T-rex ‘Stan’ é vendido por US$ 31,8 milhões – e cientistas estão furiosos

Com valor inestimável para a ciência, pesquisadores temem perder acesso ao fóssil, que agora pertence a um comprador anônimo.

O fóssil de Tyrannosaurus rex conhecido como Stan exibido em uma galeria na casa de leilões Christie’s, em Nova York, em 17 de setembro de 2020.
FOTO DE SPENCER PLATT, GETTY IMAGES

Mais de três décadas atrás, no estado americano da Dakota do Sul, um paleontólogo amador chamado Stan Sacrison encontrou um gigante dos tempos ancestrais do nosso planeta: um fóssil praticamente completo de Tyrannosaurus rex. Apelidado de “Stan” em homenagem ao seu descobridor, o animal foi escavado em 1992 e, desde então, vivia no Instituto de Pesquisas Geológicas de Black Hills, instituição privada em Hill City, Dakota do Sul. Mas ainda que você nunca tenha visitado esse instituto, há uma chance de já ter visto esse T-rex específico. Dezenas de moldes de alta qualidade dos seus ossos estão em exibição em museus de várias partes do mundo, de Tóquio, no Japão, a Albuquerque, no estado de Novo México.

Agora, a batida do martelo de um leiloeiro pôs o futuro de Stan em questão. Com a venda dos ossos do dinossauro para o comprador – até agora anônimo – que deu o lance mais alto, surge um temor entre  especialistas de que a ciência acabe perdendo o estimado T-rex.

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Em 6 de outubro, a casa de leilões londrina Christie’s vendeu o T-rex pelo valor recorde de US$ 31,8 milhões, cerca de R$ 178 mi, o mais alto já pago por um fóssil em leilão. O recorde anterior era de 1997, com a venda de “Sue”, um T-rex praticamente completo escavado pelo mesmo instituto da Dakota do Sul e que acabou comprado pelo Museu Field de História Natural de Chicago por US$ 8,36 milhões (o equivalente, hoje, a cerca de US$ 13,5 milhões).

No dia seguinte à venda de Stan, a paleontóloga Lindsay Zanno, do Museu de Ciências Naturais da Carolina do Norte, definiu a venda como “simplesmente estarrecedora”.

“É um preço exorbitante, que chega a ser absurdo, considerando o meu conhecimento do mercado”, acrescentou o paleontólogo David Evans, chefe de paleontologia de vertebrados do Museu Real de Ontário, em Toronto, que sugeriu que o comprador anônimo poderia ter gasto a mesma fortuna de uma maneira muito mais eficiente para aprofundar o conhecimento da humanidade sobre criaturas pré-históricas. “Se todo esse dinheiro [fosse] investido de maneira adequada, poderia facilmente custear 15 postos permanentes de pesquisas sobre dinossauros, ou até 80 expedições de campo completas por ano, perpetuamente”, escreveu ele em entrevista por e-mail.

Cientistas também se mostraram preocupados em relação a um efeito cascata negativo que essa venda poderia ter no estudo de dinossauros ao incentivar pessoas a tentar descobrir e vender fósseis em bom estado de preservação em vez de os disponibilizarem para estudos.

“Isso é terrível para a ciência e um grande estímulo a investidas comerciais para explorar os fósseis de dinossauros do oeste americano”, afirma o especialista em tiranossauros Thomas Carr, paleontólogo da Faculdade Carthage de Kenosha, estado americano de Wisconsin.

Paleontólogos temem que, se o comprador for um colecionador particular, pesquisadores e público em geral percam o acesso ao fóssil, limitando a possibilidade de reanalisar resultados, como medidas dos ossos, ou conduzir novas análises com ferramentas e técnicas mais avançadas.

A possibilidade de repetir experimentos é “um princípio fundamental da ciência, faz parte da nossa base ética”, Zanno explica. “O mundo da paleontologia está sem fôlego”, aguardando o destino de Stan.

Por que vender Stan?

O Instituto de Black Hills talvez seja mais conhecido pelo seu envolvimento na obtenção – e longa disputa de custódia – do T-rex Sue, que envolveu uma operação do FBI e uma disputa judicial com os sioux do rio Cheyenne. Ainda que não tenha a mesma dramaticidade, a venda de Stan também deriva de uma disputa judicial.

