São cerca de 3 mil sítios em rochas de boqueirões e grotas, onde pinturas rupestres revelam, segundo arqueólogos, um homem pré-histórico de “mente aberta” e “avesso a rótulos”, que teria vivido há 16 mil anos e era coletor, caçador, pescador e agricultor.
Chamado de “índio Tapuia” (etnia usada para denominar todo índio que não era Tupi Guarani), esse homem, que é uma mistura de várias etnias e raças, foi a base para a formação do povo sertanejo. Ele chegou à América do Sul pelo oceano Pacífico, vindo de locais ainda incertos para a arqueologia.
Entre seus habitats estava o Vale do São Francisco, com concentração no território do município baiano de Sento Sé. O “índio” foi miscigenado com outras raças após a colonização portuguesa, há pouco mais de 500 anos, indicam arqueólogos.
Os pesquisadores também encontraram na região ossos de animais pré-históricos, como a preguiça-gigante, de 6 metros de altura, e do tatu-gigante, do tamanho de um Fusca.
A descoberta dos sítios têm empolgado não só pesquisadores, mas também o setor turístico, que vê a riqueza arqueológica local com forte potencial para atrair turistas, a exemplo do que ocorre no Parque Nacional da Serra da Capivara (Piauí) – onde mais de 1,3 mil sítios arqueológicos já foram descobertos em mais de 40 anos de pesquisa.
No sertão da Bahia, os sítios estão numa região conhecida como Boqueirão da Onça, que há décadas também chama a atenção de pesquisadores pela fauna e flora do bioma Caatinga. Recentemente, após 16 anos de estudos, o Ministério do Meio Ambiente concluiu uma proposta para a criação das unidades de conservação na região.
A proposta é um parque nacional de 345,3 mil hectares para proteção integral do bioma e uma APA (área de proteção ambiental) de 505,6 mil hectares, onde será possível o uso sustentável dos recursos naturais. A área total abrange os municípios baianos de Sento Sé, Campo Formoso, Sobradinho, Juazeiro e Umburanas.
A finalização da proposta, com o envio à Casa Civil da Presidência de documentos pendentes, ocorreu nesta terça-feira (13). Não há prazo para ela ser analisada pela pasta, mas isso “deve ser realizado em tempo curto”, informou a Casa Civil. Depois, a criação do parque nacional e da APA devem virar decreto presidencial.
Image captionA proposta do Ministério do Meio Ambiente é criar um parque nacional de mais de 345 mil hectares | Foto: Rogério Cunha
Como dentro do parque nacional não há comunidades ou empreendimentos, não será necessário gasto público com indenizações. Dentro da APA, porém, vivem cerca de 250 famílias em 27 comunidades de fundos de pasto e quilombolas. Há ainda empreendimentos de energia eólica que ocupam cerca de 30% do território da área de proteção a ser criada.
‘Homem metafórico’
Os sítios arqueológicos estão dentro da área onde será o parque nacional. Eles começaram a ser estudados na década de 1970, durante a construção da barragem de Sobradinho. Na época, o arqueólogo espanhol Valentim Calderón coordenou o Projeto Sobradinho de Salvamento Arqueológico numa área de 4.214 km².
O trabalho de Calderón nos territórios de Casa Nova, Remanso, Pilão Arcado (à margem esquerda do rio São Francisco) e de Juazeiro, Sento Sé e Xique-xique (margem direita) identificou os primeiros sítios rupestres da região.
As pinturas foram definidas por ele como arte parietal (de homens que viveram na Idade das Renas, entre 15000 a.C. e 9000 a.C), divididas em pictografias (representação de ideias por meio de desenhos) e petroglifos (escultura bruta em pedra).
Image captionProjeto de parque e área de proteção ambiental ainda precisa de aval da Presidência da República | Foto: Rogério Cunha
Após o Projeto de Salvamento Arqueológico, as pesquisas só voltaram a ocorrer na região na década de 1990, com o arqueólogo Celito Kestering, discípulo de Calderón e hoje doutor em Arqueologia na área de pinturas rupestres.
O arqueólogo é professor aposentado da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco), em Petrolina (PE), e pesquisa os sítios arqueológicos de Sento Sé desde 1993. Ele os classifica como “metafóricos”, enquanto que os da Serra da Capivara, onde também realizou estudos, seriam “metonímicos”.
