Sob o sol matogrossense, um grupo de queixadas agoniza nas imediações de um lamaçal, um dos poucos refúgios para o calor escaldante que emana de uma terra arrasada por numerosos e devastadores incêndios.
Ali, entre animais mortos e feridos, muitos dos quais apresentando queimaduras pelo fogo e ossos expostos, está uma filhote desse porco selvagem. Ela tem apenas alguns meses de vida e permanece ao lado de sua mãe, à beira da grande poça, observando outros membros do bando definhar na lama.
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É como se estivessem aguardando pela própria morte. Uma morte lenta, pois não há água nem comida. O tempo está seco. Não há nenhum sinal de chuvas. E é difícil respirar: o cheiro de carne podre se mistura com a fuligem da vegetação queimada. Pode-se ouvir o barulho das moscas que se alimentam dos cadáveres dos animais.
A floresta desapareceu. Só restam cinzas.
A cena acima foi observada por ambientalistas que estiveram no Pantanal no início de outubro e descrita à BBC News Brasil em conversa por telefone, antes da chegada das chuvas que deram trégua parcial à maior tragédia experimentada por esse bioma em sua história.
Mais de 25% da maior planície alagável do mundo já foram consumidos pelo fogo, segundo mostram imagens de satélite, uma área um pouco menor que a do Estado do Rio de Janeiro.
Os incêndios, de acordo com especialistas, são resultado da pior seca a atingir a região e da ação do homem com queimadas ilegais.
“Ela (filhote de queixada) estava ao lado da mãe, já sem os cascos (cobertura que protege os dedos). Os queixadas são animais sociais, por isso, não abandonam os outros membros do grupo, mesmo que mortos. Ficam, assim, expostos ali, sem água e comida, definhando”, diz Roched Seba, sócio-fundador e diretor do Instituto Vida Livre, ONG sediada no Rio de Janeiro que trabalha na reabilitação e soltura de animais em situação de risco.
Seba fez parte de um mutirão de veterinários e voluntários que viajou ao Pantanal para salvar animais do fogo a partir da campanha “Pantanal em chamas”, lançada pela ONG Ampara Animal e a Ampara Silvestre.
“Provavelmente, no afã de fugir do fogo e tentar se refrescar, esses animais entraram no lamaçal durante à noite e não conseguiram sair dali porque não tinham mais forças. Pela manhã, a lama seca, vira um caldeirão e eles ficam presos. Como muitos estão cansados e mutilados pelo fogo, com feridas infeccionadas e ossos expostos, acabam morrendo”, acrescenta ele, ressalvando que faz parte do comportamento dessa espécie entrar na lama.
“Numa situação normal, além de amenizar o calor, isso garante um repelente natural contra insetos, por exemplo”.
Seba conta que, quando viu a filhote de queixada, percebeu que ela talvez teria maior chance de sobrevivência em meio ao grupo.
“Ela estava com a mãe na beira do lamaçal e tentou correr da gente. A mãe não conseguiu correr. Joguei uma rede em cima dela (filhote) e a segurei em meus braços, pois ela, por ser filhote, não podia ser anestesiada. Também resgatamos outros cinco animais, que acabaram não resistindo”, conta.
Quando, duas horas depois, o grupo voltou para salvar a mãe, ela já estava morta.
“Foi um momento horrível, pois não tínhamos braços para levar a mãe”.
Tratamento
Na base instalada no município de Barão de Melgaço, a bebê queixada foi cuidada pela bióloga e veterinária Mariana Machado, de São José dos Campos, no interior de São Paulo. Machado é especialista na reabilitação de animais silvestres e, como Seba, também se voluntariou para salvar animais do fogo no Pantanal.
“Realizamos o primeiro suporte para restabelecer a hidratação e a nutrição do animal. Logo, verificamos lesões nas quatro patas. Em todas elas, já tinha perdido uma das unhas, e o dedo que fica debaixo dessas unhas estava queimado”, descreve Machado.
“No primeiro momento, trabalhamos com várias terapias, entre elas a ozonioterapia, utilizada para acelerar o processo de cicatrização dessas lesões. E também como estimulante do sistema imunológico”, acrescenta.
Segundo Machado, a cada “três ou quatro dias”, “fazíamos a sedação para que pudéssemos trocar o curativo. Nesse momento, usávamos a ozonioterapia. Combinei diferentes terapias para otimizar o tratamento, pois não se trata de uma paciente que podemos pegar facilmente, uma vez que manipulações exacerbadas geram prejuízos para a saúde do animal”.
“Em pouco tempo”, diz a veterinária, “vimos uma melhora significativa, com o início do crescimento do novo casco que ela tinha perdido. Esse processo de formação do casco poderia levar até 60 dias se não tivéssemos aplicado o tratamento”.
Machado diz que, em paralelo ao tratamento, a equipe voltou ao local do resgate várias vezes para acompanhar o movimento do bando.
“Há vestígios de que os sobreviventes do bando saíram do local. Nossa busca hoje é tentar encontrar o bando para tentar juntá-la a ele. Dos que ficaram no local, nenhum sobreviveu”.
A veterinária lembra que vários desses animais tiveram que ser eutanasiados (morte assistida) no momento do resgate “para cessar seu sofrimento, pois não tinham nenhuma condição de recuperação”.
“As lesões eram incompatíveis com qualquer qualidade de vida.”
“Isso gera uma carga emocional na equipe, mas temos que manter o equilíbrio para conseguir finalizar o procedimento”, acrescenta.
Machado, que permaneceu no Pantanal durante quase um mês, diz ter tratado de 25 animais “não só resgatados a campo, mas vítimas secundárias, de caça e tráfico”. Ela continua fazendo o acompanhamento desses bichos, agora via internet, com a equipe que permaneceu na base de Mato Grosso.
“Há poucos profissionais no Brasil especializados no atendimento a animais selvagens. Decidi me voluntariar para evitar que mais vidas fossem perdidas. Quanto mais profissionais especializados estivessem no local, maior a chance de recuperar os animais”, diz.
“O que mais me doeu foram duas situações em que estive em campo. Resgatamos 23 peixes da espécie cascudo. Eles estavam na lama, quase sem água. Conseguimos removê-los e transportá-los para um outro rio. E num local próximo a esse, vi diversos jacarés adultos definhando também na lama, sem água nenhuma. Nesse momento, meu emocional caiu. Chorei, respirei fundo e continuei a fazer o que precisava fazer.”
Agora, quase um mês depois do resgate da filhote de queixada, Machado diz que ela deve ser solta “nos próximos dias”.
“Ela já apresenta um comportamento muito próximo do natural. Está sem curativos e já tem previsão de retorno nos próximos dias. A recuperação dela surpreendeu nossa equipe”, comemora.
Seba, do Instituto Vida Livre, a batizou de Benta, “bendita ela no meio daquela desgraça toda”.
Um fio de esperança em meio à tragédia que devastou o Pantanal.
Fonte: BBC