Há cada vez mais um reconhecimento por parte de economistas, empresas e sociedade civil do mundo todo de que as desigualdades são um obstáculo ao desenvolvimento, sendo necessária uma ação global coordenada para combatê-las.
A avaliação foi feita pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, em entrevista à CNN Brasil, publicada na quinta-feira (10).
“Creio que há cada vez mais governantes que compreenderam isso, e estão disponíveis para lutar contra as tendências que inevitavelmente fazem as desigualdades aumentarem”, salientou.
“O fato de tantas pessoas serem impedidas de acessar os mercados, impedidas de responderem às suas próprias necessidades, trava o investimento, trava o crescimento econômico, trava o desenvolvimento”, declarou.
Guterres afirmou que a globalização teve aspectos positivos do ponto de vista do crescimento econômico e do aumento da riqueza no nível mundial, mas também contribuiu para o recrudescimento das desigualdades entre os países e dentro deles.
Nesse sentido, a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) são uma “verdadeira carta contra as desigualdades”, salientou o chefe da ONU. A agenda, acordada pela comunidade internacional em 2015, é um conjunto de metas que inclui desde a erradicação da pobreza e da fome até a proteção do meio ambiente e ações de combate às mudanças climáticas.
“Há todo um conjunto de situações de vulnerabilidade que exige uma resposta determinada em favor da igualdade. E essa é a campanha que fazemos junto de todos os governos, mas também junto do setor privado, da sociedade civil, porque é essencial que todos assumam suas responsabilidades”, disse Guterres.
“Estamos agora no início de uma nova década, que chamamos Década de Ação para acelerar a concretização dessa Agenda 2030. Muitos países adotaram esse programa como seu próprio programa de desenvolvimento. E hoje o próprio setor privado, a sociedade civil têm aderido cada vez mais essa perspectiva, que é a perspectiva de combate à desigualdade”, salientou.
Para Guterres, somente a ação coordenada e o multilateralismo poderão ajudar o mundo a enfrentar os desafios atuais, em especial a pandemia de COVID-19 e as mudanças climáticas.
“Vivemos uma situação de muita fragilidade hoje. Temos um desenvolvimento científico extraordinário e, no entanto, um vírus microscópico nos pôs de joelhos. Não temos as alterações climáticas controladas e corremos um risco seríssimo em relação ao futuro do planeta”, disse.
“Nessa situação de fragilidade, é necessário compreender que se cada país decidir resolver os problemas por si próprio, não vamos a lugar nenhum, e essa fragilidade acabará sendo fatal a todos nós. Por isso, a pedagogia que procuro fazer com humildade é dizer que, face a desafios globais, a única resposta possível é global. Nós não precisamos de menos cooperação internacional, precisamos de mais cooperação internacional”, salientou.
Na avaliação do chefe da ONU, a crise socioeconômica e sanitária provocada pela pandemia do novo coronavírus não foi respondida de forma articulada pelos países. “Continua a haver desarticulação na resposta, e quem ganha é o vírus”, disse.
“A soberania não impede que os Estados cooperem e partilhem objetivos e estratégias, o que é indispensável se quisermos controlar o vírus, o aquecimento global, se quisermos pôr ordem no ciberespaço e nos protegermos da proliferação das armas de destruição em massa”, salientou.
Ainda sobre a pandemia, Guterres reconheceu que os países do Sul Global tiveram mais dificuldades na medida em que não apenas têm um nível de desenvolvimento menor, como têm serviços de saúde mais limitados.
“Por isso, a América Latina está sofrendo um impacto dramático em relação à vida das pessoas, ao sofrimento das pessoas e em relação às economias dos Estados.”
“Quero aqui oferecer toda a minha solidariedade, não cabe a mim dar conselhos ou fazer comentários, cabe oferecer solidariedade ao povo brasileiro e da América Latina e desejar que haja o mais rápido possível uma contenção do vírus e uma reativação das economias para poderem também responder aos desafios de desenvolvimento que a América Latina enfrenta neste momento.”
Emergência climática
Sobre a ação climática, Guterres salientou que a preservação da Amazônia é tão importante quanto a preservação da natureza e das florestas em todas as partes do mundo.
