A partir deste domingo (18) até sexta-feira (23), Brasília vai sediar dois dos principais eventos do mundo sobre a gestão, uso e direito à água. Pela primeira vez no Hemisfério Sul, o Fórum Mundial da Água (FMA) deve atrair a atenção de governos e grandes corporações para os debates que acontecem na capital federal.
Já o Fórum Alternativo Mundial (FAMA) espera reunir, ao mesmo tempo, movimentos sociais, sindicatos e ONGs que defendem a gratuidade desse bem público. Ao todo, serão mais de 170 países representados nos eventos.
Na tentativa de esclarecer as propostas dos encontros e, assim, explicar o porquê de fóruns simultâneos para debater um mesmo tema, o G1 ouviu especialistas de cada um dos eventos. Para eles foram feitas as mesmas perguntas, afim de entender quais os principais pontos de divergência nesse debate.
A entrevista também se propõe a ouvir possíveis opiniões comuns entre os dois grupos quando o assunto é a preservação da água, e quais as soluções práticas para garantir o acesso a recursos hídricos de qualidade para todos os povos do planeta.
Quem são os especialistas
Diretor da Agência Reguladora de Águas (Adasa), o engenheiro agrícola Jorge Werneck é mestre em irrigação e doutor em tecnologia ambiental e recursos hídricos pela Universidade de Brasília (UNB).
O representante do Fórum Mundial da Água está envolvido há pelo menos três anos no processo que debateu e organizou o evento em Brasília. Ao todo, foram mais de 150 mil pessoas ouvidas, em todo o mundo, para que fossem, então, escolhidos os seis principais temas que norteiam as mesas de discussão do fórum.
O representante do FAMA Gilberto Cervinski também é engenheiro agrônomo, além de especialista em economia política e “energia e sociedade no capitalismo”. Atua como coordenador nacional do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), uma organização presente em, pelo menos, 15 estados brasileiros.
Criado na década de 1970, o MAB tem promovido ações para garantir, especialmente, o direito de ribeirinhos, quilombolas e agricultores que tiveram que deixar suas terras devido a construção de usinas hidrelétricas.
Dois eventos e um tema. Veja principais pontos da entrevista:
- Entenda o Fórum Mundial da Água e o Fórum Alternativo da Água
- Principais temas e pontos de debate
- Pontos de convergência entre os dois fóruns
- Financiamento e privatização da água
- Soluções práticas para o problema da água no mundo
- Crise hídrica no DF
- Como perpetuar os bons hábitos de economia de água
- Legado dos fóruns para Brasília e para o mundo
1. Entenda os fóruns
G1 – O que são e quais as principais propostas do FAMA e do Fórum Mundial da Água?
Gilberto Cervinski (FAMA) – O Fórum Alternativo estabelece propostas de oposição ao Fórum Mundial. Pretendemos mostrar para o povo todas as estratégias de privatização da água que está presente em rios, nascentes, lagos e todas as 27 regiões aquíferas do Brasil.
Nós vamos debater o atual momento, em que a disputa pela água acontece no mesmo contexto da crise do Capital. A água não pode ter dono, ela é do povo e deve servir ao povo. A defendemos como direito e não mercadoria.
“Somos contrários ao estabelecimento de propriedade privada sobre a água.”
Jorge Werneck (FMA) – O Fórum Mundial é uma plataforma de debate a respeito do tema água, que busca, por meio de uma participação aberta e democrática, promover o debate para influenciar os processos decisórios na área de recursos hídricos.
O Conselho Mundial da Água [organizador do fórum] é composto pela sociedade civil, pelo governo, técnicos e organismos da Unesco… O bom é que tenha diversidade mesmo. Posso te garantir que na grade temática, que é a espinha dorsal do fórum, os temas e sessões foram construídos de forma democrática, tudo isso foi feito com a participação de cerca de 150 mil pessoas do mundo inteiro.
2. Temas principais
G1 – O que podemos destacar como os principais temas e questões debatidos nesta edição do FAMA e do Fórum em Brasília?
