Indígena sobreviveu a odisseia de uma década na Amazônia, mas não resistiu à covid-19

Após uma violenta emboscada, Karapiru percorreu as florestas do leste do Brasil por uma década. Em 16 de julho, ele se tornou mais uma vítima da pandemia.

Karapiru, membro do povo awá do Brasil, em sua casa em Tiracambu em 2017. No fim da década de 1970, ele sobreviveu a uma emboscada que o fez viver uma jornada de 10 anos na Amazônia oriental. Ele morreu de uma doença respiratória causada pela covid-19 em 16 de julho.
FOTO DE CHARLIE HAMILTON JAMES

O sobrevivente de uma emboscada mortal que o fez percorrer sozinho durante 10 anos cerca de 1,4 mil quilômetros de montanhas escarpadas no leste do Brasil faleceu em decorrência dos sintomas causados pela covid-19, segundo relatos de membros do povoado e ativistas de direitos humanos.

Karapiru, cujo nome significa ‘gavião’ no idioma falado pelo seu povo natal awá, morreu em um hospital no Maranhão em 16 de julho. Embora estivesse totalmente vacinado, ele desenvolveu sintomas graves da doença na aldeia de Tiracambu, a qual adotou para viver havia alguns anos. Ele foi transferido para um hospital na cidade de Santa Inês, local de seu último suspiro.

A morte de Karapiru em uma ala de isolamento, longe de seus entes queridos e de seu povo, trouxe ecos do sofrimento e da solidão que marcaram sua vida e sua extraordinária história de sobrevivência.

“Sua história resume o que o povo awá e outros grupos isolados enfrentaram, especialmente por ser uma fronteira em constante movimento”, conta Louis Forline, antropólogo da Universidade de Nevada, em Reno, nos Estados Unidos, que dedicou sua carreira aos estudos e defesa desse povo. “Ele é um símbolo de toda a luta e da saga desse povo, definitivamente de tudo o que eles passaram.”

Karapiru nasceu em uma comunidade nômade de caçadores-coletores no fim da década de 1940 ou início da década de 1950, quando os awás ainda não eram contatados por pessoas de fora de sua aldeia. Não há registro de seu nascimento.

Naquela época, as terras ancestrais dos awás eram intocadas pelo mundo externo. Os membros desse povoado estavam presentes em grande parte do Maranhão. Mas, na década de 1960, as maiores jazidas de minério de ferro do mundo foram descobertas no Pará, estado vizinho. Para transportar o minério para o leste até a costa atlântica para exportação, foi construída uma ferrovia de 885 quilômetros de extensão que atravessava o estado do Maranhão, dividindo o território dos awás em dois.

Não demorou muito para que colonos e fazendeiros começassem a se estabelecer no local de forma sucessiva. No início da década de 1970, eles já estavam presentes nas florestas, grilando terras e cercando-as com arame farpado. Eles se apossaram da terra do povo awá munidos de armas. Praticamente da noite para o dia, era como se os awás tivessem se tornado invasores de sua própria terra.

“Os homens brancos queriam matar os indígenas”, Karapiru me contou quando visitei Tiracambu em um trabalho realizado para a National Geographic em 2017. Ele falava na língua do povo awá e um companheiro do povoado traduzia para o português. “Eles não gostavam de nós. Ficaram bravos porque estávamos atravessando suas cercas. Atiraram em nós e enviaram cães para nos perseguir. ”

Karapiru era pai de uma menina pequena e de um jovem quando os fazendeiros armaram uma emboscada para ele e sua família em um certo dia no fim da década de 1970. O ataque o lançou em uma odisseia de uma década chamada pelos defensores dos direitos humanos de uma prova da resiliência dos povos indígenas do Brasil diante do sofrimento e da crueldade infligidos pelos colonizadores.

“Os fazendeiros precisam se livrar da presença dos indígenas para receber propriedade das terras que estão tentando tomar”, disse Sydney Possuelo em uma entrevista concedida em Brasília em 2017. “Então eles foram atacar o grupo de Karapiru. Esse tipo de prática acontece até hoje.” Possuelo atuou como diretor do Departamento de Povos Indígenas Isolados da Funai, agência indigenista do Brasil, por quase duas décadas, interrompido por um mandato de dois anos como presidente da agência. Exímio agente de campo e explorador da Amazônia, ele é considerado um dos maiores especialistas em povos indígenas do Brasil e um dos principais defensores da proteção de povos isolados.

