A VACINAÇÃO AVANÇOU muito desde o dia em que o médico Edward Jenner usou o pus de uma bolha infectada para criar a primeira vacina contra a varíola em 1796. Mesmo assim, as vacinas quase sempre usam uma parte do próprio patógeno — até que a covid-19 colocou uma tecnologia inovadora em evidência. Agora, alguns especialistas preveem que a tecnologia levará à criação de novas vacinas contra diversos vírus, como o da influenza sazonal, do HIV e outros.
A tecnologia é baseada no RNA mensageiro, uma molécula que transporta o código genético; as duas vacinas contra a covid-19 autorizadas para uso emergencial nos Estados Unidos dependem dele. Criadas separadamente pela Moderna e por uma colaboração entre a Pfizer e a BioNTech, ambas as vacinas foram desenvolvidas em poucos dias e demonstraram uma proteção altamente eficaz nos ensaios clínicos.
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Alguns especialistas consideram as vacinas de RNAm como a chave para programas de vacinação mais rápidos e eficazes, combatendo diversos vírus com uma única vacina ou fornecendo proteção contra doenças difíceis.
“A tecnologia demonstrou segurança e eficácia e todos no planeta Terra sabem disso, exceto os integrantes de movimentos antivacina”, declara Derrick Rossi, biólogo e empresário de biotecnologia que cofundou a Moderna e posteriormente deixou a empresa. “Mas dessa água eu já bebi há muito tempo.”
Em janeiro, a Moderna prometeu novos programas de desenvolvimento de vacinas de RNAm contra os vírus nipah, HIV e influenza, aumentando seu portfólio de vacinas que já incluía mais de 20 estudos de RNAm. A Pfizer também está trabalhando em outras vacinas baseadas em RNAm, incluindo uma para a influenza sazonal, conta Phil Dormitzer, diretor científico da empresa e vice-presidente de vacinas virais. Dezenas de outros fabricantes e laboratórios em todo o mundo estão trabalhando em esforços semelhantes.
Mas embora seja tentador olhar para a tecnologia como algum tipo de milagre científico, alguns especialistas alertam que há um limite a ser extrapolado a partir do sucesso das vacinas contra a covid-19 e que o RNAm não responderá a todas as necessidades. Leia a seguir como os especialistas acreditam que o RNAm pode mudar o panorama das vacinas no futuro — e os diversos obstáculos que enfrentarão à medida que forem desenvolvidas.
O método por trás do RNAm
As vacinas tradicionais utilizam vírus enfraquecidos ou fragmentos de proteínas virais para ensinar o sistema imunológico a reconhecer e combater um invasor. Os cientistas apostavam que o RNAm poderia ensinar a mesma lição, se conseguissem fazê-lo durar. Quando utilizado em uma vacina, o RNAm consiste em uma molécula em movimento que fornece instruções ao nosso organismo para fabricar os componentes de um vírus que desencadearão uma resposta imunológica. Mas é uma mensagem temporária: o organismo degrada rapidamente o RNAm depois de analisá-lo — um problema para os cientistas que queriam utilizá-lo em vacinas.
Drew Weissman, professor de medicina da Universidade da Pensilvânia, e Katalin Karikó, bioquímica responsável pela vacina contra a covid-19 da Pfizer e BioNTech, ajudaram a solucionar esse quebra-cabeça em 2015. A equipe deles descobriu que envolver o RNAm em um revestimento de nanopartículas lipídicas não apenas transmitia a mensagem, como também produzia um adjuvante de vacina, uma substância que promove a produção de anticorpos.
Com esse sistema de entrega, as vacinas de RNAm podem ensinar nosso organismo a produzir e combater uma proteína viral sem nunca ter se deparado com o patógeno. Além disso, os mesmos ingredientes básicos podem ser utilizados a cada vez, adicionando apenas um componente único — uma sequência de RNAm — para produzir a proteína necessária.
Nas vacinas contra a covid-19 da Moderna e da Pfizer-BioNTech, esse ingrediente é a sequência que codifica a proteína de espícula do coronavírus, que permite que o vírus invada as células humanas. Em teoria, seria possível trocar essa sequência de proteína de espícula por uma que produza um antígeno do HIV, produzindo dessa forma uma vacina contra o HIV, explica Weissman. O desafio é encontrar a proteína certa, mas o método é sempre o mesmo. “É por isso que são chamadas de ‘plug and play’ (encaixar e usar)”, conta ele.
