Antes da chegada dos portugueses, quem caminhasse alguns quilômetros pelo território da atual cidade de São Paulo poderia cruzar florestas tropicais com bromélias, orquídeas e árvores de até 45 metros de altura, campos cerrados com espécies de troncos grossos e galhos retorcidos, araucárias e arbustos típicos da região Sul e várzeas de rios que lembravam o Pantanal.
A extraordinária variedade da flora nativa – em parte moldada pelos indígenas que habitavam a área e hoje confinada a poucas ilhas na zona urbana – atraía para a região um conjunto igualmente diverso de animais, entre os quais onças-pintadas, tucanos-de-bico-verde, micos-leões-pretos e veados-catingueiros.
A partir de relatos históricos, de estudos do botânico Ricardo Cardim e de informações etimológicas, a BBC Brasil produziu um mapa inédito das formações vegetais de São Paulo antes da colonização. A ilustração, a cargo do artista Leandro Lopes de Souza, busca recriar a paisagem contemplada da colina onde, em 25 de janeiro de 1554, padres jesuítas celebraram a missa que passou para a história como o ato de fundação da cidade.
Segundo Cardim, daquele morro, na confluência dos rios Tamanduateí e Anhangabaú, tinha-se “uma das melhores vistas do Brasil”.
“São Paulo era um local extraordinário porque justamente havia essa contraposição de campos, florestas, rios produtivos e muita caça – não por acaso os índios escolheram viver aqui”, afirma o pesquisador, que está finalizando um livro sobre a vegetação original da cidade.
No linguajar botânico, São Paulo era um ecótono, ou seja, um ponto de encontro de diferentes biomas. Cardim diz que havia na cidade trechos da Mata Atlântica, vegetação característica do litoral brasileiro, de matas mistas de araucárias, bioma típico do Sul, e do Cerrado, formação predominante no Centro-Oeste.
Ele afirma ainda que nos cerrados paulistanos se achavam plantas do Pampa, bioma do Rio Grande do Sul, e que as várzeas dos rios Tietê e Pinheiros – os maiores da cidade – se assemelhavam ao Pantanal mato-grossense.
A localização de São Paulo – entre a costa e o Planalto Central brasileiro e no limite entre as zonas tropical e subtropical – favoreceu a diversidade de biomas. Também contribuíram sua variedade de solos e topografia irregular (a diferença entre o ponto mais alto da zona urbanizada da cidade, a Vila Mariana, e as águas do Tietê chega a 109 metros, segundo um estudo do geógrafo Aziz Ab’Sáber).
Moldada por incêndios
Quando os primeiros exploradores portugueses venceram a Serra do Mar, encontraram na futura capital paulista três aldeias indígenas, do povo Tupiniquim.
Em Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo, o historiador americano John Manuel Monteiro conta que os povoados não eram fixos: conforme o solo empobrecia e a caça rareava, as comunidades buscavam outras áreas.
Segundo o botânico Ricardo Cardim, sucessivos incêndios – naturais e provocados pelos indígenas – ajudam a explicar a presença de cerrados na paisagem original paulistana. O fogo impedia o adensamento da vegetação e favorecia a sobrevivência de árvores resistentes, com troncos grossos, típicas do bioma.
Cardim diz que os indígenas recorriam ao fogo para abrir clareiras para roças, encurralar animais na caça ou renovar a vegetação campestre. A rebrota atraía herbívoros, entre os quais cervos, que também eram caçados pelos grupos.
Os incêndios comiam as bordas das florestas e as deixavam com formato circular – daí, segundo o botânico, o nome do bairro Capão Redondo, na zona sul da cidade. Havia muitos outros capões (do tupi kaa’pãu, ilha de mato) pelo território.
No início do século 17, a fauna local ainda parecia bem preservada. Segundo o pesquisador, moradores eram alertados sobre os riscos de caminhar nas vias paulistanas “porque havia onças que comiam gente”.
Dizia-se que várias delas moravam na serra da Cantareira e desciam até a várzea do Tietê para caçar. Há relatos sobre a presença dos felinos até na região da atual avenida Paulista, então coberta por uma floresta densa, chamada pelos indígenas de caaguaçu (matagal, em tupi). Um trecho da antiga mata deu origem ao Parque Trianon, um dos raros locais na zona urbana que preservam a vegetação original.