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Por anos, o Instituto de Black Hills manteve Stan exposto no museu de Hill City. Além de vender moldes de resina para outros museus, o instituto dava acesso ao fóssil para pesquisadores, o que causou uma enxurrada de pesquisas científicas sobre diferentes aspectos, desde a grande força das mandíbulas do T-rex até sua capacidade de flexionar e movimentar o crânio.

“O esqueleto de Stan é, sem dúvida, um dos melhores espécimes de Tyrannosaurus rex já encontrados, e foi publicado na literatura científica diversas vezes”, conta Evans. “Stan é um dos pilares para compreender o T-rex.”

Carr, por exemplo, incluiu Stan em três estudos sobre a diversidade dos tiranossauros e o formato de seus crânios no começo de sua carreira. Ele agora se arrepende da decisão, pois o fóssil sempre foi uma propriedade privada e, consequentemente, sempre esteve sob o risco de ser vendido. “No fim das contas, eu acabei contribuindo para um argumento de venda de sucesso para o fóssil… juntamente com outras 45 publicações científicas sobre Stan”, afirma. “Não deveríamos ter cutucado a fera com vara curta.”

A jornada de Stan até a batida do martelo começou em 2015, quando Neal Larson, sócio proprietário de 35% do Instituto de Black Hills (e irmão do presidente do instituto, o paleontólogo Pete Larson), processou a empresa para liquidar seus ativos. De acordo com o Rapid City Journal, jornal local do estado da Dakota do Sul, a empresa havia afastado Neal Larson do conselho de administração três anos antes, após um amargo conflito sobre transações comerciais e defesa, por parte dele, de um ex-funcionário acusado de má conduta sexual.

Uma decisão judicial de 2018 ordenou que Stan fosse leiloado para pagamento da participação de Neal Larson no instituto, de acordo com um comunicado à imprensa do instituto. Apesar da venda de Stan, o Black Hills detém o direito de fabricar e comercializar futuros moldes dos ossos do T-rex, incluindo réplicas em tamanho real.

“Ficamos entristecidos ao saber que o vencedor do leilão provavelmente não foi um museu, mas temos esperanças de que o novo proprietário coloque, em algum momento, Stan em exibição para que o público possa continuar vendo e estudando esse formidável esqueleto original”, disse Pete Larson em um comunicado à imprensa de 7 de outubro.

Em 2018, James Hyslop, chefe do departamento de ciências e história natural da Christie’s, começou a conduzir Stan no processo de leilão. No último 6 de outubro, Hyslop estava ao telefone com o comprador anônimo, anunciando o lance vencedor do escritório da Christie’s em Londres.

Em e-mail para a National Geographic, Hyslop se recusou a comentar sobre a identidade do comprador, e nem mesmo disse se era um colecionador particular ou uma instituição pública de pesquisa. “Como acontece com todas as vendas de sucesso, ficamos satisfeitos com o bom resultado”, escreveu. “Foi uma honra ter trabalhado com um espécime tão extraordinário.”

Luxo e perdas

Nos Estados Unidos, ossos fossilizados encontrados em terras federais são patrimônio público e podem ser recolhidos somente por pesquisadores com licença específica. Esses vestígios também devem permanecer sob custódia pública, em depósitos aprovados, como museus credenciados, por exemplo.

No entanto, fósseis descobertos em terras privadas podem ser comprados e vendidos, e Stan não foi o único dinossauro dos Estados Unidos a ir a leilão recentemente. Em 2018, a casa de leilões francesa Arguttes vendeu um esqueleto do dinossauro predador alossauro, gerando críticas da comunidade científica, pois sua venda, assim como a de Stan, corre o risco de criar a percepção de que os dinossauros valem mais em dinheiro do que em pesquisas.

A Sociedade de Paleontologia de Vertebrados (SVP), associação com 2 mil membros que representa paleontólogos de todo o mundo, é contra o leilão de fósseis e há muito tempo desestimula o estudo de fósseis de propriedade privada, sob o receio de que pesquisadores e o público não terão acesso sempre garantido. Em setembro, a organização enviou uma carta à Christie’s pedindo a limitação do acesso ao leilão de Stan a instituições públicas de pesquisa. Em resposta, a Christie’s reconheceu o posicionamento da sociedade, mas alegou que a venda não poderia ser restringida, explicou Emily Rayfield, paleontóloga da Universidade de Bristol e presidente da SVP. Ela também foi cossignatária da carta enviada pela sociedade.

