Crédito de carbono pode ser ‘pior do que não fazer nada’ contra desmatamento, aponta ProPublica

Atividade mineradora no Acre

Segundo reportagem investigativa, poluidores têm recebido ‘passe livre’ para emitir CO2, sem que créditos para compensar essa emissão estejam sendo de fato revertidos em preservação florestal

Embora o mercado do crédito de carbono tenha gerado muito entusiasmo recentemente, inclusive nos Estados Unidos, há cada vez mais evidências de que eles não renderam, e não vão render, o benefício climático desejado.

É o que mostra uma reportagem publicada na quarta-feira, 22, pela ProPublica, organização americana de jornalismo investigativo independente.

O crédito de carbono funciona assim: uma entidade paga a outra pelo direito de emitir gases que provocam o efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO2). O recebedor desse dinheiro, em tese, o investe em fontes de energia renováveis e deixa de desmatar. Cada crédito é equivalente ao aquecimento global causado por uma tonelada métrica de CO2.

O Brasil, que concentra um terço da área de floresta tropical do mundo, é um dos maiores receptores de recursos do crédito de carbono.

O mercado dos créditos é atraente para indústrias altamente poluentes, como companhias aéreas, e países industrializados que assinaram o acordo climático de Paris, porque as compensações podem servir como uma alternativa mais barata do que reduzir de fato o uso de combustíveis fósseis.

No entanto, de acordo com a publicação, a empolgação com tais planos tem deixado muitos de seus defensores cegos para o fato de que, cada vez mais, surgem evidências de que tais sistemas não trouxeram – e tampouco trarão no futuro – o benefício climático desejado.

A jornalista Lisa Song, especializada na cobertura de meio ambiente, energia e mudanças climáticas e que assina a reportagem com colaboração de Paula Moura, analisou os projetos realizados em diversos países nas últimas duas décadas, pesquisou estudos e relatórios governamentais publicados ao redor do mundo e até contratou uma análise de satélite independente para avaliar o quanto restava de um projeto de preservação florestal que começou a vender créditos de carbono em 2013. Quatro anos depois, só havia florestas em metade da área do projeto de preservação.

A conclusão da ProPublica é que os créditos de carbono não compensaram a quantidade de poluição que se esperava, ou trouxeram ganhos que foram rapidamente revertidos ou que não podiam ser comprovados e medidos.

“Em última análise, os poluidores receberam um passe livre para continuar emitindo CO2 sem culpa, mas a preservação da floresta não chegou a acontecer, ou não durou”, escreve ela. Ou seja, a medida pode ser ainda pior do que simplesmente não fazer nada sobre a questão.

Floresta Amazônica
O Brasil, que concentra um terço da área de floresta tropical do mundo, é um dos maiores receptores de recursos do crédito de carbono

Histórico de fracassos

A reportagem cita dois grandes programas globais e explica seus problemas. O maior deles, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, nasceu a partir do Protocolo de Kyoto, de 1997, quando dezenas de nações fizeram um pacto para reduzir os gases do efeito estufa.

“Os líderes europeus queriam forçar a indústria a emitir menos. Os americanos queriam flexibilidade. Países em desenvolvimento como o Brasil queriam dinheiro para lidar com a mudança climática. Uma abordagem sobre a qual todos concordaram foi a compensação de carbono”, escreve ela.

A ideia era boa: se uma usina elétrica no Canadá precisasse reduzir em 10% suas emissões, mas não quisesse pagar por uma tecnologia mais cara, poderia comprar compensações de carbono em projetos em países em desenvolvimento.

Investidores que quisessem construir uma usina de carvão na Índia poderiam, em vez disso, construir uma usina de energia solar, usando o dinheiro da venda antecipada de créditos de carbono para cobrir os custos mais altos do empreendimento. A diferença entre emissões da usina de carvão hipotética e a fazenda solar real seria convertida em compensações.

