Quando o Tratado da Antártida entrou em vigor, 60 anos atrás, seus signatários não podiam imaginar o êxito que teria. Nele, lideres mundiais acordaram em deixar livre de guerras, armas e dejetos nucleares, um continente inabitado, com o dobro do tamanho da Austrália.
Eles declararam que a região polar austral, formada por 98% de gelo e sem população nativa, não pertenceria a nenhum país, ficando dedicada à ciência colaborativa. Nas décadas seguintes, normas adicionais, impedindo companhias de explorarem minerais ou petróleo, transformaram a Antártida na maior reserva natural do mundo.
Mas agora a mudança climática está minando essa história de sucesso. Cerca de 90% de toda a água doce superficial está presa na calota glacial antártica, e, à medida que o planeta se aquece, geleiras vão se derretendo e se tornando menos estáveis. Seu colapso inundaria cidades costeiras como Nova York ou Jacarta.
Os líderes mundiais se comprometeram a limitar o aquecimento global a bem menos de 2 ºC, em relação à era pré-industrial. No entanto, de acordo com o grupo de pesquisa Climate Action Tracker (CAT), sediado na Alemanha, suas atuais políticas deverão aquecer o planeta em quase 3 ºC.
Por outro lado, um estudo publicado em maio pela revista Nature revelou que tal acréscimo de temperatura provocaria um “salto abrupto” na velocidade da perda de gelo na Antártida, a qual, por sua vez, desencadearia uma elevação do nível do mar “rápida e irrefreável”.
“Um certo nível de hipocrisia”
Um segundo estudo, publicado em por Science Advances, indica que o manto de gelo que sustenta o Glaciar Pine Island, de 175 mil km2, está se dissolvendo na água cada vez mais rápido.
Essa geleira responde por mais de um quarto da contribuição da Antártida para a elevação global do nível marinho, e se derreterá mais depressa ainda se cair em águas cálidas. “Se o rápido recuo do manto de gelo continuar, ele poderá desestabilizar o glaciar muito mais cedo do que esperávamos”, alertam os autores.
Segundo Alessandro Antonello, historiador da Universidade de Flinders, na Austrália, “o desafio ambiental central para a Antártida, hoje, é sem dúvida a mudança climática”.
No entanto, dos 54 signatários do tratado que protege a região polar sul, os 29 com direito a voto incluem os maiores poluidores da história, como Estados Unidos e Alemanha, assim como emissores em crescimento veloz, como o Brasil, China e Índia. “Há definitivamente um certo nível de hipocrisia”, é a conclusão do autor de um livro sobre a política ambiental na Antártida.
Oásis em tempos de Guerra Fria
O Tratado da Antártida foi assinado em 1959 por 12 países cujos cientistas atuavam na região, entrando em vigor dois anos mais tarde. O consenso entre os signatários era que a região deveria ser “uma reserva natural, devotada à paz e à ciência”.
Para superpotências como os EUA e a União Soviética, contudo – que nas próximas três travariam guerras por procuração na África, América do Sul e Ásia – a Antártida se transformou num local de cooperação, oferecendo raro alívio para as tensões nucleares da Guerra Fria.
Em outros espaços diplomáticos, os representantes dessas nações “batiam no peito e urlavam”, explica o glaciologista Sridhar Anandakrishnan, da americana Penn State University. Durante os encontros do Tratado da Antártida, contudo, eles “conversavam de modo formal, oficial e aberto”.
A cooperação incluía poder reabastecer os aviões das equipes científicas nas bases de outros países, coisa essencial numa paisagem tão hostil, e partilhar descobertas. Os cientistas recolheram dados climáticos datando de centenas de milhares de anos atrás, e em 1985 descobriram um perigoso buraco na camada de ozônio acima da área.
Quem trabalha na Antártida o faz “por razões altruísticas”, assegura Anandakrishnan, que participou de 23 missões científicas no local, desde 1985: “Estamos lá por algo que esperamos ser maior do que nós mesmos, e que esteja a serviço da sociedade.”
