbolo do bioma), garça, iguana, jabuti, jaguatirica, queixada, anta, maritaca, cachorro-do-mato, veado, paca, gavião, ariranha, coruja, quati, lontra, tamanduá.
Até a chuva chegar
Em Poconé, Fernando Tortato, biólogo e pesquisador da ONG Panthera, que trabalha com pesquisa científica e monitoramento de onças-pintadas no Brasil, fez de tudo para proteger o maior trecho possível do habitat desse felino ameaçado.
Na fazenda usada para pesquisa, que tem 10 mil hectares, as equipes tentaram impedir a propagação do fogo na área de natureza preservada onde as onças vivem. “Tentamos defender de 5 mil a 6 mil hectares, mas supomos que conseguimos garantir 3 mil”, diz Tortato.
Um dos momentos mais difíceis, relata o biólogo, foi quando as chamas “pularam” de uma margem à outra do rio Cuiabá, vencendo 150 metros de água, e queimaram um terreno considerado importante.
O que foi preservado pode garantir a sobrevivência de algumas espécies. “Até a chuva chegar, até a vegetação começar a se recompor, será um período muito triste, porque muitos animais vão morrer de fome ou terão muita dificuldade. Cada hectare que conseguimos proteger fará uma diferença muito grande”, justifica o biólogo.
Em média, uma onça fêmea precisa de 10 km² para viver, o macho percorre até 30 km². Alguns, por outro lado, ocupam até 100 km². Essa área pode ser compartilhada com fêmeas e alguns outros machos num sistema hierárquico.
O fenômeno da destruição da temporada de queimadas mais severa já registrada no Pantanal ainda se desenrola. “Ainda é cedo para dizer quantos animais morreram. Tudo ainda está acontecendo. Respostas mais claras só virão no ano que vem”, finaliza Torato.
Fonte: Deutsche Welle