De pé sobre uma cadeira para se proteger da água suja e malcheirosa que inunda o quintal da casa às escuras, Ruan Oliveira, de 28 anos, resume a situação vivida pelos amapaenses desde o início do apagão que atinge 90% da população: “Quando não falta luz, falta água, ou vem inundação; parece que 2020 veio ao Amapá para podermos colocar no currículo ‘eu sobrevivi a 2020′”, reclama o barbeiro nascido e crescido em Macapá.
Um forte temporal atingiu a capital do Amapá neste domingo (22/11), 20º dia de crise energética em 13 dos 16 municípios do estado, causando inundação e novas quedas de energia em parte de Macapá. Regiões mais pobres e periféricas ficaram no escuro, enquanto moradores tentavam proteger móveis e eletrodomésticos da água.
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“É muito nervoso que a gente passa com essa situação; no escuro e ainda cheio de água, muito feio”, comenta o lavrador Sebastião Pereira, lamentando o banheiro alagado e temendo uma nova chuva que elevasse ainda mais o nível da água.
As enchentes deste domingo são mais um episódio de um drama iniciado em 3 de novembro, quando um transformador da subestação de Macapá, responsável por receber a energia vinda da hidrelétrica de Tucuruí antes da distribuição aos clientes, se incendiou. Um segundo foi danificado pelo fogo e levou quase quatro dias para ser reparado. Um terceiro estava inoperante desde dezembro do ano passado e, assim, sem sistema de backup, o Amapá ficou quase quatro dias completamente sem energia elétrica.
Após o reparo do segundo transformador, a energia foi restabelecida, mas a população enfrenta racionamento. Bairros passam metade do dia com energia, e metade sem, em ciclos médios de 3 horas. No entanto, a programação não é mantida.
“Estamos em meio a uma pandemia, com um monte de gente trabalhando de casa, e não é possível fazer qualquer planejamento porque os horários não são respeitados”, diz o bancário Alan Góes, que faz parte do grupo de risco para o novo coronavírus.
Ele também reclama do fornecimento de água na capital Macapá. “Como manter a saúde da população, com uma doença que exige higiene, se nem água chega?”, questiona ao abrir uma torneira na cozinha da qual não sai água.
Mergulhado na crise energética e sanitária, o Amapá registrou na última semana uma alta de 300% nos casos de covid-19. O segundo estado menos populoso do Brasil é o terceiro em número de casos da doença por milhão de habitantes, somando 56.548 casos entre os quase 862 mil habitantes.
“Apagão dentro do apagão”
No último sábado, após 19 dias de crise no Amapá, o presidente Jair Bolsonaro realizou uma visita relâmpago ao estado e ativou dois grupos de geradores termoelétricos que prometiam solucionar a atual crise em caráter emergencial, enquanto o novo transformador, que deve pôr fim ao racionamento, não chega vindo de Manaus.
O governo não divulgou o custo dos geradores, que foram pagos com verba do governo federal à Eletronorte, estatal que vem socorrendo a LMTE (Linhas de Macapá Transmissora de Energia), privatizada em 2015.
O senador pelo Amapá Randolfe Rodrigues (Rede-AP) acusou a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) de não fiscalizar a companhia de transmissão LMTE. Segundo Rodrigues, a LMTE estaria com o transformador reserva parado desde o fim do ano passado e teria se aproveitado da pandemia para emitir um ofício dizendo que não poderia se responsabilizar por possíveis falhas.
A Gemini Energy, holding responsável pela LMTE, levou quase um ano para enviar o transformador inoperante para conserto em Santa Catarina. Com problemas desde dezembro de 2019, o contrato de reparo do equipamento foi assinado somente em setembro, mas o transporte começou apenas no domingo passado, já em meio ao apagão.
Dois dias depois do envio, uma falha na geração da hidrelétrica de Coaracy Nunes, uma das quatro do Amapá, o estado sofreu um novo blecaute, o que moradores vêm chamando de “apagão dentro do apagão”.
Após o temporal deste domingo, moradores de Macapá divulgaram vídeos de aparelhos de distribuição explodindo após curto-circuito. A Companhia de Energia do Amapá (CEA), responsável pela distribuição, não comentou o ocorrido até a manhã desta segunda-feira.
“Ninguém aguenta mais se sentir como zumbi”
As horas de interrupção de energia vêm afetando a saúde e o sono dos moradores. As temperaturas equatoriais e insetos acabam prejudicando sobretudo os pais.
