Há quatro anos, o rompimento de uma barragem no município mineiro de Mariana chocou o país e deixou 19 mortos. E o processo de reparação às famílias das vítimas, aos sobreviventes e aos desabrigados ainda está longe do fim.
Um estudo de contaminação ambiental contratado para balizar as ações de reparação da Samarco, empresa responsável pela mina, aos danos causados à saúde de populações atingidas pelo desastre está há pelo menos seis meses pronto e, no entanto, ainda não foi tornado público.
O Ministério Público Federal (MPF) tem cobrado o governo do Estado de Minas Gerais e a Secretaria Estadual de Saúde, argumentando o “direito a informação adequada” daqueles que há quatro anos são afetados pela lama da barragem de Fundão.
O poder público tem respondido que está avaliando os resultados e que “os materiais serão publicizados assim que as análises sobre eles forem concluídas”.
Lama da barragem de Fundão percorreu mais de 600 km – Gesteira (acima), distrito rural de Barra Longa, foi soterrado pela avalanche
Há grande expectativa na cidade de Barra Longa, que convive desde 2015 com um surto de problemas de pele e respiratórios.
A questão da saúde no município de pouco mais de 5 mil habitantes é considerada delicada por especialistas porque ele é o único local onde a população atingida segue em contato direto com a lama de rejeitos.
Barra Longa está a 60 km do “epicentro” do desastre — a barragem de Fundão. A lama não chegou a destruir o município por completo, como aconteceu com os distritos de Bento Rodrigues e Paracatu, mas invadiu ruas, praças e casas.
A limpeza e a reconstrução conduzidas pela fundação Renova, responsável pelas ações de reparação da mineradora Samarco, foram realizadas sem a retirada da população, que até hoje se queixa da poeira que vem da lama seca do minério e invade as casas — e que poderia explicar a contaminação por metais pesados confirmada em alguns moradores.
A situação é diferente, por exemplo, daquela vivida pelos moradores dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu, completamente destruídos pelo desastre. A população foi deslocada, em sua maioria, para Mariana e espera a reconstrução de suas casas e de suas comunidades em outro local.
Até hoje não existe protocolo para atendimento daqueles que apresentam sintomas em Barra Longa, conta Veronica Alagoano, coordenadora da equipe de assessoria técnica aos atingidos do município, a Aedas.
São erupções na pele, coceira, alergias, dificuldade para respirar, dores no corpo.
Quem consegue pagar os exames diagnósticos e tem a confirmação de uma eventual contaminação pleiteia compensação financeira da fundação Renova. Sem um plano de saúde coordenado pelo poder público, as ações até hoje são individuais e, muitas vezes, infrutíferas.
“O povo de Barra Longa está completamente abandonado”, diz ela.
Em 2017 a BBC News Brasil contou a história de Sofya, que tinha 9 meses quando a lama chegou a Barra Longa.
A menina está entre os 11 voluntários que participaram de um estudo de contaminação humana conduzido pelo Instituto Saúde e Sustentabilidade.
Na época da divulgação dos resultados, em março de 2018, o ISS ressaltou que, diante da amostra reduzida, não era possível estabelecer relação de causa e efeito entre a lama que invadiu a cidade e a intoxicação dos moradores, mas recomendou a realização de estudos mais amplos e aprofundados para verificar se havia um quadro disseminado de contaminação da população.
No caso de Sofya, os exames detectaram contaminação por uma série de metais pesados, entre eles o níquel.
A mãe da menina, Simone Silva, tenta há anos o reconhecimento da filha como atingida pelo desastre, sem sucesso. A fundação Renova chega a pagar parte do tratamento da garota, hoje com 4 anos, mas sem compromisso de longo prazo, recusando-se ocasionalmente a arcar com medicamentos e consultas.
O MPF já recomendou o reconhecimento de Sofya como atingida, que tornaria obrigatória a compensação por parte da fundação.
‘Processo de reparação conturbado’
Simone esteve entre os cerca de 120 moradores que ocuparam o escritório da Renova em Mariana por pouco mais de 20 dias em junho deste ano para cobrar respostas da fundação a uma série de questões, entre elas, o reconhecimento das 11 famílias em que a contaminação foi confirmada.
“O processo de reparação tem sido muito conturbado”, diz Veronica, da Aedas.
A reportagem pediu para conversar com um porta-voz da fundação, que preferiu se manifestar por meio de nota:
“Sobre a relação com os atingidos, a Fundação Renova reafirma que possui o diálogo como prática norteadora de suas ações. Até agosto de 2019, cerca de 104 mil pessoas passaram pelas reuniões de diálogo coletivo. A Fundação Renova disponibiliza canais permanentes de comunicação e interação com a sociedade por meio de espaços fixos, virtuais e central 0800. Ela trabalha para assegurar que as respostas sejam dadas no prazo estabelecido, em linguagem acessível, adequada e compreensível às partes interessadas.”