Vida marinha em perigo
As regiões polares estão se aquecendo mais rapidamente do que o resto da Terra. Ao contrário do Polo Norte, contudo, que se tornou foco de tensões geopolíticas à medida que a fusão do gelo revela ricos recursos, o Polo Sul tem poucos minerais ou combustíveis para serem explorados, o que tem contribuído para protegê-lo da atenção das indústrias extrativas.
No entanto, a Antártida é ampla, e suficientemente similar a áreas geológicas vizinhas para abrigar mais recursos. Combinada a sua paisagem inóspita, porém, onde o gelo espesso e o clima rigoroso tornam custosa qualquer extração comercial, a proibição de mineração e perfuração pelo Tratado, em 1976, manteve a região livre de qualquer tipo de exploração, além da científica. A interdição é por prazo indefinido e só será revista em 2048.
Contudo o quadro é menos otimista para as águas circundantes. “O colapso climático está alterando drasticamente o próprio cenário da Antártida”, adverte Laura Meller, ecologista e especialista polar da Greenpeace Nordic, autora de bens sucedidas campanhas para manter a zona livre de minas e perfuradoras. “Para a vida na água em torno do continente, é uma transformação drástica.”
Espécies como a merluza-negra ainda estão sendo caçadas de forma não sustentável no Oceano Austral, que circunda o continente gelado. Pássaros marinhos, como o albatroz e o petrel, ficam presos nas enormes redes, como presa acidental que é descartada.
A pesca de krill também cresce rapidamente, tendo sido capturadas 400 mil toneladas em 2019. Elemento vital do ecossistema antártico, de que se alimentam pinguins, focas, peixes e baleias, os minúsculos crustáceos, que só sobrevivem numa faixa de temperatura muito estreita, são um amortecedor para a mudança climática.
Segundo pesquisa publicada em 2019 pela Nature em 2019, o krill armazena dióxido de carbono ao se alimentar do fitoplâncton da superfície e expelir grande quantidade de pelotas fecais para o fundo do oceano, num processo que captura de 5 a 12 gigatoneladas de CO2 por ano.
O Tratado da Antártida protege o ecossistema terrestre, mas não a vida marinha, a qual é regulada por uma comissão relacionada, que entrou em exercício em 1982. Esta estabelece limites para a pesca de krill, embora sem computar a perda de população devido à mudança climática.
“O invólucro que vai sufocar uma foca em 10 mil anos”
Menos definido é como o acordo protege os animais que passam o maior tempo no mar, mas vêm à terra para procriar, como pinguins e focas. “Há uma área cinzenta”, reconhece Ricardo Roura, especialista nas regiões polares e consultor-chefe da Coalizão da Antártida e do Oceano Austral (ASOC, na sigla em inglês), que representa os grupos conservacionistas na região.
Essa indefinição legal também se aplica ao turismo: a região recebe cerca de 70 mil visistantes por ano, geralmente no verão. Embora sejam relativamente poucos, em relação ao tamanho do continente, eles costumam frequentar as mesmas dezenas de locais, que concentram o seu impacto.
E o lixo não desaparece na Antártida: ela é tão fria, seca e desprovida de predadores, que é improvável os resíduos se decomporem antes de a geleira finalmente se derreter e eles serem carregados para o oceano.
Os cientistas já estão vivenciando uma mudança de paradigma na forma de lidar com os dejetos, observa o glaciologista Anandakrishnan: “Você começa a se dizer: ‘Será que eu quero mesmo jogar o invólucro de doce aqui, para sufocar uma foca daqui a 10 mil anos?’.”
À medida que cresce o número dos turistas, porém, pode ficar cada vez mais complicado impor as proteções do Tratado. A Antártida não dispõe de forças policiais e, sem um governo soberano, continua indefinido quem pagaria pelos danos causados por visitantes estrangeiros, no evento de desastres de grande escala, como o vazamento de óleo de um navio encalhado.
Como um exemplo de cooperação global, o Tratado da Antártida continua ímpar, embora certos especialistas sejam céticos de que ele poderia ser replicado atualmente. “Seria visto como globalização, o que ele é de fato”, explica Anandakrishnan. “A chance de ele ser aprovado hoje em dia seria menor do que a de uma bola de neve no inferno.”
Fonte: Deutsche Welle