Um fenômeno tem assustado e causado preocupação nos moradores da comunidade Barra do São Lourenço, no Pantanal: as tempestades de cinzas e areia.
De acordo com relatos das pessoas que vivem na comunidade, a situação se tornou frequente nas últimas semanas. Especialistas apontam que se trata de uma consequência do intenso período de incêndios no Pantanal nos últimos meses.
Leia também:
O fogo consumiu quase 4,5 milhões de hectares do Pantanal brasileiro neste ano. De acordo com o Instituto SOS Pantanal, o número corresponde a 30% do bioma no Brasil.
Nas últimas semanas, os incêndios amenizaram. Porém, as pessoas que vivem na região ainda são duramente afetadas pelos resquícios deles.
Moradora de Barra do São Lourenço, a artesã Maria Aparecida Aires de Souza relata que presenciou diversos vendavais carregados de cinzas e areia recentemente.
“É uma sensação horrível. Além de ser prejudicial à nossa saúde, a nossa casa fica cheia de sujeira e as roupas ficam sujas. É uma cinza que gruda em tudo”, detalha à BBC News Brasil.
Maria e os outros moradores da comunidade costumam correr para as suas casas em busca de abrigo para fugir dessas tempestades. “Outro dia, estava fora de casa quando começou a ventar forte. Não deu tempo de entrar para colocar máscara. Acabei tossindo muito”, relata a artesã.
Segundo especialistas, o fenômeno tem ocorrido em razão da grande quantidade de cinza que foi depositada no solo do Pantanal.
“Os restos dos incêndios têm sido dispersados pelos ventos fortes. As chuvas não foram totalmente suficientes para que as cinzas fossem levadas para dentro dos rios”, diz o analista ambiental Alexandre de Matos, que integra o Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo) de Mato Grosso do Sul.
Conforme Matos, há relatos de ventos que destelharam casas na comunidade ribeirinha. “Esses vendavais têm sido mais fortes porque os incêndios queimaram muitas árvores que protegiam essas regiões dos ventos fortes. Não há muita copa de árvore atualmente. Elas poderiam segurar essas tempestades de cinzas que têm afetado a região”, explica o analista ambiental.
As tempestades
O primeiro registro de tempestade de cinzas no Pantanal, segundo pesquisadores, ocorreu em meados de outubro. O fenômeno foi registrado na Serra do Amolar, local considerado um dos mais importantes para a preservação do bioma.
Na data, uma enorme nuvem baixa marrom cobriu quase toda a região. Imagens feitas por pessoas que acompanharam a cena mostraram as cinzas sendo levadas pelo vento.
Na época, ainda tinha muito fogo no bioma, por isso havia muita fumaça junto com os ventos fortes e a fuligem. O cenário prejudicou a visão de condutores de aeronaves que atuavam no combate aos incêndios.
“O caso de outubro foi uma coisa assustadora, sem precedentes. O dia virou noite em poucos minutos e a situação perdurou até a madrugada”, relembra Ângelo Rabelo, do Instituto do Homem Pantaneiro (IHP).
Desde então, houve outros registros de tempestades de cinzas e areia no Pantanal. Conforme os pesquisadores da região, apesar de menos intensos que o primeiro caso, os posteriores continuaram levando problemas às comunidades, à fauna local e àqueles que atuam na preservação do bioma.
“Depois de outubro, já passei por outras duas tempestades de cinzas, mas em menor intensidade. Isso não era algo comum no Pantanal. É algo extremo. Ontem mesmo, soube de uma situação de pânico por causa dessas tempestades”, diz Rabelo. Ele afirma que os registros apontam que o fenômeno costuma avançar do sentido leste para o oeste do bioma.
Para Rabelo, alguns fatores colaboram para o fenômeno: a baixa umidade, a temperatura alta e a ausência de chuvas em período recente.
Ele conta que o fenômeno faz com que o dia comece a escurecer e passa a impressão de que irá chover. “Mas não costuma cair uma gota. É apenas a tempestade de cinzas”, relata Rabelo.
Não há um levantamento oficial sobre quantos registros de tempestades de cinzas ocorreram no Pantanal desde outubro. Alguns pesquisadores afirmam saber de três casos. Mas os moradores de Barra do São Lourenço relatam que o fenômeno tem ocorrido quase diariamente nas últimas semanas.
“Desde outubro, quase toda semana houve algum caso assim por aqui. Mas na última semana, foi praticamente todos os dias. O vento já chega com muitas cinzas. Há dias em que está mais forte, em outros está mais fraco”, diz a artesã Leonida Aires de Souza, que mora na comunidade.
Outro morador de Barra do São Lourenço, o pescador Rosinei Iris de Jesus relata uma tempestade de cinzas que presenciou na última segunda-feira (30/11). “Eram quase duas horas da tarde e a gente não enxergava nada. A situação por aqui está bem difícil”, diz.
‘Crianças ficam desesperadas’
As tempestades de cinzas têm levado problemas de saúde aos moradores da comunidade ribeirinha. Segundo as pessoas que vivem na região, relatos sobre problemas respiratórios se tornaram comuns no período recente.