“Ao longo dessas últimas três semanas temos nos alternado, meu companheiro e eu, para abanar nosso filho de sete meses durante as noites; abrir a janela não dá por causa dos mosquitos, então só resta ficar abanando até sentir câimbra no braço”, conta Pretacleia Ribeiro, de 30 anos, moradora do conjunto habitacional São José, onde moram cerca de 5 mil pessoas.
Na noite da última sexta-feira, Yara dos Santos embalava seu bebê de 1 ano e dez meses em uma rede instalada na calçada do prédio. “As crianças estão exaustas, ninguém aguenta mais se sentir como zumbi”, reclama a desempregada.
Quem tem mais condições leva os filhos para dormir nos carros, com ar-condicionado ligado para suportar o calor, como a enfermeira Tatiana Silva. “Ontem ficamos no carro até 4h da manhã esperando a luz voltar; todo mundo aqui já fez isso”, diz.
Para a cunhada dela, Ariane Braga, o apagão das últimas semanas apenas piorou algo que já acontecia. “O Amapá é esquecido, abandonado; todo dia faltava luz uma ou duas horas, antes mesmo dessa situação”, afirma a auxiliar administrativo de uma escola pública. “Isso sem mencionar a falta de água, que em 40 anos vivendo aqui, nunca foi resolvida.”
O restabelecimento completo só deve ocorrer a partir do próximo dia 26 de dezembro, quando um transformador vindo de Laranjal do Jari, no sul do estado, que chegou a Macapá na sexta-feira, será instalado.
Torneiras secas às margens do Amazonas
Um dos únicos estados localizados majoritariamente no Hemisfério Norte, ao lado de Roraima, Amapá esta situado na esquina da Linha do Equador com o Amazonas, o maior rio do mundo em vazão. Ainda assim, torneiras secas são uma constante, agora piorada com o apagão, que afetou as bombas que retiram água do rio para o abastecimento.
Na capital do estado, de clima úmido equatorial, abrir a torneira e ver água fluir é um luxo para um grande número de moradores.
Com os pés mergulhados na água suja, Francinete Almeida, de 30 anos, moradora de uma das “pontes” de Macapá, tentava, com auxílio de uma bomba elétrica, sugar água de um cano instalado à beira da passarela. A empreitada não teve sucesso.
“Para todo mundo aqui na ponte é um sacrifício puxar água. Temos um monte de gambiarra, e muitas vezes simplesmente não vem”, conta a diarista, mãe de seis filhos. “Em muitos dias desde o apagão eu e minha irmã tentamos até 1h da manhã para conseguir ter água, aí enchemos baldes e caixa d’água para durar até a próxima batalha.”
Ao todo são 17 famílias dependentes de um cano que nas últimas semanas tem passado mais tempo seco do que cheio.
As “pontes” são passarelas de madeira que conectam casas montadas sobre palafitas em áreas mais baixas de Macapá, onde a água se acumula formando lagos, conhecidos como ressacas. Sem saneamento básico, os lagos viram destino de esgoto.
“O nível ainda está baixo porque acabamos de sair do período seco, mas em janeiro, quando a água está alta e quase entra no assoalho das casas, o cheiro é horrível”, lamenta Francinete.
Medo e sofrimento
Os problemas no abastecimento levaram ao aumento do consumo de água contaminada. O Pronto-Atendimento Infantil (PAI), único pronto-socorro pediátrico do estado, informou no dia 13 de novembro que registrou alta no número de atendimentos de crianças com irritações gastrointestinais, que provocam vômito e diarreia.
“Meu filho de três anos está com vômito há um dia. É difícil comprar água mineral”, comenta a dona de casa Cenilda Ferreira. Desde o começo do apagão o preço do galão de água aumentou quatro vezes, em média, passando de R$ 5 para R$ 20. “A gente dá a água que a gente consegue”, completa a mãe.
Entre calor, insetos e a rotina de abanar os filhos até ficar com câimbras nos braços, ainda há relatos de aumento nos casos de roubos em bairros às escuras. Foi o caso de Jackeline França, cujo filho pré-adolescente foi assaltado junto de amigos. “Fizeram as crianças reféns com facas, levaram o que puderam e fugiram. Ele está muito abalado”, conta.
Entre o medo e o sofrimento, quem pode se refugia na casa de amigos ou parentes que vivem próximos a hospitais, que não têm energia cortada por prioridade. E entre indas e vindas com travesseiros sob o braço e luzes de lanterna, os amapaenses aguardam uma solução que não seja apenas temporária.
Fonte: Deutsche Welle