Gilberto – A atual disputa pela água na América Latina. Estamos fazendo esta edição do fórum para mostrar que a água está sendo disputada pelas corporações, e o povo corre o risco de ficar sem ela.
Denfedemos a água como direto do povo, queremos que a universalizem, e que não a estabeleçam como mercadoria. Queremos que o povo tenha direito à agua e que o lucro das empresas seja investido na melhoria dos sistema. Precisamos de tarifas reais e não especulativas e abusivas. Essa é nossa pauta no Fama.
Werneck – Fizemos todo um processo de debate para definição dos principais temas que deveriam ser discutidos no fórum. Após as reuniões pelo mundo inteiro, definiram-se seis principais temas: clima, segurança hídrica e mudanças climáticas, pessoas, desenvovlimento urbano, ecossistemas – que evolvem a qualidade da água e biodiversidade – e financiamento para segurança hídrica.
Além dos temas transversais: compartilhamento – tema principal do fórum –, capacitação e governança, que vai traçar uma agenda de desenvolvimento para 2020 até 2030.
3. Pontos de convergência?
G1 – Serão dois grandes eventos acontecendo simultaneamente na mesma região, para debater o mesmo tema: a água. Podemos esperar algum ponto de convergência entre as decisões e declarações finais?
Gilberto – Não há convergência porque a única questão que move eles [Fórum Mundial] é o lucro. Só querem atuar em áreas possíveis de extrair lucratividade.
Onde se privatiza água, com o passar dos anos passa a se estabelecer prioridade nesses dividendos e, sendo assim, não há investimento de melhorias de sistema, por exemplo, para evitar a perda de água. Não têm como haver pontos comuns nesse debate.
Werneck – Não há visão de confrotamento, tanto o fórum quanto o FAMA querem a mesma coisa. Todos entendem a água como direito humano. Isso é ponto pacífico.
O que a gente busca é como implementar esse tipo de coisa. Eles [FAMA] defendem que o Estado deve assumir esse papel, mas outros grupos defendem que o privado deve aparecer de forma mais intensiva para que as coisas funcionem. O importante é levar água para todas as pessoas.
“Em pleno século 21, ainda tem gente morrendo de diarréia e com dificuldade de acesso à água de qualidade no mundo.”
4. Privatização
G1 – O lema do Fórum Mundial esse ano é “compartilhando água”. Seria a discussão sobre financiamento e privatização da água, o principal ponto de divergência entre as duas edições?
Gilberto – Sim. Água não é mercadoria, é um direito dos povos, é do povo e por ele deve ser controlada. Quando se estabelece a privatização, é como se tornasse uma unidade de terra. Se ocorrer a privatização, uma empresa poderá estabelecer uma cerca no lago, por exemplo, e proibir que alguém acesse essa água.
Também poderá estabelecer um preço por metro cúbico [de água] e, aí, a população vai ter que pagar esse preço para alguém que ache que é dono do “território”. Não seria pagar pelo custo do serviço.
“Deve haver soberania do país, que a água seja controlada por cada Estado e não por empresas internacionais. Isso para que o povo tenha acesso pleno.”
Werneck – A grande diferença é que o Fama já chega com uma posição definida a respeito do que eles entendem ser a única solução para resolver os problemas. Não é divergência, mas é uma parcela da sociedade que se reúne, pessoas não inseridas no processo que se juntam para debater o tema.
“Dizer que o Fórum é das empresas, não condiz com todo o trabalho feito, com a forma democrática que reflete nas discussões.”
Teremos sim várias sessões sobre modelos de saneamento e sobre financiamento, porque só dizer que todo mundo precisa de água, não resolve o problema, mas precisa dizer como resolver isso aí. O objetivo é debater, levantar e sistematizar as informações para que cada um utilize as experiências da melhor forma
5. Soluções práticas
G1 – Quais as principais soluções práticas que o evento propõe para o problema do mau uso e escassez de água no país e no mundo?
Gilberto – Não é simples ter uma regra geral. O Nordeste é a região onde tem a menor precipitação do país. Mas lá, o povo passou a controlar a água, e não são empresários que controlam com carro-pipa. Na região seria um tipo de iniciativa, que tem que ser ampliada para que leve o acesso à agua para toda população.
