Já passava das 11 da manhã, e José do Nascimento de Jesus, de 72 anos, o “seu Zezinho”, observava com a esposa a inauguração do canteiro de obras do terreno de Lavoura, a cerca de oito quilômetros do município de Mariana (MG). Naquela sexta-feira (11/05), os dois estavam empolgados com o aparente fim da espera de mais de dois anos e meio desde que, em novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, cobriu de lama o subdistrito de Bento Rodrigues, também a poucos quilômetros dali e onde ambos moravam.
Além de destruir Bento Rodrigues, aquele que foi o maior desastre ambiental da história do país deixou 19 mortos, um desaparecido e um rastro de 663 quilômetros de rejeitos de minério do Rio Doce até o litoral do Espírito Santo, impactando cerca de 40 cidades. Só no município de Mariana, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) contabiliza cerca de três mil pessoas afetadas, incluindo as que tiveram perdas materiais, de moradia e de renda.
O terreno de Lavoura foi o local escolhido pelos antigos moradores para o reassentamento das mais de 200 famílias sobreviventes de Bento Rodrigues. As obras estão sendo tocadas pela Renova, fundação criada a partir de um termo que obriga as mineradoras envolvidas (Samarco, BHP Billiton e Vale) a reparar os danos.
O plano é manter, nos 97 hectares de área urbana da “nova” Bento, a disposição das ruas e da vizinhança assim como costumava ser antes da devastação do vilarejo – fundado no século 18, durante o ciclo do ouro de Minas Gerais.
O início das obras surge como um alento para seu Zezinho. “Só de o canteiro de obras estar aí, o coração se sente aliviado”, diz.
No entanto, sem licenciamento ambiental, a inauguração do canteiro pouco representa de efetivo. “Obtivemos a autorização, uma dispensa de intervenção, sem licenciamento ambiental, para instalar o início do canteiro de obras, que vão ser as instalações, para quando a licença for obtida, as empresas iniciarem as obras”, disse Patrícia Lois, gerente de reassentamento da Renova, que estipula um prazo de 45 dias para que se consigam os documentos.
“Puro circo”
Responsável pelas ações cíveis para reparação dos danos causados pela Samarco em Mariana, o promotor de Justiça Guilherme de Sá Meneghin, do MPMG, é enfático. Para ele, a inauguração do canteiro de obras não tem validade, e, se os responsáveis pela reconstrução de Bento Rodrigues não cometerem falhas, o licenciamento sairá em no mínimo 90 dias.
“Esse canteiro de obras, na minha visão, foi um puro circo, uma atividade meramente de marketing, porque ele não significa nada”, diz o promotor.
Em 2017, um projeto anterior para o mesmo terreno foi barrado por falhas da Renova, que Meneghin atribui à “incompetência” dos executores – a escolha por construir em uma parte inclinada do terreno. “Se eles tivessem feito um projeto correto em janeiro de 2017, talvez vocês estivessem aqui agora para a inauguração da nova Bento.”
A Fundação Renova não quis comentar as alegações do MPMG. Já a Samarco afirma que, em 2016, o terreno de Lavoura foi eleita pelos moradores com 96% dos votos.
“O processo até a eleição do terreno foi rigoroso, uma vez que era necessário ouvir as demandas de todos os cerca de 700 moradores do distrito. Foram realizadas 37 reuniões, duas assembleias gerais e dois programas de visitas aos terrenos pré-qualificados naquela ocasião: Lavoura, Carabina e Bicas”, afirma a empresa.
Os equívocos apontados pelo MPMG, no entanto, vão além do reassentamento. Entre 2016 e 2017, a instituição identificou 200 famílias atingidas só na região de Mariana que tiveram os auxílios financeiros de renda e moradia negados indevidamente. Em 2018, mais cem casos foram descobertos.
“Essas pessoas são submetidas muitas vezes a informações deliberadamente falsas por parte da empresa”, aponta Meneghin.
Há também falhas no serviço de acompanhamento psicológico e psiquiátrico dos atingidos, contratado pela Renova e que chegou a ser interrompido. O MPMG exige a contratação de uma equipe pública para tratar dos impactos psicológicos. Segundo um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), 28,9% dos atingidos sofrem de depressão, e 16,4% têm tendências suicidas.
Para Meneghin, a dependência econômica da mineração é um entrave – dois anos depois da tragédia, não foi criada nenhuma lei com regras para as barragens. “Falta muita vontade política”, critica o promotor.
Loucos por Bento
Assim como seu Zezinho, o mecânico Mauro da Silva, de 49 anos, e a auxiliar odontológica Mônica dos Santos, de 33 anos, perderam tudo o que tinham em Bento. Mas eles acreditam que seria possível reconstruir o vilarejo no local onde ele existia.
Os dois fazem parte do grupo Loucos por Bento. Em fins de semana e feriados, eles ignoram os horários estabelecidos pela Samarco para visitas, fazem festas, churrascos e passam as noites na cidade destruída.
“As empresas têm interesse em Bento, porque lá embaixo tem minério e ouro da melhor qualidade”, diz Silva. Da casa que abrigou quatro gerações da família, ele só salvou a porta e uma televisão, que não funciona mais.
Santos, que salvou apenas a chave de casa, acredita ser possível acabar com os riscos alegados pelos responsáveis – possibilidade de vazamento de novos rejeitos da barragem de Germano –, para que a antiga Bento seja reocupada.
“As empresas é que tinham que acabar com o risco. Pegar aquela lama, aquelas barragens e levar para a casa deles. E a comunidade deveria voltar a ser onde era. Se fosse lá, te garanto que a gente já estaria reassentada”, diz.
Fonte: Deutsche Welle