Outra área de mata fechada ficava no vale do Anhangabaú, no atual centro da cidade, onde índios escravizados costumavam buscar refúgio. Dessa floresta, nada restou.
Árvores-bairros
Cambucis e araucárias, que antes cobriam várias partes da cidade, também desapareceram. A primeira espécie, comum nas matas ciliares paulistanas, atraía antas ao frutificar e batizou um bairro da região central.
A segunda, hoje restrita à região Sul e a algumas serras do Sudeste, se espalhava por todos os biomas da cidade. Resistente a incêndios brandos e importante para a alimentação dos indígenas, que consumiam sua semente, o pinhão, a árvore é a razão por trás do nome do bairro Pinheiros.
Outros endereços paulistanos com nomes em tupi dão pistas sobre a riqueza das paisagens nativas, conforme o dicionário tupi-português de Luiz Caldas Tibiriçá (curiosamente, também se chamava Tibiriçá o cacique da antiga aldeia Inhapuambuçu, nas imediações do atual Pateo do Colégio).
Guarapiranga, onde há hoje uma represa, vem da união entre guará (garça) e piranga (vermelha), provável referência à espécie Eudocimus ruber. M’Boi Mirim, atual estrada na zona sul, é uma possível derivação de mboia mirim, cobra pequena.
Ibirapuera pode vir da junção de ybyrá, árvore, e puera, sufixo que indica passado, algo “que foi” – possível menção ao charco com troncos secos (que já foram árvores) onde se criou o principal parque da cidade, drenado após o plantio de eucaliptos australianos.
Ipiranga, cujas margens plácidas ouviram o brado retumbante, é rio vermelho – e que, como tantos outros cursos d’água paulistanos, foi canalizado conforme a cidade crescia.
O bioma paulistano mais golpeado pela urbanização foi o Cerrado, que, segundo Cardim, se estendia por boa parte da cidade atual, incluindo trechos dos bairros do Ipiranga, Bela Vista, Luz, Butantã, Vila Mariana e a região do aeroporto de Congonhas.
A formação foi descrita no fim do século 16 por um antepassado do botânico – e que, embora padre, deixou herdeiros no Brasil -, o jesuíta português Fernão Cardim. Em visita à então vila de Piratininga, embrião da São Paulo contemporânea, ele comparou a vegetação à do país natal.
“É terra de grandes campos e muito semelhante ao sítio de Évora, na boa graça, e campinas, que trazem cheia de vacas, que é formosura de ver”, descreveu numa carta ao superior eclesiástico. “Esta terra parece um novo Portugal”, concluiu, encantado.
Hoje, segundo o botânico Cardim, o cerrado paulistano sobrevive em apenas três faixas de terra na zona oeste – duas delas na Cidade Universitária e uma no Jaguaré.
Uma boa amostra da formação original está no Parque Estadual do Juquery, no município vizinho de Franco da Rocha. Para Cardim, trata-se da “última joia incrustada (na região metropolitana de São Paulo) que conserva o cerrado perfeito”, onde se encontram espécies como pequizeiros, palmeiras macaúbas e muricis.
Floresta cultural
Ao longo do desenvolvimento de São Paulo, as árvores nativas foram cedendo espaço não só para construções, mas também para espécies exóticas. Hoje, de acordo com Cardim, 90% das plantas da cidade são estrangeiras.
“Somos como aqueles cariocas que há cem anos andavam de cartola e casaco de pele na beira da praia porque queriam ser franceses. O paulistano, no que se refere ao paisagismo e às áreas verdes, quer ser tudo, menos brasileiro.”
Por isso, diz o botânico, mesmo que São Paulo ficasse desabitada e suas construções fossem demolidas, jamais recuperaria os biomas originais.
Ele afirma que as antigas áreas de Cerrado seriam sufocadas por capins estrangeiros e que não haveria mais incêndios para manter o equilíbrio do bioma.
Com o tempo, diz ele, a cidade seria tomada por uma floresta densa – “mas não uma Mata Atlântica natural, e sim uma floresta cultural, que refletiria nossas escolhas enquanto sociedade e serviria como um registro da nossa passagem por aqui”.
Fonte : BBC