O programa subsidiou milhares de projetos, incluindo hidrelétricas, parques de energia eólica e até mesmo usinas de carvão que pediam os créditos por serem mais limpas do que poderiam ter sido.

Logo emergiram escândalos técnicos e de direitos humanos ligados a esses projetos, e a União Europeia parou de aceitar a maioria dos créditos. Um relatório de 2016 descobriu que 85% das compensações tinham uma “baixa probabilidade” de resultar em impactos reais.

Algo parecido ocorreu com outro programa global, chamado Implementação Conjunta. Um estudo de 2015 concluiu que 75% dos créditos emitidos provavelmente não representariam reduções significativas. Ele dizia também que, se os países tivessem cortado a poluição, em vez de fazer compensações, as emissões globais de CO2 naquele período teriam sido 600 milhões de toneladas mais baixas.

Área de floresta desmatada no Acre
Conclusão da ProPublica é que os créditos de carbono não compensaram a quantidade de poluição que se esperava, ou trouxeram ganhos que foram rapidamente revertidos ou que não podiam ser comprovados e medidos

Em comum, quase todos os projetos deixavam de atender a um padrão exigido de qualquer programa de compensação de carbono que dê resultados efetivos, a chamada “adicionalidade”. Isso quer dizer que os ganhos ambientais só são efetivos se as usinas solares ou moinhos de vento construídos com os créditos jamais pudessem ter sido erguidas sem os créditos.

Eles também raramente tinham um sistema de créditos para a preservação de florestas. Nesse sistema, um poluidor paga um proprietário de terras para reduzir o desmatamento. Seria difícil, diziam, saber quais árvores foram salvas por causa de tais projetos e quais teriam sobrevivido sem elas.

Ainda assim, a ideia continuou sendo promovida. A Organização das Nações Unidas chamou-a de REDD, sigla para Redução de Emissão de Desmatamento e Degradação Florestal.

Segundo a reportagem, não há uma autoridade central para lidar com os programas que já existem e nunca foi feita uma avaliação abrangente de seus resultados.

A ProPublica localizou os estudos que existem sobre o tema. Um deles concluiu que 37% deles foram implementados em terras que já são protegidas, como parques nacionais.

Ela também encontrou um documento preocupante do governo da Noruega, país que exporta grandes quantidades de petróleo e gás natural e é um dos maiores defensores desses programas – os recursos noruegueses representam quase metade de todo o financiamento para eles.

O relatório dizia que, após uma década de trabalho e US$ 3 bilhões investidos, os resultados estavam “atrasados e não eram certos”.

A ciência de medir carbono estava sendo empregada apenas parcialmente e havia um risco “considerável” do que é chamado de “vazamento” – quando proteger um pedaço de terra leva a desmatamento em outro lugar. Esse problema, por si só, gera “considerável incerteza sobre o impacto climático”, concluiu a análise.

Crédito de carbono: agora vai?

Um argumento repetido pelos defensores dos sistemas de crédito de carbono é de que as tentativas feitas até agora não tinham dado a eles uma chance real de funcionar.

Isso porque muitos projetos venderam créditos em um mercado voluntário para empresas que queriam ter uma imagem pública mais “verde” ou atrair consumidores que se preocupam com o meio ambiente. Isso não permitiu que eles gerassem dinheiro suficiente para dar certo.

Daí a empolgação com a entrada da Califórnia e outros gigantes no mercado: finalmente haveria um volume significativo de recursos sendo injetados no sistema. O que ocorreria, por exemplo, se uma grande petroleira pudesse compensar parte de danos ambientais pagando ao Brasil para não derrubar árvores?

Foster Brown
“A busca pela perfeição pode atrapalhar a realização. Há um monte de problemas (na implementação do programa). Mas qual é a alternativa?”, afirma cientista Foster Brown, defendendo o crédito de carbono

A Califórnia já tem um programa de cap and trade (quando os limites de emissão de um setor podem ser negociados entre as empresas, criando créditos de carbono para aquelas que reduzirem as suas emissões). Ele permite que as empresas compensem uma pequena porcentagem de sua emissão com projetos de preservação florestal na América do Norte.