“Tem se falado muito sobre os incêndios e a devastação na Amazônia, mas a verdade é que, se repararmos, no ano passado tivemos incêndios devastadores no Ártico, na Sibéria, na Groenlândia, no Canadá, na África, na Indonésia”, disse.
“Estamos diante de um fenômeno mundial em que a soberania dos Estados deve ser reconhecida, mas ao mesmo tempo deve haver um esforço coletivo para reduzir perda de florestas e reflorestar maciçamente”, disse.
Guterres lembrou que as árvores têm um papel decisivo, não só quando ardem, uma vez que isso tem efeito negativo imediato na emissão de gases e no aquecimento global, mas como fonte de captação de CO2 e de proteção da natureza.
“Por isso fiquei muito satisfeito quando vi os presidentes da Bacia da Amazônia assumirem no ano passado um compromisso de que iriam trabalhar em conjunto para parar o desflorestamento e aumentar o reflorestamento, e espero que esse compromisso conjunto se traduza na prática.”
“Temos que parar a guerra com a natureza, conter as emissões, atingir a neutralidade de carbono em 2050 para que a temperatura mundial não suba mais do que 1,5 grau Celsius em relação ao período pré-industrial. Se não fizermos isso, as consequências que hoje já são devastadores podem ser absolutamente catastróficas”, alertou.
75 anos da ONU
Guterres comentou também o aniversário de 75 anos das Nações Unidas, comemorados este ano. Lembrando as conquistas da Organização, o chefe da ONU afirmou que esta é a primeira vez na história da humanidade em que há um período de 75 anos sem nenhuma guerra entre as grandes potências.
“Durante este período de 75 anos, foi possível evitar uma grande guerra, ou até uma Terceira Guerra Mundial ou uma guerra nuclear que muitos consideravam possível. As Nações Unidas trabalharam largamente para conseguir isso”, disse.
No entanto, admitiu que se multiplicaram os conflitos de pequena e média dimensão. “Hoje, vivemos em um período em que já não há nem bipolaridade, nem unipolaridade, há um certo caos. As relações de poder no nível internacional não são claras, e há sentimento de impunidade, cada um entende que pode fazer o que quer.”
“Se olharmos para a Síria, para Líbia ou para o Iêmen, verifica-se que os conflitos aparentemente civis e internos têm uma série de atores envolvidos e cada um faz o que quer, não há ninguém que controle coisa nenhuma.”
Guterres admitiu as dificuldades das Nações Unidas em mediar tais conflitos e conseguir levar todos os atores à mesa de negociação. “É verdade que conseguimos evitar uma guerra de grandes proporções, mas neste caso das Relações Internacionais temos dificuldade em mediar os conflitos que existem”, disse.
Ele citou algumas realizações importantes da ONU, como as operações de paz, e o caso de conflitos em Libéria, Sierra Leoa, Costa do Marfim e Darfur, nos quais foi possível uma mediação das Nações Unidas e posteriores operações de paz.
“Tudo isso é uma ameaça séria à paz e à segurança para a qual, infelizmente, o Conselho de Segurança que temos na ONU, que como se sabe está muito difícil, e onde as relações entre as maiores potências nunca foram tão disfuncionais como são hoje”, disse, lembrando que isso torna difícil resolver conflitos que vão proliferando sobretudo em Oriente Médio e África.
Guterres concluiu com uma mensagem ao povo brasileiro, lembrando sua experiência como primeiro-ministro de Portugal (1995-2002).
“Quando fui primeiro-ministro, penso que contribuí muito para as relações entre Portugal e Brasil, foi um período em que se intensificaram enormemente não só as trocas culturais, mas as trocas econômicas e o investimento econômico”, disse.
“E sempre considerei que, para um país como Portugal, o Brasil deveria ser uma prioridade na sua política externa. E por isso quero desejar aos meus irmãos brasileiras e brasileiros tudo de bom, vençam a COVID-19, e que o Brasil possa encontrar um caminho de prosperidade e ao mesmo tempo de maior igualdade e realização humana para todas as brasileiras e brasileiros.”
Fonte: ONU