“Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento (ambiental), e simplificando normas”.
A frase é famosa: foi dita pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião ministerial do dia 22 de abril, e tornada pública por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF).
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Apesar disso, segundo ambientalistas e procuradores ouvidos pela BBC News Brasil, Ricardo Salles já está trabalhando para “passar a boiada” desde o começo de sua gestão, em janeiro de 2019, muito antes da pandemia do novo coronavírus.
Desde que assumiu a pasta, o ministro criou regras que dificultaram a aplicação de multas; transferiu poderes do Ministério do Meio Ambiente para outras pastas; e tentou mudar o entendimento sobre normas como a Lei da Mata Atlântica.
A última tentativa de Salles de remover regulamentações ambientais aconteceu nesta segunda-feira (28). Em reunião convocada dias antes pelo ministro, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) revogou quatro resoluções que tratavam de diferentes áreas da política ambiental do país.
Duas das resoluções eliminadas restringiam o desmatamento e a ocupação em áreas de restinga, manguezais e dunas. Na prática, o fim das resoluções, que estavam em vigor desde 2002, criou a possibilidade de ocupação em áreas de restinga numa faixa de 300 metros a partir da praia. Antes, essas áreas eram consideradas como sendo de proteção ambiental.
Na mesma reunião, o Conama também permitiu a queima de lixo tóxico — como embalagens de defensivos agrícolas, por exemplo — em fornos usados originalmente para a produção de cimento. Além disso, o conselho também derrubou uma resolução que criava normas para projetos de irrigação.
A decisão do Conselho é controversa.
Segundo o advogado especializado em direito ambiental Rodrigo Moraes, a decisão foi juridicamente correta, pois as resoluções que foram revogadas seriam ilegais.
As normas foram criadas para regulamentar uma versão anterior do Código Florestal, de 1965, que foi revogado com a edição do novo código, em 2012. Assim, estas também teriam perdido a eficácia, argumenta Moraes. Além disso, diz ele, a exigência de preservar a faixa de 300 metros depois do mar não estava presente na lei original — assim, o Conselho de meio ambiente teria “legislado” de forma indevida ao criar a norma, em 2002.
Já ambientalistas argumentam que a decisão do Conselho foi feita sob medida para atender a setores econômicos.
“Mesmo com a revogação das resoluções, a proteção dos mangues, dunas e restingas continuarão a existir pelas regras do Novo Código Florestal, pela Lei da mata Atlântica e ainda pelas regras constitucionais”, argumenta o advogado.
Segundo o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso, o “revogaço” agrada ao mercado imobiliário, que deseja erguer prédios em áreas protegidas à beira-mar; a criadores de camarão que querem construir seus tanques dentro de manguezais; e ao agronegócio, que deseja menos regulamentações nas suas operações com irrigação e agrotóxicos.
Agostinho também rebate o argumento de que as resoluções seriam ilegais. “Tivemos algumas decisões do Judiciário confirmando que as resoluções tinham sido recepcionadas (pelo novo Código Florestal) e estavam em vigor. Agora, ficou uma lacuna. A regulamentação que tinha para manguezais e restingas deixou de existir”, disse ele à BBC News Brasil.
No começo da noite desta terça-feira (29/09), a decisão do Conama que revogou as resoluções foi anulada pela Justiça Federal. É uma decisão liminar (provisória) da juíza Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho, da 23ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Ela atendeu a uma ação popular formulada por um grupo de advogados. Cabe recurso.
Em entrevista ao canal de TV CNN Brasil, nesta quarta-feira (30/09), Salles disse que a pasta vai recorrer da decisão. Ele também lembrou que já existiam estudos para revogar as resoluções desde a gestão da ex-ministra Izabella Teixeira (2010-2016), ainda nos governos do PT.
Improbidade administrativa
Por conta das constantes ‘boiadas’, um grupo de procuradores do Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação de improbidade administrativa contra Ricardo Salles, pedindo que a Justiça Federal o afaste do cargo. O caso está atualmente nas mãos do desembargador Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (Brasília).
“O que se percebe é que existe uma desestruturação das políticas (ambientais), o que repercute nas violações (de direitos) e nas ilegalidades que são discutidas na ação judicial (de improbidade)”, diz o procurador Júlio Araújo, um dos autores da ação.
“Quando se desestrutura a política, não se trata de um mero rearranjo, uma mera reorganização. Você cria condições para que não haja a efetiva proteção daquele bem jurídico, daquela pauta a que está destinada a pasta. É por isso que nós colocamos essa questão no campo da improbidade administrativa. Ela está fora do quadrante da possibilidade de escolha do gestor”, explica Araújo, que integra a Força-Tarefa Amazônia do MPF.
“É uma atuação (a de Salles) em sentido contrário ao que se deveria minimamente organizar. Não significa que deve (a atuação do ministro) ser de um jeito ou de outro. Ao longo dos últimos 30 anos, isso foi… cada gestor procurou dar uma orientação. Agora, desestruturar, esvaziar a política ambiental, isso não é permitido. Por isso a ação de improbidade”, diz ele à BBC News Brasil.
A reportagem da BBC News Brasil procurou o Ministério do Meio Ambiente para comentar o assunto, mas não houve resposta até o fechamento desta reportagem.