Para ele, “o metafórico tem o conceito de bem sem precisar ter a representação da imagem de um Deus macho, pai, castigador, como tem o metonímico, que incorpora um conceito cujo horizonte não vai além da figura rupestre.”
“Os que moravam na beira do Rio São Francisco eram coletores, caçadores, pescadores e agricultores. Os metonímicos se orientam só pelo espaço, não têm a dimensão do tempo. Os metafóricos se orientam muito mais pelo tempo do que pelo espaço”, diz Kestering.
Potencial turístico
Image captionPrefeituras da região estão tentando potencializar o turismo em áreas com sítios arqueológicos | Foto: Rogério Cunha
Mesmo que ainda não esteja regularizada, a visitação turística já vem ocorrendo na região de Sento Sé por causa dos sítios arqueológicos, tendo sido esse, inclusive, um dos motivos de o município ser elevado de categoria no novo Mapa do Turismo, divulgado há cerca de um mês pelo Ministério do Turismo.
O mapa elevou Sento Sé da categoria E para a D, numa escala que vai de E até A. Assim, a cidade passou a ter direito a pedir ao ministério R$ 150 mil por ano para realização de um único evento turístico. A Secretaria Municipal de Turismo de Sento Sé informou que busca recursos com governos para poder criar meios de organizar as visitas aos sítios e divulgá-los.
“Temos um potencial grande para isso e queremos aproveitar, mas com cuidado”, comenta Mariluze Amaral, chefe do Departamento de Turismo. A ideia é promover o ecoturismo em trilhas nos circuitos arqueológicos, com passagens por caminhos percorridos pelo sertanista e explorador de ouro Romão Gramacho, o cangaceiro Lampião e a Coluna de Carlos Prestes.
Por se tratar de algo ainda não regulamentado, a Prefeitura de Sento Sé diz não dispor de informações sobre a quantidade de turistas que tem ido aos sítios, mas diz que tem buscado conversar com guias locais para fazerem um trabalho mais qualificado.
Um dos que atuam com turismo na região é o empresário Bruno Kestering, filho do arqueólogo Celito. As visitas aos sítios, segundo ele, “são realizadas mais por escolas da região, que costumam ir em grupo de 50 pessoas”.
Image captionOs sítios arqueológicos de Sento Sé fazem parte de um bioma ainda desprotegido pelo poder público | Foto: Rogério Cunha
Devido à proximidade com as principais cidades da região do Vale do São Francisco – a baiana Juazeiro e pernambucana Petrolina, separadas pelo rio -, os sítios mais frequentados são os de Sobradinho, onde foram realizados os estudos iniciais pelo arqueólogo espanhol Valentin Calderón.
Alvandyr Dantas Bezerra, pesquisador do Instituto Habilis e do Grupo de Pesquisa Bahia Arqueológica, realizou em 2017 levantamento de sítios arqueológicos na região de Sento Sé com vistas à criação de um circuito de turismo, a pedido da prefeitura local.
“O potencial turístico lá é enorme. O que deu para perceber, de início, é que muitos (sítios) terão de ficar disponíveis para visitação, e outros para pesquisa científica”, contou. Na Serra da Capivara, por exemplo, a visitação é aberta em 173 sítios.
Bezerra estima que, saindo o decreto presidencial que criará o Parque Nacional do Boqueirão da Onça, o projeto de visitação inicial dos sítios pode ficar pronto em dois anos – com o tempo mais locais podem ser liberados para visitas. Mas isso depende ainda da elaboração do plano de manejo pelo Ministério do Meio Ambiente.
“Com o decreto, vamos dar início à elaboração desse plano e liberar locais onde possa ocorrer a visitação turística. Em vez de fazer um plano de manejo completo, que contemple tudo, vamos fazer aos poucos para que as visitas possam ocorrer, tanto nos sítios arqueológicos quanto na área da Caatinga”, diz Moara Menta Giasson, diretora de áreas protegidas da Secretaria de Biodiversidade do ministério.
Onça em extinção
Image captionPara pesquisadores, potencial turístico da área é ‘enorme’ | Foto: Rogério Cunha
Os sítios arqueológicos de Sento Sé fazem parte de um bioma ainda desprotegido pelo poder público. E não só eles estão nesta situação, como também cerca de 30 onças pintadas e 120 pardas, dentre outros mamíferos, aves e plantas diversas que habitam exclusivamente o bioma Caatinga.