Os líderes indígenas temem que povos isolados como os awás — cerca de 70 grupos individuais espalhados por toda a Amazônia brasileira — estejam novamente enfrentando risco elevado de expropriação violenta. O presidente Jair Bolsonaro e seus parlamentares aliados intensificaram os esforços para reverter a proteção dos territórios indígenas e eliminar totalmente algumas reservas.

Atualmente, cerca de 100 integrantes do povo awá, de uma população total de cerca de 600, ainda vagam por pequenos bolsões da floresta amazônica no Maranhão como nômades isolados. O grupo de direitos indígenas Survival International designou os awás como o “povoado mais ameaçado do mundo”.

Famílias do povo awá partem para uma caçada a partir do Posto Awá, criado pela agência indigenista Funai para assentar caçadores-coletores nômades da etnia, depois do contato estabelecido por agentes nas décadas de 1970 e 1980. Hoje, talvez uma centena de nômades awá isolados ainda vivam na floresta, enquanto o domínio do mundo exterior os cerca.
FOTO DE CHARLIE HAMILTON JAMES

Uma vida em fuga

“Eles atiraram em nós enquanto fugíamos”, contou Karapiru em 2017, relembrando a emboscada. Sua esposa foi assassinada, junto com sua filha pequena. Karapiru presumiu que seu filho também tivesse morrido.

“Fui atingido nas costas”, ele contou, levantando a camiseta para mostrar uma cicatriz com pequenos caroços perto da coluna, onde a munição havia se alojado. Privado de seus entes queridos e sofrendo de dores angustiantes, Karapiru fugiu pela floresta, acreditando ser o único sobrevivente do ataque.

Os dias se transformaram em semanas, depois em meses. Ele caminhava durante a noite e dormia durante o dia para evitar ser encontrado. Ele percorreu uma fileira de montanhas escarpadas que levava ao sul, sobrevivendo com sua inteligência, caçando animais selvagens com um arco longo e flechas que construiu na floresta. Anos se passaram.

“Fiz lanças de bambu”, recorda ele. “Matei um macaco. Caminhei ao longo de um rio repleto de peixes!” Ainda assim, ele suportou longos períodos com sede e fome — e a solidão inimaginável de anos sem contato humano.

“Senti uma grande tristeza por minha família”, contou Karapiru. Apesar de tudo que havia sofrido, o brilho em seus olhos e a sensação de admiração com que ele relatou sua provação não revelaram nenhum traço de amargura ou ressentimento.

As perambulações de Karapiru eventualmente o levaram para fora da região montanhosa para uma área de campos arados e pastagens, pontilhada por casas e edifícios anexos. Animais selvagens que ele caçava tornaram-se escassos e Karapiru começou a matar animais da fazenda encoberto pela escuridão. Um fazendeiro confirmou suas suspeitas em uma manhã, quando um porco saltou guinchando em seu quintal com uma flecha fincada em seu flanco. Ele convocou um grupo de residentes locais, e eles acabaram encontrando um homem nu que segurava um arco e diversas flechas, e sorria para eles timidamente. Karapiru largou suas armas sem hesitação.

O fazendeiro que havia perdido seu porco o levou para casa e forneceu alimentos e vestimentas. Mas o que fazer com ele? Ninguém conseguia entender uma palavra do que ele falava. Eles estavam no estado da Bahia, a centenas de quilômetros de qualquer lugar que ainda abrigasse esses indígenas isolados. O fazendeiro ligou para a Funai.

Karapiru foi encontrado em 1989. Sydney Possuelo havia fundado recentemente o departamento de povos isolados da Funai com o objetivo de proteger os direitos das comunidades indígenas que ainda vivem separadas do mundo exterior — denominadas “povos isolados”. Ele dirigiu até a Bahia e trouxe Karapiru para sua casa em Brasília enquanto tentava desvendar o mistério de quem era esse homem e de onde ele tinha vindo.

“O indígena teve sorte”, disse-me Possuelo na semana passada. O charme inocente de Karapiru deixara os homens que o encontraram à vontade, que por sua vez retribuíam sua simpatia com hospitalidade. “A história mostra que encontros desse tipo quase sempre resultam na morte do indígena.”