A novidade é que, neste ano, um conselho estadual pode aprovar o chamado Tropical Forest Standard (Padrão de Floresta Tropical, em tradução livre), um modelo que definirá como as compensações de carbono poderão ser concedidas também para programas intercontinentais. Especialistas dizem que esse modelo pode e provavelmente será adotado por outros países.

Em abril, seis membros do Parlamento Europeu pediram que a Califórnia rejeitasse o Tropical Forest Standard, citando preocupações com a mudança do cenário político do Brasil (o governo de Jair Bolsonaro incentiva o agronegócio contra o que ele define como “ativistas fanáticos” ambientalistas) e lembrando que a União Europeia não permitiu créditos florestais em seu programa de cap and trade “devido a preocupações ambientais”.

Cientistas ouvidos pela reportagem tenderam a concordar com a jornalista quando confrontrados com os problemas.

No entanto, eles discordam da tese de que esses programas estejam fracassando. Muitos dizem que o modelo não teve, de fato, recursos o bastante para florescer.

A reportagem ouviu o geoquímico americano Foster Brown, da Universidade Federal do Acre, que estuda a Floresta Amazônica e é um defensor do modelo de crédito de carbono.

“A busca pela perfeição pode atrapalhar a realização”, disse Brown à repórter. “Há um monte de problemas (na implementação do programa). Mas qual é a alternativa?”, questionou ele.

Barbara Haya, pesquisadora da Universidade da Califórnia em Berkeley, que estuda o mercado de carbono, disse que é ilusão acharmos que esses programas florestais serão capazes de quantificar com precisão – e, portanto, compensar – a quantidade de poluição emitida, mesmo sob o novo padrão.

O melhor que podemos esperar é um programa que ajude o clima de alguma maneira incomensurável, opinou ela.

O caso do Acre

O Estado do Acre tem sido usado como referência e tem despertado o interesse dos californianos. Por isso, a reportagem foi até lá para avaliar como ele estava funcionando na prática.

A jornalista afirma que viu “largas extensões de pasto onde antigamente moradores locais tiravam borracha das árvores”.

A publicação cita ainda que funcionários do governo falam em preservação, mas políticos cortaram o financiamento e planejam expandir o agronegócio. “Vários funcionários públicos do Acre me disseram que sua prioridade é obter recursos externos para proteger as florestas – a validade das compensações de carbono fica em segundo plano”, afirma a jornalista na reportagem.

Floresta Amazônica
Um relatório de 2016 descobriu que 85% das compensações de carbono tinham uma “baixa probabilidade” de criar impactos reais

Como comprovar a compensação?

Um dos problemas é que, para que o sistema de compensações funcione, é preciso que haja uma contabilidade muito bem feita.

É preciso estabelecer uma base, um cálculo de quanto desmatamento haveria sem compensações. É fácil manipular o sistema inflando esses números.

O Brasil é um dos maiores beneficiários desses programas no mundo. O país, diz a matéria, estabelece bases diferentes para o cálculo.

Além disso, há problemas de monitoramento, sugere a reportagem. O Brasil usa um programa de satélite que rastreia a perda de árvores em grande escala, começando com áreas do tamanho de cerca de 10 quarteirões de uma cidade.

Mas há sinais de que os proprietários de terras estão desmatando áreas menores para escapar da detecção. O sistema não leva em conta outros fatores importantes, como a degradação, o desgaste de árvores por causa de incêndios e a extração de madeira.

A reportagem questionou como o governo do Acre pode ter certeza de que os créditos vendidos são válidos. Vera Reis, diretora executiva da agência ambiental estadual do Acre, disse que a credibilidade é “primordial” e que o país tem, sim, sistemas de monitoramento precisos, que detectam áreas menores.

A reportagem retrata também um problema de mercado, ao citar uma fracassada tentativa de implementação de uma indústria de cacau no Estado.