O (possível) futuro das vacinas
Com o RNAm, os cientistas podem ir da “descoberta da sequência genética do vírus à obtenção de uma vacina em frasco em algumas semanas”, afirma Anna Durbin, professora de saúde internacional na Escola de Saúde Pública Johns Hopkins Bloomberg, no estado de Maryland, Estados Unidos. A Moderna, por exemplo, criou sua vacina contra a covid-19 dois dias depois de receber a sequência. E após os sucessos clínicos dessa tecnologia, os cientistas estão redobrando os esforços para criar vacinas baseadas em RNAm para uma série de outras doenças.
O laboratório de Weissman está trabalhando em cerca de 30 vacinas de RNAm, conta ele, incluindo uma vacina universal contra todas as cepas da gripe e uma vacina pancoronavírus que combateria todos os vírus desse tipo existentes, desde a síndrome respiratória aguda grave (SRAG) original até a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers).
Weissman esclarece que as vacinas de RNAm poderiam até combater vários patógenos com uma única fórmula, tendo como alvo o que é conhecido como sequências conservadas, porções de genomas virais que não sofrem nenhuma mutação ou quando o fazem são muito lentas e que são consistentes em diversos patógenos e suas variantes. As sequências conservadas nem sempre provocam uma resposta imunológica, razão pela qual algumas vacinas anteriores não foram eficazes contra elas. Por exemplo, as vacinas da gripe têm como alvo a hemaglutinina, proteína composta por uma cabeça e um talo. Vacinas anteriores contra a gripe provocaram respostas imunológicas para a cabeça, que está em rápida mutação, mas não para o talo, que permanece conservado.
Mas, graças ao adjuvante que o RNAm cria quando é envolvido por nanopartículas de lipídios, ele é capaz de atacar e criar uma forte resposta imunológica para o talo, explica Weissman.
Se for bem-sucedida em testes clínicos em humanos, a vacina universal contra a gripe de Weissman pode proporcionar para as pessoas tomar uma vacina a cada década, em vez de todos os anos, afirma ele. E alguns cientistas, incluindo Weissman, acreditam que, como o RNAm pode produzir respostas imunológicas poderosas contra partes do vírus que geralmente são menos responsivas, essas vacinas também podem trazer a chave para quebra-cabeças anteriormente insolúveis, como o HIV.
Mas as vacinas de RNAm dificilmente serão uma “fórmula mágica”, adverte Dormitzer. E elas enfrentarão muitos obstáculos, segundo alguns especialistas, antes de se tornarem comuns e amplamente aceitas.
Obstáculos e dificuldades
A vacina contra a covid-19 da Pfizer, por exemplo, precisa ser armazenada a −70 ° C, uma temperatura muito mais baixa do que alguns centros de saúde podem acomodar. Isso se deve às nanopartículas de lipídios utilizadas para carregar o RNAm, esclarece Weissman. Nanopartículas lipídicas são como gordura: quando uma gota de gordura é mantida fria, ela mantém sua forma. Mas quando é deixada em temperatura ambiente ou aquecida, se liquidifica e se mistura. As nanopartículas lipídicas fazem a mesma coisa e, uma vez que o fazem, deixam de funcionar.
Outros cientistas estão trabalhando em diferentes sistemas de entrega que evitariam o uso de nanopartículas lipídicas; os laboratórios da Pfizer e de Weissman estão trabalhando em vacinas de RNAm liofilizadas, que ele explica que poderiam ser armazenadas em uma geladeira ou até mesmo em temperatura ambiente. Mas é um processo caro, e garantir que ele funcione leva muito tempo.
“Para saber se algo se mantém estável na geladeira por um ano, é preciso colocar na geladeira por um ano e esperar”, esclarece Dormitzer.
Os cientistas também não sabem quanto tempo durará a resposta imunológica após receber uma vacina de RNAm. Mas a vacina Pfizer-BioNTech contra a covid-19 foi a primeira do tipo autorizada para uso fora dos ambientes clínicos, por isso os cientistas simplesmente não têm dados suficientes de testes clínicos.