Mas quais foram as outras tentativas de afrouxar a proteção ambiental no país? A BBC News Brasil cita algumas decisões que vão nesse sentido.
1. Abrir mão do poder de conceder florestas públicas
Em meados de maio, o presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) e Ricardo Salles assinaram um decreto transferindo do Ministério do Meio Ambiente para o Ministério da Agricultura o poder de conceder as florestas nacionais.
A concessão ocorre quando o governo dá a uma empresa privada o direito de explorar uma área de floresta, por meio da prática conhecida como manejo florestal, em troca de algum tipo de contrapartida. O concessionário pode usar a área para cortar madeira de forma sustentável ou para turismo, por exemplo.
Pouco depois, a Justiça Federal interveio no assunto e suspendeu os efeitos do decreto. Para o juiz federal Henrique Jorge Dantas da Cruz, que analisou o caso, a mudança não poderia ter sido feita por decreto, pois seria necessária a aprovação do Congresso Nacional.
Da mesma forma como as atribuições de cada ministério são definidas em lei, também é preciso uma lei aprovada pelo Congresso para mudá-las, e não um simples decreto do Executivo, entendeu o magistrado.
2. Tentar afrouxar a proteção à Mata Atlântica
No dia 6 de abril, Salles publicou um despacho aprovando um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a Lei da Mata Atlântica.
Na prática, o despacho de Salles obrigou os órgãos ambientais do governo federal, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a adotar o entendimento presente no Código Florestal, mais brando, ao invés daquele da Lei da Mata Atlântica, mais restritivo.
A mudança possibilitava, entre outras coisas, a regularização de desmatamentos ilegais em áreas de preservação permanente (APPs) na Mata Atlântica, que é considerado o bioma mais ameaçado do país.
Mais uma vez, a tentativa de afrouxar normas foi frustrada: no começo de junho, o próprio Salles revogou a despacho, que estava sendo contestado na Justiça pelo Ministério Público Federal e por órgãos da área ambiental.
Ao desistir do despacho, o governo decidiu ingressar com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal, de modo a evitar futuros questionamentos jurídicos.
3. A ‘audiência de conciliação’ para multas ambientais
Em abril de 2019, Ricardo Salles e Jair Bolsonaro assinaram decreto criando a necessidade de uma “audiência de conciliação” entre fiscais e infratores, sempre que houver a aplicação de uma multa ambiental.
As tais audiências nunca “pegaram”: dados obtidos pela ONG Observatório do Clima mostram que, de outubro de 2019 até agosto deste ano, foram realizadas apenas cinco audiências deste tipo pelo Ibama, e nenhuma pelo ICMBio. O número é muito menor que a quantidade de multas aplicadas pelos dois órgãos no período.
Na prática, o decreto das “audiências de conciliação” criou mais um gargalo para a aplicação de multas ambientais, contribuindo para a diminuição da atividade da fiscalização, de acordo com servidores e ex-dirigentes do Ibama.
“O número de autuações lavradas é um dado importante que pode traduzir o esforço do governo em punir realmente aqueles que cometem crimes ambientais. Quanto menor a presença da fiscalização em campo, fazendo o seu trabalho de responsabilizar os infratores, maior a sensação de impunidade”, disse um servidor do Ibama à BBC News Brasil em meados de setembro deste ano, sob condição de anonimato.
4. Mudanças no Conselho Nacional do Meio Ambiente
A revogação das normas ambientais desta segunda-feira não seria possível sem um passo anterior: a mudança na composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama.
A mudança foi feita por decreto, em maio de 2019, e envolveu uma mudança drástica na composição do colegiado.
O número de integrantes caiu de 96 para 23, e a proporção de representantes do governo federal aumentou em relação aos indicados por governos estaduais e ONGs ambientalistas.
Além disso, também foram suprimidos os representantes sem direito a voto, indicados pelo Ministério Público Federal, pelos Ministérios Públicos dos Estados e pela Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados.
5. Exoneração de fiscais logo depois de ação em terras indígenas
No fim de abril deste ano, Ricardo Salles decidiu exonerar o então coordenador-geral da fiscalização ambiental do Ibama, Renê Luiz de Oliveira, e o coordenador de operações de fiscalização, Hugo Ferreira Netto Loss. Pouco antes, tinha sido demitido o diretor de Proteção Ambiental do órgão, Olivaldi Azevedo.
O que poderia ser um ato administrativo normal — a remoção de servidores de cargos de chefia — passou a ser criticado por ambientalistas por causa do momento em que aconteceu: as demissões foram feitas logo depois que o Ibama realizou operações bem sucedidas contra garimpeiros ilegais em terras indígenas no Pará.
Entre janeiro e abril de 2020, foram várias as operações em quatro terras indígenas naquele Estado: Ituna-Itatá, Apyterewa, Cachoeira Seca e Trincheira Bacajá. Os resultados foram expressivos. Em uma única etapa de operações nas terras indígenas, em abril de 2020, foram destruídos pouco mais de 100 equipamentos usados por garimpeiros, como serras, tratores e veículos.
Pouco antes das demissões serem efetivadas, um grupo de 16 fiscais do Ibama enviou carta à presidência do Instituto pedindo a manutenção de Renê Oliveira e Hugo Ferreira em seus cargos, o que não aconteceu.
Fonte: BBC