Pegamos bactérias do ar mais puro da Terra para ajudar a resolver um mistério de modelagem climática

O Oceano Antártico é uma vasta faixa de águas abertas que circunda todo o planeta entre a Antártica e as massas de terra do hemisfério sul. É o lugar mais nublado da Terra, e a quantidade de luz solar que se reflete ou atravessa essas nuvens desempenha um papel surpreendentemente importante no clima global. Afeta os padrões climáticos, as correntes oceânicas, a cobertura de gelo do mar da Antártica, a temperatura da superfície do mar e até as chuvas nos trópicos.

Mas, devido ao Oceano Antártico ser tão remoto, houveram poucos estudos reais sobre as nuvens da região. Por causa dessa falta de dados, os modelos de computador que simulam os climas presentes e futuros superestimam a quantidade de luz solar que atinge a superfície do oceano em comparação com o que os satélites realmente observam. A principal razão para essa imprecisão é devido à forma como os modelos simulam nuvens, mas ninguém sabia exatamente por que as nuvens estavam `apagadas´. Para que os modelos funcionassem corretamente, os pesquisadores precisavam entender como as nuvens estavam se formando.

Para descobrir o que realmente está acontecendo nas nuvens sobre o Oceano Antártico, um pequeno exército de cientistas atmosféricos, incluindo nós, foi descobrir como e quando as nuvens se formam nesta parte remota do mundo. O que descobrimos foi surpreendente – ao contrário dos oceanos do Hemisfério Norte, o ar que amostramos sobre o Oceano Antártico quase não continha partículas da terra. Isso significa que as nuvens podem ser diferentes daquelas acima de outros oceanos, e podemos usar esse conhecimento para ajudar a melhorar os modelos climáticos.

O fato de as nuvens conterem pequenas gotículas de líquido, de cristais de gelo ou ambos é influenciado pelas partículas no ar. Kathryn Moore, CC BY-ND.

Nuvens de gelo e nuvens líquidas

As nuvens são feitas de minúsculas gotículas de água, de cristais de gelo, ou geralmente uma mistura dos dois. Elas se formam em pequenas partículas no ar. O tipo de partícula desempenha um grande papel na determinação da formação de uma gota de líquido ou de um cristal de gelo. Essas partículas podem ser naturais – como a maresia, pólen, poeira ou até bactérias – ou de fontes humanas como carros, fogões, usinas de energia e assim por diante.

Para o olho não treinado, uma nuvem de gelo e uma nuvem de líquido são muito parecidas, mas têm propriedades muito diferentes. As nuvens de gelo refletem menos luz solar, precipitam mais e não duram tanto quanto as nuvens líquidas. É importante para o tempo – e para os modelos climáticos – saber quais tipos de nuvens existem.

Os modelos climáticos tendem a prever muitas nuvens de gelo sobre o Oceano Antártico e poucas nuvens líquidas em comparação com as leituras de satélite. Mas as medições de satélite ao redor dos pólos são difíceis de fazer e menos precisas do que outras regiões, então queríamos coletar evidências diretas de quantas nuvens líquidas estão realmente presentes e determinar por que havia mais do que os modelos preveem.

Este era o mistério: Por que existem mais nuvens líquidas do que os modelos pensam que existem? Para resolver isso, precisávamos saber quais tipos de partículas estão flutuando na atmosfera ao redor da Antártica.

Antes de irmos até lá, tivemos algumas pistas.

Estudos de modelagem anteriores sugeriram que as partículas formadoras de gelo encontradas no Oceano Antártico podem ser muito diferentes daquelas encontradas no hemisfério norte. A poeira é uma grande semeadora de nuvens de gelo, mas devido à falta de fontes de terra empoeiradas no hemisfério sul, alguns cientistas levantaram a hipótese de que outros tipos de partículas podem estar conduzindo a formação de nuvens de gelo sobre o Oceano Antártico.

Como a maioria dos modelos é baseada em dados do hemisfério norte, se as partículas na atmosfera fossem de alguma forma diferentes no hemisfério sul, isso poderia explicar os erros.

Usamos esses instrumentos de amostragem para capturar bactérias transportadas pelo ar e determinar de onde vinha o ar e as partículas que originam às nuvens. Kathryn Moore.