“A alta visibilidade do leilão e a publicidade em torno do evento atraíram compradores de alto nível, consequentemente elevando o preço dos fósseis e promovendo-os como itens de luxo”, escreveu Rayfield em entrevista por e-mail. “Como poderiam instituições públicas despender tamanha quantidade de dinheiro em um único espécime fóssil – dinheiro que poderia custear empregos, trabalhos de campo, treinamentos, exibições e muitas outras coisas?”

Ouros países têm posicionamentos mais austeros em relação ao comércio de fósseis. Em Alberta, no Canadá, por exemplo, fósseis encontrados na província não podem ser exportados com base em uma lei da década de 1970 que determinou que os espécimes fazem parte do patrimônio natural do local. Leis similares também estão em vigor em polos da paleontologia, como Brasil, China e Mongólia. Contudo, Evans revela que mercados negros continuam comercializando fósseis desses países, em parte impulsionados por altos lucros.

“A venda de Stan irá incentivar mais pilhagens de fósseis protegidos, que ocorrerão em larga escala”, afirma Evans. “É realmente muito triste.”

A paleontóloga da Universidade de Calgary, Jessica Theodor, a próxima presidente da SVP, acrescenta que leilões não só excluem os pesquisadores, como também definem a busca de fósseis pelos anos seguintes. Após a venda multimilionária de Sue em 1997, alguns pesquisadores dos Estados Unidos foram retirados de locais privados onde trabalharam durante décadas, conta Theodor, em parte porque proprietários queriam vender seus fósseis ou arrendar os direitos de escavação das terras a empresas privadas. Paleontólogos também presenciaram um aumento do vandalismo em sítios arqueológicos, com vândalos tentando roubar o que acreditavam serem restos mortais valiosos.

“Uma grande venda como essa pode causar ainda mais dano do que [a venda de] Sue”, afirmou Theodor.

Um apelo da paleontologia

Escavadores comerciais de fósseis nos Estados Unidos afirmam há muito tempo que o modelo de negócios traz à luz fósseis importantes, pois o lucro incentiva mais pessoas a escavarem. As empresas mais conceituadas escavam e preparam fósseis seguindo os mais altos padrões e entram em contato com pesquisadores quando descobrem peças de grande importância científica.

Na melhor das hipóteses, esse sistema pode encontrar e proteger fósseis de valor inestimável, como o dinossauro encouraçado Zuul crurivastator, descoberto pela empresa norte-americana Theropoda em uma fazenda particular no estado de Montana, em 2014. Quando a Theropoda percebeu o que tinha, entrou em contato com o Museu Real de Ontário, no Canadá, que enviou pesquisadores para o local e comprou o fóssil por uma quantia não revelada em 2016.

Porém, mesmo com todo o debate envolvendo as vendas comerciais, leilões são um caso à parte. Disputas de lances podem elevar o preço de um fóssil para muito além do que universidades ou museus poderiam pagar. Consequentemente, fósseis que poderiam ficar à disposição do público são destinados a coleções particulares.

Stan parece ter se tornado um espólio dessa guerra. Durante o leilão no último dia 6, dois compradores fizeram o preço de Stan subir milhões de dólares em apenas alguns minutos. A ascensão meteórica certamente tirou do páreo a maioria das instituições públicas – especialmente neste ano, em que a covid-19 abalou as finanças de museus em todo o mundo.

Os paleontólogos com quem a National Geographic conversou imploram ao novo proprietário anônimo de Stan para doar o espécime de T-rex para um museu ou instituição de pesquisa.

“Faça a coisa certa: abra mão inteiramente do fóssil e doe-o para um museu de história natural certificado para que a ciência use Stan com ética, visando o benefício de todos no planeta que têm interesse em dinossauros”, apelou Carr.

“Você tem a chance de compartilhar um tesouro com o mundo”, acrescentou Zanno. “Isso é algo raro – aproveite.”

Fonte: National Geographic Brasil