“O pessoal conta que as crianças ficam desesperadas com essa situação e têm muitas dificuldades para respirar quando há essas tempestades“, diz o biólogo Alcides Faria, diretor-executivo da ONG Ecoa – Ecologia & Ação.
O fenômeno piora, principalmente, a condição de pessoas que já possuem doenças respiratórias. A situação, segundo especialistas, pode gerar aumento de internações por enfermidades como pneumonia ou outras doenças respiratórias.
“A poluição atmosférica, principalmente relacionada à queima de biomassa, gera produção de material particulado. Quanto menor, mais capaz é de chegar aos extremos das vias respiratórias. Ali, se sedimenta, causando processos respiratórios responsáveis por inflamações de vias aéreas”, detalha a pneumologista Patrícia Canto, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Em tempos de pandemia de covid-19, a situação se torna ainda mais preocupante. “Há estudos que apontam que há mais mortes pela covid em áreas com maior poluição atmosférica. A gente vive um período de aumento de casos do coronavírus no Brasil, então (a exposição às cinzas) é uma situação preocupante”, afirma Canto.
As consequências da exposição às fuligens podem surgir também ao longo dos anos. “Se for uma situação frequente, pode até causar um câncer pulmonar, que pode se desenvolver lentamente em caso de muito tempo de exposição relacionada à poluição atmosférica”, diz a pneumologista.
Os problemas na comunidade
As tempestades de cinzas e areia representam apenas uma das dificuldades enfrentadas atualmente em Barra do São Lourenço, localizada em Corumbá (MS), que tem cerca de 100 moradores. Além de a região ter sofrido com o fogo intenso meses atrás, agora lida com as diversas consequências dos incêndios.
Os moradores da comunidade, situada na margem esquerda do Rio Paraguai (o principal formador do Pantanal) e nas proximidades da Serra do Amolar, enfrentam dificuldades em relação aos itens mais básicos. Falta água e comida.
Principal fonte de renda dos moradores da comunidade, o rio enfrenta o seu período mais seco em cinco décadas. Além disso, as consequências das queimadas também são sentidas na água do Paraguai, que em alguns pontos tem sido considerada inadequada para o consumo.
“As chuvas nas cabeceiras para encher os rios da região foram poucas. Isso torna a pesca mais difícil. Soma-se isso às queimadas, isso arrasta muito sedimento, cinza e muita água da chuva. As primeiras chuvas apagaram o fogo e aliviaram para a região, mas agora a água do rio está nas piores condições”, relata Alcides Faria.
Segundo Faria, muitos moradores de Barra do São Lourenço tiveram diarreia ao tomar a água do rio. Em razão disso, voluntários doaram garrafões d’água para a comunidade.
Diversos moradores da comunidade trabalham como pescadores e têm enfrentado duras dificuldades. Isso porque os peixes foram afetados pelo nível extremamente baixo do Rio Paraguai e ainda sofrem com as cinzas que caem na água. A fuligem pode causar uma redução do oxigênio dissolvido (OD) no rio e culminar em hipóxia (deficiência de oxigênio), que pode levar espécies à morte.
“É uma grande catástrofe. Infelizmente tem a mão do homem no meio para que isso acontecesse. É uma irresponsabilidade muito grande”, lamenta a artesã Leonida Aires, em referência ao fato de que especialistas apontam que a imensa maioria dos incêndios no Pantanal nos últimos meses foram causados por ação humana. Autoridades apuram a origem de diversos focos que atingiram o bioma.
Também afetados pelo atual cenário, os artesãos da comunidade viram as folhas de aguapé, usadas para os seus trabalhos, sumirem. “Há muito pouco aguapé, por causa do fogo e da seca. Esperamos que a situação melhore para continuar trabalhando. Além disso, também está difícil para vender, por não haver turistas como antes no Pantanal e porque muitas pessoas estão com dificuldades financeiras”, diz Maria Aires.
Nos últimos meses, segundo Leonida, muitos moradores da comunidade sobreviveram com a renda do auxílio emergencial.
Além disso, alguns também recebem doações de alimentos. “Algumas pessoas trazem sacolão com alimentos, que tem ajudado a gente. Estamos dividindo o que recebemos com os animais, porque não tem nada para muitos deles comerem, pois as árvores foram tomadas pelo fogo”, relata.
Apesar dos relatos e das imagens registradas pelos moradores de Barra do São Lourenço, a Defesa Civil de Mato Grosso do Sul afirma, em nota à BBC News Brasil, que as tempestades de cinzas não são frequentes na região. A reportagem questionou sobre quantos registros do fenômeno foram feitos na comunidade nas últimas semanas, mas não obteve respostas.
Ainda em nota, o governo de Mato Grosso do Sul afirma que a comunidade e todas as outras famílias ribeirinhas da região recebem “atendimentos nas áreas social e de saúde” por meio da assistência social de Corumbá.
Sobre as condições da água potável em Barra do São Lourenço, o governo argumenta que “está articulando com outros órgãos para desenvolver um trabalho quanto a isso”, mas não informa prazos para resolver o problema.
Fonte: BBC