No caso do saneamento, também precisa ser universalizado para toda população. As pessoas precisam de ideias práticas para levar água de qualidade para beber, mas com uma tarifa justa.
Werneck – Será, principalmente, a experiência que nós ganhamos nos últimos anos com a alocação negociada envolvendo usuários das bacias do DF. Nesses últimos anos o sistema evoluiu bastante. Temos programas como o produtor de água do Pipiripau, que contou com o envolvimento de 150 produtores em um universo de 450 pessoas.
Outro exemplo é o processo de despoluição do Lago Paranoá. O lago era um lugar fedorento, degradado, que depois de limpo virou um grande cartão postal para cidade. É um caso de sucesso, exemplo pro mundo, de um lago despoluído que se tornou útil para o abastecimento urbano. Cases como esses do DF serão apresentados para o mundo.
6. Crise hídrica no DF
G1 – No caso do DF, mesmo com o racionamento e mais conscientização sobre o uso da água, o consumo médio da população ainda é acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Em que estamos errando quando o assunto é crise hídrica, escassez e preservação desse bem?
Gilberto – Prefiro não responder sobre o DF porque não tenho vivência do racionamento daqui. O que posso falar é sobre o que aconteceu em São Paulo.
Werneck – Esses limites são médias. Tem que ser considerado porque dependem de classe, tipo de uso e de ambiente. Não dá para comparar o Brasil, o DF, com lugares mais frios, por exemplo.
No Distrito Federal, em pouco tempo chegamos aos 3 milhões de habitantes, e aqui, os rios ainda são pequenos, é um berço… Quando se pega dados da ONU [Organização das Nações Unidas], vê-se que o DF tem altíssimo risco de conflitos pelo uso da água. Somado a isso tem o fato da população do DF continuar crescendo, e de nos últimos três anos termos enfrentado problemas com a chuva. Aí vieram a crise e o conflito, mas estamos conseguindo superar, poderia ter sido pior.
Vale lembrar que o consumo de água por habitante do DF caiu para um valor considerável.
7. Hábitos de consumo
G1 – Às vezes notamos que os hábitos de consumo de água da população mudam durante o período de crise, como foi em São Paulo. Mas, depois que a restrição passa, volta-se a consumir da mesma forma. Qual a recomendação para que bons hábitos se perpetuem?
Gilberto – Normalmente, durante racionamentos, aumenta-se a tarifa de água, o número de ligações e até demissão de trabalhadores. Não se investe nada em ampliação de reservatórios, por exemplo, já que aumentou a demanda por água.
Não investir leva a um colapso. Os governos têm que entender que é preciso priorizar o sistema, e não aos acionistas.
“O lucro das empresas precisaria ser reinvestido no próprio sistema de água.”
Werneck – O DF passa pela primeira vez por uma situação dessa. Daqui pra frente a gente pretende continuar com as campanhas. O fórum também é importante nesse processo, assim como o envolvimento das crianças.
Depois da crise, as pessoas entendem o que é passar por isso, pensam no que seriam dois dias de racionamento… Ninguém gosta e nem quer crise, mas foi algo que gerou pontos positivos e mais responsabilidade sobre o uso racional da água.
8. Legado dos fóruns
G1 – Por fim, qual seria o principal legado dos fóruns para Brasília e para o mundo?
Gilberto – O legado é chamar a atenção para necessidade do povo de lutar para resolver o problema da água. Porque se depender do governo, o dinheiro públlico vai ser canalizado para empresários.
Werneck – Em um nível mais local, esperamos ter uma geração um pouco mais consciente e preocupada com a questão da água.
“No DF, a própria crise hídrica tem nos dado a melhor percepção do valor da água para vida.”
Queremos que todas as vozes sejam ouvidas. O Estado sozinho talvez não consiga resolver todas os problemas, por isso esperamos que o fórum nos gere uma base, tanto de pessoas, como jurídica, com política, para evolução na resolução dos problemas.
Fonte: G1