Uma proteína produzida quando nadamos em água gelada ou quando o corpo é resfriado por algum outro motivo pode ajudar a proteger o cérebro de doenças degenerativas como a demência, segundo uma pesquisa da Universidade de Cambridge.
Pela primeira vez, uma proteína chamada RBM3, conhecida como a “proteína do choque frio” foi encontrada no sangue de nadadores de inverno de Londres.
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Já foi demonstrado que essa proteína pode retardar o início da demência e até mesmo reparar alguns dos danos que a enfermidade causa em ratos, mas havia dúvidas sobre se ela era produzida no corpo humano.
Giovanna Mallucci, que dirige o Centro de Pesquisa de Demência do Reino Unido na Universidade de Cambridge, diz que a descoberta pode guiar os pesquisadores na direção de novos tratamentos com remédios que possam ajudar a combater a demência.
Embora promissora, a pesquisa ainda está em um estágio inicial e ainda não passou por peer review (quando é revisada por outros cientistas). O estudo analisa o potencial para a hibernação que todos os mamíferos têm, que é estimulado pela exposição ao frio.
Já existem mais de um milhão de pessoas com demência no Reino Unido e espera-se que o total dobre até 2050. Em 2012, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estimava em 35,6 milhões o total de pessoas com demência no mundo, e que esse número chegaria a 65 milhões em 2030.
Os pesquisadores estão buscando novas maneiras de tratar a doença, pois as opções atuais têm impacto limitado.
Ursos e ouriços
Os médicos sabem há décadas que diminuir a temperatura corporal das pessoas pode — em certas circunstâncias — proteger seus cérebros.
Em procedimentos cirúrgicos em pessoas com lesões na cabeça ou problemas cardíacos, é comum reduzir sua temperatura corporal.
O que ainda falta compreender melhor é o porquê de o frio ter esse efeito protetor.
A ligação com a demência está na destruição e criação de sinapses — as conexões entre as células do cérebro.
Nos estágios iniciais do Alzheimer e de outras doenças neurodegenerativas, essas conexões cerebrais são perdidas.
Isso leva a uma série de sintomas associados à demência — incluindo perda de memória, confusão e alterações de humor — e, com o tempo, à morte dos neurônios.
O que intrigou a pesquisadora Giovanna Mallucci foi o fato de que as conexões cerebrais são perdidas quando animais como ursos, ouriços e morcegos entram em hibernação para o inverno.
Cerca de 20-30% de suas sinapses são eliminadas, pois seus corpos preservam energia nesse estado. Mas quando eles acordam na primavera, essas conexões são milagrosamente recriadas.
‘Proteína do choque frio’
A equipe que estuda demência na Universidade de Cambridge descobriu a substância do “choque frio” em 2015.
Eles resfriaram camundongos saudáveis e camundongos com doença de Alzheimer e doença do príon (neurodegenerativa), até que eles ficassem hipotérmicos, ou seja, que sua temperatura corporal estivesse abaixo de 35°C.
No reaquecimento, eles descobriram que apenas os ratos saudáveis conseguiam regenerar suas sinapses; os camundongos doentes não.
Ao mesmo tempo, eles descobriram que os níveis de uma proteína chamada RBM3, a proteína do “choque frio”, dispararam em ratos saudáveis durante o resfriamento, mas não nos outros.
Essa descoberta sugeria que a RBM3 poderia ser a chave para a formação de novas conexões. Os cientistas comprovaram essa hipótese em um outro experimento, que mostrou que as mortes de células cerebrais nos doentes poderiam ser evitadas aumentando artificialmente os níveis de RBM3 em camundongos.
Foi um grande avanço na pesquisa sobre demência, e essas descobertas foram publicadas na revista científica Nature.
Nadadores de inverno
Mallucci acreditava que um remédio para induzir a produção de RBM3 poderia ajudar a retardar — e possivelmente até reverter parcialmente — o progresso de algumas doenças neurodegenerativas nas pessoas.
A RBM3, no entanto, não havia sido detectada no sangue humano, então o próximo passo em termos de pesquisa era descobrir se a proteína está presente na população humana.