A matéria cita Fluvio Mascarenhas, analista do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Segundo ele, o governo tentou fazer com que as pessoas valorizassem produtos florestais brasileiros, como castanha e borracha, mas o mercado não acompanhou. “O mundo está nos dizendo que temos que preservar”, disse ele, “mas ninguém está nos mostrando como fazer isso.”

Esse tipo de problema é recorrente em projetos de compensação florestal em todo o mundo, explica a reportagem. Eles em geral têm como alvo moradores de zonas rurais que cortam árvores árvores para obter combustível ou para a agricultura, e que deixariam, em tese, de fazê-lo, mas isso só funciona se as vendas de crédito de carbono forem uma alternativa viável. Elas raramente são, diz a matéria.

A borracha da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, é vendida por cerca de 2 reais o quilo, o suficiente apenas para uma xícara de café, enquanto uma vaca vale 800 reais.

Floresta Amazônica vista do alto
Brasil usa programa de satélite que rastreia a perda de árvores em grande escala, mas há sinais de que os proprietários de terras estão desmatando áreas menores para escapar da detecção, diz reportagem

“O Brasil tem muito orgulho de ter produzido uma queda acentuada no desmatamento da Amazônia desde 2004. No entanto, é impossível dizer qual foi benefício adicional de financiadores estrangeiros. A queda coincidiu com um enorme programa federal de preservação. Quando o país afrouxou as restrições e a fiscalização em 2012, o desmatamento começou a aumentar”, escreve a repórter.

A matéria cita uma pesquisa recente sobre as contribuições da Noruega para o Fundo Amazônia que observou que “ainda precisa ser comprovado com rigor analítico um elo causal para diminuir as taxas de desmatamento no Brasil”.

No caso da reserva Chico Mendes, a reportagem explica que a cobertura florestal está mantida em 94%, mas, mesmo assim, o desmatamento aumentou 60% entre 2000 e 2016, de acordo com dados do pesquisador Mascarenhas.

A reportagem explica como a situação política pode influenciar o problema. O desmatamento já vinha crescendo. Agora, há incerteza diante do fato de que o governo do Acre está alinhado com o presidente Jair Bolsonaro, que apoia o agronegócio.

O dilema dos 100 anos

A reportagem explica que o dióxido de carbono permanece na atmosfera por cerca de 100 anos. Sendo assim, as compensações florestais só funcionam se as árvores permanecerem intactas por um século.

Só que isso não acontece.

Por exemplo, há o caso de créditos comprados pela Fifa como parte de um compromisso de sustentabilidade que a entidade fez antes da Copa do Mundo de 2014, no Brasil.

A ideia original era cessar o desmatamento em áreas altamente exploradas ao longo das fronteiras do território da tribo indígena Paiter-Suruí, em Rondônia.

Mas alguns membros do grupo, desiludidos com a quantidade de dinheiro que estava sendo destinada a grupos internacionais para gestão de logística, se juntaram a madeireiros e ativistas contrários aos programas de compensação de carbono para sabotar o projeto.

Floresta Amazônica
Se a Amazônia perder muitas árvores, ela atingirá um ponto de inflexão, deixará de ser um ecossistema exuberante e se transformará numa savana semiárida

O projeto vendeu 250.000 créditos. Enquanto isso, um líder tribal documentava a destruição. “Todos os dias, 300 caminhões deixam nosso território repletos de madeira”, escreveu ele em uma carta pública em 2016. O projeto foi suspenso no ano passado, depois que os madeireiros destruíram mais árvores do que todos os créditos vendidos.

Os cientistas e especialistas em florestas com quem a repórter conversou dizem que, “se a Amazônia perder muitas árvores, ela atingirá um ponto de inflexão, deixará de ser um ecossistema exuberante e se transformará numa savana semiárida. As consequências seriam globais. E os países ricos não são generosos o suficiente para financiar a preservação das florestas tropicais sem receber algo em troca”.

Fonte: BBC