Você se lembra do que jantou ontem? E do que pediu pelo iFood na sexta-feira da semana retrasada? Ou ainda qual foi o almoço do quinto dia útil de quatro meses atrás? Bom, o choco, um tipo de molusco cefalópode e parente de polvos e lulas, se lembra de tudo isso e muito mais, incluindo até mesmo as primeiras refeições que fizeram.
Segundo um novo paper publicado no Proceedings of the Royal Society B, os chocos (ou cuttlefish, no inglês, apesar de não serem peixes) apresentam uma forma de registro episódico de memória, assim como os seres humanos. Entretanto, diferente de nós, suas memórias não se degradam com o tempo, fazendo com que um deles, mesmo na extrema velhice, ainda se lembre daquele camarão que ele “mandou para dentro” há um ano e meio.
“Os chocos podem se lembrar do que comeram, além de onde e quando comeram, e usam essas informações para guiar suas decisões alimentícias no futuro”, disse Alexandra Schnell da Universidade de Cambridge, co-autora do paper. “O que é mais surpreendente é que eles não perdem essa capacidade com a idade, ainda que outros sinais do passar do tempo apareçam normalmente, como perda de função muscular ou redução de apetite”.
Cefalópodes em geral são considerados extremamente inteligentes, capazes de distinção motora e capacidade rápida de aprendizado: não por menos, uma busca rápida mostra vários vídeos de polvos fazendo coisas “humanizadas” no YouTube, como manipular utensílios, por exemplo.
No caso dos chocos, Schnell acredita que essa capacidade de memória tem a ver com outra habilidade demonstrada pela espécie: a compreensão do conceito de “gratificação”. Em outras palavras: esse animal entende o sentido de esperar por uma comida mais saborosa do que simplesmente saciar a fome com a primeira refeição que lhe aparecer – muito parecido com você no quinto dia útil do mês, no horário de almoço do seu trabalho. Você (e o choco) não quer só comer, mas comer bem.
Evidentemente, existem proporções a serem guardadas: ao passo em que um ser humano está disposto a esperar por um tempo maior se a comida realmente valer a pena, o molusco choco só “entende” a espera por algo entre um ou dois minutos. Depois disso, como diz a expressão, “o que vier é lucro”.
O nosso entendimento de memória se divide em dois pilares específicos: a “memória semântica” é aquela que remete ao aprendizado, onde somos capazes de lembrar do que somos ensinados independente do contexto ou necessidade. Já a “memória episódica” remete a ações que tomamos, inerentemente ligadas a aspectos situacionais: o que você comeu naquele dia em que choveu forte e você não conseguiu sair de casa, por exemplo.
A memória episódica aparece em humanos a partir dos quatro anos de idade, em média, mas se degrada com o tempo. Especificamente, essa memória funciona com amplo apoio do hipocampo, uma parte do cérebro encaixada profundamente no lobo temporal (lateral) – e à medida que envelhecemos, ele também perde suas capacidades. Não se sabe, porém, se isso é diferente no molusco.
A descoberta abre mais espaços para questões voltadas à capacidade de “pensar” dos animais: por décadas, pensava-se que a memória episódica era um trato exclusivamente humano, já que seu uso está associado ao emprego de consciência e racionalização. Porém, a presença dela em animais supostamente irracionais demonstra que ela é bem mais presente do que pensamos.
Não é a primeira vez que tratos associados a humanos aparecem em animais: os gaios-azuis, um tipo de pássaro colorido (e relativamente agressivo) da América do Norte, se lembram perfeitamente de onde armazenaram comida, mesmo depois de meses. Corvos, por outro lado, são conhecidos por “marcar rostos” de pessoas de quem gostam (ou desgostam) e ainda comunicam essa memória para outros pássaros como um “alerta”. Em exemplos mais mortais, o búfalo africano é conhecido localmente como “Morte Negra”, por supostamente entender o conceito de “vingança” e perseguir a quem ele considera uma ameaça – como caçadores – mesmo dias depois após o encontro.
Inclusive, o bovino acima é forte o suficiente para ser considerado parte essencial dos “Cinco Grandes da África”, um termo usado por especialistas de safari para designar animais extremamente perigosos – um grupo onde também estão inseridos leões, elefantes, leopardos e rinocerontes. E todos nós, ao menos uma vez na vida, já ouvimos a expressão “memória de elefante”, que também é cientificamente comprovada.
O experimento de Schell envolveu 24 chocos – metade jovem (entre 10 e 12 meses) e metade idosa (acima de 20 meses, ou “90 anos humanos”). Ambos os lados foram treinados para o reconhecimento de estímulos visuais – o movimento de bandeiras brancas e pretas -, associando-os a localizações específicas dentro de seus tanques.
Assim como o estudo de “gratificação”, os chocos tiveram liberdade de escolher suas refeições: um pedaço de carne cortada de camarão em conserva, ou um camarão vivo. Durante quatro semanas, os chocos foram ensinados (pelo movimento e cor das bandeiras) que essas comidas estavam disponíveis em locais específicos de seus tanques, com diferença de uma hora (para a carne crua morta) e três horas (para as presas vivas). A cada dia, a localização das refeições mudava, para garantir que os chocos não estivessem apenas “decorando” um padrão.
Eventualmente, a cientista e sua equipe descobriram que todos os chocos – jovens e velhos – perceberam qual refeição apareceria de acordo com a cor e movimento da bandeira, usando essa informação para determinar onde encontrariam a sua comida favorita na próxima vez em que fossem alimentados.
Em outras palavras: se há uma hora, um pedaço de camarão morto apareceu no tanque, e há três horas, um camarão vivo, os chocos marcavam esse processo todo para determinar se comeriam a próxima carne em conserva (que viria dali a uma hora) ou se esperavam pela presa viva(que chegaria em três horas).
É possível, segundo a cientista, que essa função de memória tenha se desenvolvido com o tempo, como se, por exemplo, os chocos se lembrassem de relações sexuais passadas a fim de não repetirem parceiros. Como esse animal tem maturidade sexual tardia, é possível que eles usem isso para maximizar relações e assim gerarem mais e mais filhos.
Agora, Alexandra Schnell e sua equipe querem ter a oportunidade de investigar de forma aprofundada a anatomia neurológica dos chocos, no intuito de determinar quando a capacidade para a memória episódica aparece.
Fonte: Olhar Digital