Mapas bacterianos

É difícil medir diretamente a composição das partículas sobre o Oceano Antártico – simplesmente não há muitas partículas ao redor. Então, para nos ajudar a rastrear o que está dentro das nuvens, usamos uma abordagem indireta: as bactérias no ar.

A atmosfera está cheia de micro-organismos que são carregados por centenas a milhares de quilômetros pelas correntes de ar antes de retornar à Terra. Essas bactérias são como placas de veículos aerotransportadas, são únicas e informam de onde o carro – ou o ar – veio. Como os cientistas sabem onde vive a maioria das bactérias, é possível olhar para os micróbios em uma amostra de ar e determinar de onde veio esse ar. E, uma vez que você sabe disso, também pode prever de onde vêm as partículas do ar – o mesmo lugar em que as bactérias normalmente vivem.

A fim de coletar amostras de bactérias transportadas pelo ar nesta remota região oceânica, um de nós embarcou no Australian Marine National Facility R / V Investigator para uma expedição de seis semanas. O tempo estava turbulento e as ondas muitas vezes eram brancas, mas por um a dois dias de cada vez, sugávamos o ar da proa do navio por meio de um filtro que captava as partículas transportadas pelo ar e as bactérias. Em seguida, congelamos os filtros para manter o DNA bacteriano intacto.

As bactérias no ar acima do Oceano Antártico são locais, quase inteiramente as mesmas bactérias que vivem nas águas abaixo. Thomas Hill, CC BY-ND.

Bactérias oceânicas sozinhas

Na maioria das regiões oceânicas do mundo, especialmente no hemisfério norte, onde há muita terra, o ar contém partículas marinhas e terrestres. Isso é o que esperávamos encontrar no sul.

Com os filtros congelados em segurança em nosso laboratório no Colorado, extraímos o DNA da bactéria e o sequenciamos para determinar quais espécies capturamos. Para nossa surpresa, as bactérias eram essencialmente todas as espécies marinhas que vivem no Oceano Antártico. Quase não encontramos bactérias terrestres.

Se as bactérias eram do oceano, então elas eram as partículas formadoras de nuvens. Essa era a resposta que procurávamos.

As partículas de nucleação de gelo são muito raras na água do mar e as partículas marinhas são muito boas para formar nuvens líquidas. Tendo principalmente partículas marinhas no ar, esperávamos que as nuvens fossem feitas majoritariamente de gotículas líquidas, que é o que observamos. Uma vez que a maioria dos modelos trata as nuvens nesta região da mesma forma que tratam as nuvens no hemisfério norte, que é mais empoeirado, não é de se admirar que os modelos estejam fora da realidade para essa região.

Daqui para frente

Agora que sabemos que as nuvens do Oceano Antártico no verão estão sendo formadas por partículas puramente marinhas, precisamos descobrir se o mesmo é verdadeiro em outras estações e em altitudes mais elevadas. O projeto maior, que envolveu aviões e navios, deu aos cientistas atmosféricos uma ideia muito melhor das nuvens, tanto próximas à superfície do oceano quanto no alto da atmosfera. Os modeladores climáticos entre nós já estão incorporando esses novos dados em seus modelos e esperamos ter resultados para compartilhar em breve.

Descobrir que as partículas transportadas pelo ar sobre o Oceano Antártico são principalmente provenientes do oceano é uma descoberta notável. Isso não apenas melhora os modelos climáticos globais, mas também significa que confirmamos que o Oceano Antártico é uma das regiões mais ambientalmente intocadas da Terra – um lugar que provavelmente mudou muito pouco devido às atividades humanas. Esperamos que nosso trabalho melhore os modelos climáticos, mas também forneça aos pesquisadores uma base de como é um ambiente marinho verdadeiramente intocado.

Fonte: The Conversation / Kathryn Moore, Jun Uetake e Thomas Hill
Tradução: Redação Ambientebrasil / Maria Beatriz Ayello Leite
Para ler a reportagem original em inglês acesse:
https://theconversation.com/we-caught-bacteria-from-the-most-pristine-air-on-earth-to-help-solve-a-climate-modeling-mystery-140041