A respeito do reconhecimento de moradores de Barra Longa como atingidos, a fundação afirma que os requisitos de elegibilidade são: ser diretamente impactado pelo rompimento da barragem, ter a renda comprometida em razão da interrupção comprovada de atividades econômicas ou produtivas, que essa interrupção comprovada seja diretamente decorrente do rompimento da barragem, e que seja verificada ainda uma dependência financeira dessa atividade.
A população do município, entretanto, se considera diretamente impactada.
Troca de governo, demissões e adiamentos
Ainda conforme a Renova, o Estudo de Avaliação de Risco a Saúde Humana (ARSH), realizado pela Ambios Engenharia, tem por objetivo “identificar se há concentração de elementos químicos no ambiente que possam representar potenciais riscos à saúde da população e sua relação com o rompimento da barragem de Fundão”.
“Os resultados ajudarão na definição de ações e responsabilidades junto às regiões impactadas pelo rompimento da barragem.”
A assessoria técnica que auxilia os atingidos em Barra Longa recebeu há cerca de 7 meses os resultados, que, segundo informam interlocutores que tiveram acesso ao documento, apontam que a população da cidade pode estar sujeita a risco de contaminação.
Depois de uma manifestação do MPF, a apresentação dos dados à população de Barra Longa chegou a ser marcada para o intervalo entre 22 e 25 de setembro pela Câmara Técnica de Saúde — entidade associada ao Comitê Interfederativo (CIF), que reúne os órgãos públicos que supervisionam e norteiam as ações de reparação.
Em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais realizada no dia 26 de agosto, o procurador Edmundo Antônio Dias Netto chegou a pedir a antecipação desse prazo, para que a população tivesse acesso “às respostas que tem o direito de saber”.
No vídeo, disponível na internet, o procurador se dirige ao Subsecretário de Vigilância e Proteção à Saúde de Minas, Dario Brock Ramalho, e elogia o trabalho de Kleber Rangel, então secretário-executivo da CT-Saúde, que estava coordenando as “devolutivas”.
Dias depois da audiência, Kleber foi afastado da posição. A direção da câmara técnica foi então cedida pelo Estado ao Espírito Santo, também afetado pelo rompimento da barragem, alegando falta de quadros técnicos e “reestruturação da governança interna ao âmbito do Estado de Minas Gerais”.
Em um ofício enviado ao governador mineiro, Romeu Zema (Novo), ao qual a BBC News Brasil teve acesso, o MPF questiona a mudança:
“Não se pode deixar de observar que, passados mais de oito meses do Governo de Vossa Excelência, a aludida ‘reestruturação da governança interna ao âmbito do Estado de Minas Gerais’ (…) pode vir a resultar em uma perda de eficiência, neste gravíssimo momento, para a Câmara Técnica de Saúde, em prejuízo à prevenção ao risco à saúde humana sugerido pelo multicitado Estudo de Avaliação de Risco à Saúde Humana.”
Na última reunião com o MPF, em 29 de outubro, Minas comunicou a indicação Gian Gabriel Guglielmelli como novo coordenador da CT-Saúde.
A reportagem pediu para conversar com um porta-voz da Secretaria de Saúde do Estado, que preferiu se manifestar por meio de nota.
A pasta confirmou que o estudo foi protocolado no dia 7 de agosto de 2019 e que vem sendo analisado por uma equipe “multisetorial” da SES-MG.
Declarou que o estudo está subsidiando a elaboração de um “plano de ação que contemple a adoção de todas as medidas reparatórias que sejam necessárias para minorar os danos causados à população atingida, e que deverá ser plenamente executado pela Fundação Renova”, sem, entretanto, estabelecer um prazo para a apresentação dos resultados à população.
A secretaria afirmou ainda que, em uma reunião realizada no dia 1º de novembro com participação de AGU, MPF, do Ministério Público Estados de Minas e do Espírito Santo e de representantes do governo de ambos os Estados “foram debatidos e acordados eixos prioritários contendo ações de reparação de curto prazo”.
O risco à saúde humana, segundo a pasta, foi considerado um dos eixos prioritários. A Renova teria até o próximo dia 8 para se manifestar sobre os prazos apresentados para uma série de ações propostas: contratação de profissionais para atuar no programa de atenção e vigilância a saúde nos municípios de Mariana e Barra Longa, contratação e execução de estudo toxicológico para análise da exposição humana nos dois municípios, realização de estudo epidemiológico de morbimortalidade para os municípios atingidos, estruturação dos laboratórios de análise de qualidade da água para consumo humano dos 36 municípios mineiros atingidos.
Depois de acionar a Secretaria de Saúde de Minas Gerais para pedir a divulgação das informações, no último dia 13 de setembro o MPF enviou ofício ao governador Zema reforçando o entendimento de que a população das áreas atingidas tem direito aos dados coletados nas áreas atingidas.
Não houve até o momento manifestação do governo sobre o documento, que ainda se encontra em prazo para resposta.
Fonte: BBC