É um paradoxo: a vida precisa de água para sobreviver, mas um mundo cheio de água não pode gerar as biomoléculas que seriam essenciais para o início da vida. Ou assim pensavam os pesquisadores.
A água está em toda parte. A maior parte do corpo humano é feito dela, grande parte do planeta Terra é coberta por ela e os humanos não podem sobreviver mais do que alguns dias sem beber água. As moléculas de água têm características únicas que lhes permitem dissolver e transportar compostos pelo corpo, fornecer estrutura às células e regular a temperatura. De fato, as reações químicas básicas que possibilitam a vida como a conhecemos requerem água, sendo a fotossíntese um exemplo.
No entanto, quando as primeiras biomoléculas como proteínas e DNA começaram a se unir nos estágios iniciais do planeta Terra, a água era na verdade uma barreira à vida.
A razão é surpreendentemente simples: a presença de água evita que compostos químicos percam água. Tomemos, por exemplo, as proteínas, que são uma das principais classes de moléculas biológicas que compõem seu corpo. As proteínas são, em essência, cadeias de aminoácidos unidas por ligações químicas. Essas ligações são formadas através de uma reação de condensação que resulta na perda de uma molécula de água. Essencialmente, os aminoácidos precisam ficar “secos” para formar uma proteína.
Considerando que a Terra antes da vida estava coberta de água, isso era um grande problema para fazer as proteínas essenciais à vida. Como tentar se secar dentro de uma piscina, dois aminoácidos teriam dificuldade em perder água para se unir na sopa primordial da Terra primitiva. E não foram apenas as proteínas que enfrentaram esse problema na presença de água: outras biomoléculas essenciais à vida, incluindo DNA e açúcares complexos, também dependem de reações de condensação e perda de água para se formar.
Ao longo dos anos, os pesquisadores propuseram muitas soluções para esse “paradoxo da água”. A maioria deles depende de cenários muito específicos na Terra primitiva que poderiam ter permitido a remoção de água. Estes incluem poças de secagem, superfícies minerais, fontes termais e fontes hidrotermais, entre outros. Essas soluções, embora plausíveis, exigem condições geológicas e químicas particulares que podem não ter sido comuns.
Em nosso estudo recente, meus colegas e eu encontramos uma solução mais simples e geral para o paradoxo da água. Ironicamente, pode ser a própria água – ou para ser mais preciso, gotículas de água muito pequenas – que permitiram a formação de biomoléculas iniciais.
Por que microgotas?
As gotículas de água estão por toda parte, tanto no mundo moderno quanto especialmente durante a Terra pré-biótica (ou pré-vida). Em um planeta coberto por ondas e marés furiosas, as pequenas gotículas de água do mar e outros aerossóis teriam fornecido um local simples e abundante para as primeiras biomoléculas se reunirem.
Microgotas de água – tipicamente gotículas muito pequenas com diâmetros em torno de um milionésimo de metro, muito menores que o diâmetro da seda da aranha – podem não parecer resolver o paradoxo da água a princípio, até que você considere os ambientes químicos muito particulares que elas criam.
As microgotas têm uma proporção substancial de área de superfície para volume que fica maior – quanto menor for a gota. Isso significa que há um espaço significativo onde o solvente do qual elas são feitas (neste caso, água) e o meio pelo qual estão cercadas (neste caso, ar) se encontram.
Ao longo dos anos, os pesquisadores mostraram que a interface ar-água é um ambiente químico único. A química dessas interfaces de microgotas é dominada por grandes campos elétricos, solvatação parcial onde as moléculas são parcialmente cercadas por água, moléculas altamente reativas e acidez muito alta. Todos esses fatores permitem que as microgotículas acelerem as reações químicas que ocorrem nelas.
Nosso laboratório estuda microgotículas há uma década, e nosso trabalho anterior mostrou como a taxa de reações químicas comuns pode ser acelerada até um milhão de vezes mais rápido em microgotas. Reações que levariam um dia inteiro agora podem ser concluídas em apenas uma fração de segundo usando essas pequenas gotículas.
Em nosso trabalho recente, propusemos que as microgotas poderiam ser uma solução para o paradoxo da água porque sua interface ar-água não apenas acelera as reações, mas também atua como uma “superfície de secagem” que facilita as reações necessárias para criar biomoléculas, apesar da presença de água.
Testamos essa teoria pulverizando aminoácidos dissolvidos em microgotas de água em direção a um espectrômetro de massa, um instrumento que pode ser usado para analisar os produtos de uma reação química. Descobrimos que dois aminoácidos podem se unir com sucesso na presença de água por meio de microgotas. Quando adicionamos mais aminoácidos e colidimos dois sprays dessa mistura, imitando as ondas do mundo prebiótico, descobrimos que isso pode formar cadeias peptídicas curtas de até seis aminoácidos.
Nossas descobertas sugerem que microgotas de água em ambientes como a maresia ou aerossóis atmosféricos eram microrreatores fundamentais na Terra primitiva. Em outras palavras, as microgotículas podem ter fornecido um meio químico que permitiu que as moléculas básicas da vida se formassem a partir de compostos simples e pequenos dissolvidos no vasto oceano primordial que cobria o planeta.
Microgotículas: passado e futuro
A química das microgotículas pode ser útil para enfrentar os desafios atuais em muitos campos científicos.
A descoberta de medicamentos, por exemplo, requer sintetizar e testar centenas de milhares de compostos para encontrar um novo medicamento em potencial. O poder das reações de microgotas pode ser integrado à automação e novas ferramentas para acelerar as taxas de síntese para mais de uma reação por segundo, bem como a análise biológica para menos de um segundo por amostra.
Dessa forma, o mesmo fenômeno que pode ter ajudado a origem dos blocos de construção da vida bilhões de anos atrás agora pode ajudar os cientistas a desenvolver novos medicamentos e materiais com mais rapidez e eficiência.
Talvez J. R. R. Tolkien estava certo quando escreveu: “Tal é o curso das ações que movem as rodas do mundo: mãos pequenas as fazem porque devem, enquanto os olhos dos grandes estão em outro lugar”.
Acredito que a importância dessas pequenas gotículas seja muito maior do que seu tamanho minúsculo.
Fonte: The Conversation / Nicolás M. Morato
Tradução: Redação Ambientebrasil / Maria Beatriz Ayello Leite
Para ler a reportagem original em inglês acesse: https://theconversation.com/water-was-both-essential-and-a-barrier-to-early-life-on-earth-microdroplets-are-one-potential-solution-to-this-paradox-192710