Entre outros representantes da fauna em extinção no Boqueirão da Onça estão o tamanduá bandeira, o tatu-bola, o gato mourisco e o gato-do-mato. Entre as aves em risco estão a arara-azul-de-lear e o jacu estalo.
Répteis, anfíbios e insetos ainda a serem estudados completam o quadro da fauna selvagem do Boqueirão, onde está também a maior caverna do Brasil, a Toca da Boa Vista, com 93,7 km de extensão – e alvo de pesquisas científicas.
A flora nativa apresenta grande diversidade – recentemente, 97 novas espécies foram catalogadas. O Boqueirão da Onça é “a última grande área selvagem de todas as caatingas do Nordeste brasileiro”, destaca o pesquisador José Alves Siqueira, doutor em biologia vegetal pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e autor do livro Flora das Caatingas do Rio São Francisco: história natural e conservação.
“Pesquisas iniciadas em 2006 apresentam uma flora rica, com mais de 900 espécies de plantas reunidas em 120 famílias botânicas, com espécies endêmicas da Caatinga, ameaçadas de extinção e até novas espécies que serão apresentadas brevemente à comunidade científica e que já se encontram no limiar da extinção”, informa.
As discussões sobre a proteção da área com a criação de um parque nacional começaram em 2001. A ideia inicial era proteger um território de cerca de 900 mil hectares, mas interesses econômicos de mineradoras que buscavam as pedras de ametistas da região e empresas de energia eólica provocaram o atraso na definição de como seria o parque.
Em 2017, o Boqueirão da Onça ganhou destaque com a descoberta de uma jazida de ametista que provocou uma corrida com cerca de 20 mil garimpeiros de todo o Brasil. As comunidades locais reclamam de abusos e violência, além da extração de madeira, caça de animais silvestres e furto dos rebanhos.
Image captionO Boqueirão da Onça ganhou destaque com a descoberta de uma jazida de ametista que provocou uma corrida de milhares de garimpeiros | Foto: Rogério Cunha
A definição só veio em 2017, quando se decidiu criar um parque nacional numa parte do bioma e a APA na outra. A diferença crucial entre as duas é que, diferente do parque nacional, na APA pode haver atividades econômicas, desde que respeite as regras do decreto que cria a área de proteção ambiental. A área do garimpo, contudo, ficou de fora das duas áreas.
“Assim, as atividades de energia eólica vão poder continuar sem problemas, e ela também é incentivada por nós por ser uma fonte de energia limpa. A região do Vale do Boqueirão da Onça é uma das que tem mais potencial para a geração desse tipo de energia”, diz André Luís Luma, coordenador-geral de Políticas para Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente.
Maior felino das Américas, a onça pintada tem na região um dos principais refúgios em área natural. A espécie já perdeu 55% da área de sua distribuição original e, atualmente, a maior parte de suas subpopulações está ameaçada de extinção. No Brasil, a onça pintada está criticamente ameaçada na Caatinga e na Mata Atlântica.
Projetos também estão sendo desenvolvidos com vistas à proteção animal, com foco nas onças, vítimas criadores de animais da região, sobretudo ovinos e caprinos, fonte de alimento das onças, ao lado de outros mamíferos, como as capivaras.
“Estamos incentivando os produtores a construir currais para guardar os animais à noite, pois os deixam soltos e aí as onças atacam. É difícil elas virem até os currais e atacar durante o dia”, diz Rogério Cunha de Paula, coordenador substituto do Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros), ligado ao ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade).
O Boqueirão também tem papel-chave na segurança hídrica na região. Importantes nascentes localizadas nos planos mais altos irrigam o solo seco do sertão, garantindo condições de vida para comunidades urbanas e rurais.
Algumas dessas nascentes foram incluídas nos limites do futuro parque nacional, cuja criação é esperada também por entidades internacionais de proteção ambiental, como a WWF.
“Hoje, dos 11% restantes da vegetação original da Caatinga, apenas 2% é legalmente protegida. Então, qualquer iniciativa de conservação na Caatinga é bem-vinda”, diz Jaime Gesisky, especialista em Políticas Públicas da ONG WWF-Brasil.
Fonte: BBC