Em uma entrevista no programa Today da BBC Radio 4 , a professora Mallucci explicou que gostaria de pesquisar a RBM3 em humanos — mas que as diretrizes éticas tornariam muito difícil obter permissão para deixar as pessoas hipotérmicas.
Foi então que entrou em cena o nadador Martin Pate, parte de um pequeno grupo que nada durante todo o inverno ao ar livre e sem aquecimento em Londres.
Ele e os outros nadadores voluntariamente diminuíam sua temperatura corporal regularmente, contou o nadador à pesquisadora, e seriam, portanto, perfeitos para serem estudados.
Mallucci concordou e, durante os invernos de 2016, 2017 e 2018, sua equipe testou a proteína em nadadores de inverno.
Os pesquisadores usaram membros de um clube de tai chi que fazem exercício ao lado da piscina, mas nunca nadam, como grupo de controle.
A equipe de Cambridge descobriu que um número significativo de nadadores tinha níveis elevados de RBM3. Todos eles haviam ficado regularmente hipotérmicos, com temperaturas de até 34ºC.
Nenhum membro do grupo de tai chi mostrou um aumento nos níveis de RBM3 ou experimentou essas temperaturas corporais muito baixas.
O desafio
A nova pesquisa de Cambridge ainda não foi publicada em um jornal científico, mas há outros indícios da presença da proteína em seres humanos.
Vários outros pesquisadores descobriram níveis similarmente altos de RBM3 em bebês e pacientes cardíacos ou com derrame que ficaram hipotérmicos.
O que essas descobertas mostram, diz Mallucci, é que — assim como ursos hibernando — os seres humanos são capazes de produzir a proteína do “choque frio”.
Mas, no momento, os riscos associados ao resfriamento superam quaisquer benefícios potenciais, então a imersão em água fria certamente não é um tratamento potencial para a demência, diz ela.
O desafio agora é encontrar uma droga que estimule a produção da “proteína do choque frio” em humanos e — mais importante ainda — verificar que ela realmente ajuda a retardar a demência.
A demência é predominantemente associada ao envelhecimento, portanto, mesmo um atraso relativamente curto no início da doença pode trazer enormes benefícios para os indivíduos e para a população em geral.
“Se você retardasse o progresso da demência por até mesmo alguns anos em uma população inteira, isso teria um impacto enorme em termos econômicos e de saúde”, diz Malluci.
Cuidado com o frio
Os médicos alertam para os perigos de interpretar erroneamente este tipo de pesquisa e achar que passar frio pode fazer bem.
O frio tem um efeito poderoso no corpo humano e nadar em água gelada é perigoso: nadadores de água gelada costumam ter a saúde em ordem e acompanhamento médico.
O choque de entrar em água gelada causa um aumento dramático na frequência cardíaca e na pressão arterial, o que pode causar ataques cardíacos e derrames em pessoas com doenças pré-existentes.
A queda brusca de temperatura também provoca respiração ofegante e rápida, que pode levar ao afogamento se a água for inalada.
Quanto mais tempo alguém passa na água, mais lentas são suas respostas. As pessoas podem ficar confusas e ter dificuldade em sair da água.
A médica Heather Massey, do Laboratório de Ambientes Extremos da Universidade de Portsmouth, diz que há algumas coisas importantes a serem lembradas.
- Antes de dar um mergulho em água gelada, certifique-se de que está em forma e com saúde e, em caso de dúvidas, cheque com seu médico
- Nade com outras pessoas que estão acostumadas a água gelada e conhecem os perigos locais
- Saia se começar a sentir frio
- Encontre abrigo, remova as roupas molhadas e substitua-as por tantas camadas de roupas quentes e secas quanto possível, incluindo luvas e proteção para a cabeça
- Continue se movendo, faça exercícios leves se puder e não se preocupe se estiver tremendo — isso vai te ajudar a se aquecer
- Não tome banho ou ducha quente imediatamente — alterações na pressão arterial durante o reaquecimento podem causar desmaios e risco de lesões traumática
Fonte: BBC