As vacinas contra a covid-19 também causaram algumas reações desconfortáveis. Por exemplo, cerca de 90% das pessoas relataram dores no braço após receberem a injeção, em comparação com cerca de 60% que sentiram esse desconforto com a vacina contra a gripe. Essas reações leves podem ser toleráveis em meio a uma pandemia, conta Durbin, mas podem ser menos aceitáveis fora de crises ou para patógenos menos ameaçadores. “Já temos dificuldades suficientes para vacinar as pessoas contra a gripe hoje em dia”, declara ela.
Mais preocupantes ainda são as reações anafiláticas que algumas pessoas sofreram após tomar a vacina contra a covid-19. Pouco mais de duas em cada milhão de pessoas que receberam o imunizante da Moderna tiveram anafilaxia, uma reação alérgica grave e potencialmente fatal, enquanto Pfizer e BioNTech relataram cerca de 11 casos de anafilaxia para cada milhão de doses de sua vacina. Estatisticamente falando, o risco é baixo e pode ser administrado. Mas ainda é mais alto do que para outras vacinas, e as reações podem ser causadas pelas nanopartículas lipídicas — as mesmas que permitem que o RNAm permaneça no organismo sem se degradar.
Nicole E. Basta, professora associada e epidemiologista de doenças infecciosas da Universidade McGill em Montreal, afirma que as pessoas costumam avaliar o risco contra o benefício ao decidirem se vão se vacinar. Para as vacinas contra a covid-19, a alta eficácia delas — chegando a 95% para a vacina da Pfizer e cerca de 94% para a da Moderna — deve inclinar as pessoas para longe do risco e em direção ao benefício, explica ela.
E embora uma nova tecnologia frequentemente signifique que informações conflitantes ou inconstantes surjam rapidamente, Basta esclarece que isso oferece uma oportunidade única para os cientistas ajudarem as pessoas a se sentirem mais confortáveis com a tecnologia e a entendê-la melhor.
“Eu realmente incentivo as pessoas a continuarem observando o que está acontecendo no campo das vacinas, porque elas são mais eficazes quando um grande número de pessoas toma”, declara ela. “Acho que o discurso e a discussão sobre as vacinas de RNAm são realmente positivos para a saúde pública e tenho esperança de que isso vá melhorar a confiança nas vacinas.”
Pisando no freio
Embora a tecnologia seja promissora, Dormitzer, da Pfizer, questiona se o RNAm será a solução para os problemas que muitos acreditam que seja.
“Existem algumas doenças que são de fato suscetíveis à imunização”, explica ele, e isso inclui o vírus Sars-CoV-2. “Outras são bastante difíceis. A gripe é uma bem difícil. E algumas tinham sido praticamente impossíveis até agora”, incluindo HIV e hepatite C. Alguns vírus podem se mostrar imunes à tecnologia. Outras vacinas são tão eficazes agora — como a vacina contra sarampo, caxumba e rubéola (tríplice viral) — que Dormitzer esclarece que seria inútil trocá-las.
Sejam as vacinas de RNAm o futuro ou não, uma coisa é quase certa: as próximas a chegarem ao mercado não serão desenvolvidas tão rapidamente. Embora as vacinas contra a covid-19 tenham sido criadas em velocidade recorde, “a gravidade da pandemia realmente acelerou esses produtos”, afirma Rossi, que não tem mais vínculo com a Moderna.
A crise também removeu várias barreiras à produção típica de vacinas, com cada fabricante priorizando o mesmo objetivo e múltiplas fases de testes clínicos sendo realizadas em paralelo, em vez de com anos de intervalo. Vacinas anteriores de RNAm já haviam sido elaboradas contra outros vírus, incluindo coronavírus, embora nenhuma tenha sido lançada no mercado.
“O que as pessoas precisam perceber é que estamos trabalhando com RNAm há 15 anos e com vacinas de RNAm há oito anos”, esclarece Weissman.
Dormitzer explica que para os fabricantes de vacinas há lições a serem aprendidas com a pandemia, como ajustar seus processos para fazer testes em conjunto ou com mais eficiência. “Acho que podemos acelerar um pouco”, declara ele. Embora nem todos os cientistas estarão focados em uma única vacina no futuro.
“Vamos voltar ao normal e ao nosso escopo normal de preocupações de interesse”, conta ele. “E então, as coisas não serão bem assim, nem queremos que sejam.”
Fonte: National Geographic Brasil