A visão aérea do Posto Awá mostra um dos quatro assentamentos fundados pela Funai em três reservas indígenas distintas para o fornecimento de alimentação, proteção e atendimento médico às comunidades awás. Desde a década de 1970, os awás sofrem com a violência e as doenças trazidas pelos forasteiros que invadem suas terras ancestrais.
FOTO DE CHARLIE HAMILTON JAMES

Encontro emocionante

Durante a década de 1970 e início da década de 1980, Possuelo liderou as iniciativas da Funai para contatar bandos dispersos do povo awá e salvá-los da violência dos colonos ávidos por terras. Desde o momento em que viu Karapiru, Possuelo tinha um palpite — algo sobre sua aparência e a maneira como se comportava — de que ele era do povo awá, conhecido na época pelo nome composto “Awá-Guajá”. Ele pediu aos colegas do Maranhão que enviassem um intérprete para ajudar a solucionar o enigma de Karapiru.

O tradutor que apareceu no apartamento de Possuelo era um jovem awá que se chamava Tiramukum. Ele ficou órfão ainda criança e foi criado por funcionários da agência em um posto da Funai. Ele estudou o homem sentado à sua frente.

“Olhei para o rosto dele”, contou-me Tiramukum em entrevista há quatro anos, quando visitei o assentamento do Posto Guajá, na Terra Indígena Alto Turiaçu. “Perguntei qual era o nome dele. Ele respondeu: ‘Meu nome é Karapiru’. Meu coração estava batendo forte”, conta Tiramukum. “Achei que meu coração fosse explodir.”

“Meus cabelos se arrepiaram”, disse Possuelo, contando o momento em que Karapiru e Tiramukum se reconheceram. Pai e filho sobreviveram à emboscada cerca de 10 anos antes; um acreditava que o outro estava morto há muito tempo. Eles se abraçaram e choraram.

“Eles mataram minha irmã. Minha mãe estava morta. Achei que meu pai estivesse também. Vi que ele havia levado um tiro nas costas”, contou-me Tiramukum, acrescentando que fugiu em pânico, perseguido por um cachorro solto pelos fazendeiros. Ele se enroscou em um arame farpado, em seguida foi capturado e trancado em um quarto por diversas semanas antes de ser entregue à Funai.

Após o reencontro em Brasília, Tiramukum ajudou Karapiru a se instalar no Posto Awá. Mais tarde, ele mudou-se para a aldeia vizinha Tiracambu. Ambas as comunidades estão próximas dos ruídos estrondosos dos trens de minério de ferro de quilômetros de extensão da ferrovia que transformou a paisagem do Maranhão e a vida dos awás para sempre. Karapiru se casou novamente e deixou vários filhos e netos.

Moradores de Tiracambu e do Posto Awá, na Terra Indígena Caru, relatam o aumento de casos do novo coronavírus. Em uma mensagem de áudio do WhatsApp, Tatuxia’a, líder do Posto Awá, relatou que 16 moradores estão infectados com a covid-19, além de outros 11 em um acampamento próximo. “Agora estamos ficando na comunidade, em quarentena. Acreditávamos que a vacina nos protegeria. Mas não protege os mais velhos entre nós.”

Forline aponta que peregrinações épicas de sobreviventes indígenas solitários como Karapiru intensificaram debates dentro da disciplina de “ecologia histórica” de que caçadores-coletores que cruzavam a ponte terrestre de Bering na Ásia podem ter se espalhado e transformado paisagens nas Américas muito antes do que se acreditava.

 “Podemos observar que apenas com seu conhecimento dos diferentes ecossistemas e com a capacidade de viver da terra, eles conseguiram circular de forma rápida e ampla”, argumenta Forline.

Para Possuelo, a morte de Karapiru despertou profundos sentimentos de nostalgia e gratidão. “Ele era um homem gentil que adorava brincar com meus filhos quando eram pequenos”, disse ele, lembrando-se do tempo que estavam juntos em sua casa. “A notícia me tocou profundamente. Morreu vítima de covid-19 em um hospital longe de seu povo, sem poder se comunicar com ninguém, sem receber o conforto de quem amava. Que triste fim para um homem que lutou tão heroicamente para sobreviver à ferocidade do homem branco e às dificuldades da selva.”

Fonte: National Geographic Brasil