Duelo fossilizado? Dinossauros ‘agarrados’ podem começar a revelar seus segredos

Espécimes impressionantemente preservados de tiranossauro e tricerátops, emaranhados como se houvessem morrido em combate, foram adquiridos por museu após mais de uma década em mãos privadas.

Em 2006, caçadores de fósseis comerciais encontraram este tiranossauro impressionante e quase completo ao lado dos ossos de um tricerátops herbívoro. Agora, um museu da Carolina do Norte, nos EUA, adquiriu a dupla pré-histórica, permitindo que os cientistas comecem a estudar o fóssil pela primeira vez.
FOTO DE MATT ZEHER

Por mais de uma década, paleontólogos especularam sobre um fóssil único que preserva os esqueletos de dois dos dinossauros mais famosos do mundo: o Tyrannosaurus rex e o Triceratops. A posição de seus ossos se manteve como estavam em vida e os dinossauros estão praticamente entrelaçados.

Cada espécime está entre os melhores de seu gênero já encontrados. A dupla — apelidada de “Duelo de Dinossauros” — representa um mistério paleontológico: teriam as feras sido sepultadas juntas por acaso, como carcaças aleatoriamente presas no mesmo banco de areia do rio? Ou estariam travando um embate mortal? Ninguém pôde estudar o fóssil até hoje para descobrir de fato.

Leia também:

“Mas essa realidade está prestes a mudar.” Após anos de batalhas jurídicas que deixaram o fóssil trancafiado em laboratórios ou depósitos, a famosa descoberta foi enviada ao Museu de Ciências Naturais da Carolina do Norte (NCMNS, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, em Raleigh. Graças a doadores, como fundações privadas e governos municipais, de condados e estaduais, a organização sem fins lucrativos Amigos do Museu de Ciências Naturais da Carolina do Norte comprará o Duelo de Dinossauros em nome do museu por uma quantia não revelada.

O fóssil será abrigado em uma nova expansão do museu, que conterá um laboratório de paleontologia de última geração a ser inaugurado em 2022. “O Duelo de Dinossauros é realmente uma preciosidade oculta há mais de uma década”, afirmou Lindsay Zanno, paleontóloga da Universidade Estadual da Carolina do Norte e chefe de paleontologia do NCMNS.

Os paleontólogos comemoraram o fato de o fóssil Duelo de Dinossauros ter encontrado um lar permanente. “Serão conduzidos, literalmente, milhares de estudos sobre esses fósseis”, conta o paleontólogo Tyler Lyson, do Museu de Ciência e Natureza de Denver.

“É um espécime muito simbólico”, acrescenta o paleontólogo Kirk Johnson, diretor do Museu Nacional de História Natural do Instituto Smithsoniano.

Anos nas sombras

A história da descoberta do Duelo de Dinossauros e a longa jornada até o NCMNS é tão dramática quanto o próprio fóssil.

Ao anoitecer no condado de Garfield, em Montana, no verão de 2006, Clayton Phipps, um caçador de fósseis, fez a descoberta de sua vida. Phipps e sua equipe inspecionavam um rancho de propriedade de Lige e Mary Ann Murray em Montana quando o primo dele, Chad O’Connor, encontrou uma trilha de fragmentos ósseos que levava a uma pelve de Triceratops exposta à erosão na encosta. Meses de escavações ocasionais acabaram revelando que o fóssil marrom se tratava de um Triceratops praticamente completo — além de um tiranossauro vizinho.

Depois que a equipe de Phipps protegeu o fóssil com estopa e gesso e o retirou do rancho da família Murray, o fóssil passou anos armazenado em um laboratório privado em Fort Peck, Montana. Phipps e a família Murray tentaram convencer um museu a adquiri-lo, mas não encontraram nenhum comprador. Phipps lembra que alguns paleontólogos questionaram a forma de escavação e de catálogo do local.

Nos Estados Unidos, fósseis encontrados em terras federais devem permanecer em acervos aprovados, como museus credenciados. Mas fósseis encontrados em terras privadas, como o Duelo de Dinossauros, podem ser legalmente adquiridos e vendidos.

Em 2013, a casa de leilões Bonhams, com sede em Londres, convenceu Phipps e a família Murray a tentar leiloar o fóssil. Apesar de hesitarem em revelar a identidade do comprador, Phipps e a família Murray tiveram custos altos que precisavam recuperar e acabaram concordando. Mas a venda fracassou quando os lances não alcançaram o lance mínimo de US$ 6 milhões. O Duelo de Dinossauros deixou a casa de leilões em Nova York e permaneceu em um depósito em Long Island.

Anos mais tarde, Zanno procurou Phipps por meio de seu confidente Pete Larson, presidente do Instituto Black Hills, empresa de paleontologia comercial da Dakota do Sul, para perguntar sobre uma possível venda do Duelo de Dinossauros ao NCMNS. Em fevereiro de 2016, Zanno e uma equipe de funcionários do museu visitaram o depósito de Long Island, um momento que ela descreve como impressionante.

“É impossível olhar esses espécimes sem imaginá-los sair da rocha e andar em sua direção”, relata ela. “É fácil visualizar como eram em vida.”

As negociações correram bem, mas antes que o Duelo de Dinossauros pudesse ir a Raleigh, tiveram que enfrentar anos de duras batalhas jurídicas nos Estados Unidos.

No leilão de 2013, a família Murray descobriu que Jerry e Robert Severson, seus ex-sócios no rancho, estavam ameaçando ingressar com uma ação judicial, conta Mary Ann Murray. Quando a família Murray adquiriu a parte do imóvel da família Severson em 2005, os irmãos Severson mantiveram dois terços dos direitos de exploração mineral da propriedade. A família Severson alegava que seus direitos de exploração mineral lhes conferiam uma parcela do Duelo de Dinossauros — dois dos melhores espécimes já encontrados em Montana — e de quaisquer receitas resultantes de sua venda.

A extração de fósseis em Montana ocorria há mais de um século com o pressuposto de que o direito aos fósseis pertence aos donos da propriedade em que foram encontrados, e não a quem detém os direitos de exploração mineral. Por essa razão, a família Murray havia entrado preventivamente com uma ação judicial em uma corte estadual de Montana em busca de uma sentença que reiterasse que fósseis não eram minerais.

A família Severson, que era de fora do estado, então transferiu o processo judicial a uma corte distrital federal, que proferiu uma decisão favorável à família Murray em 2016. A família Severson recorreu da decisão. Para o espanto de Phipps, de Larson e da família Murray, o Tribunal de Segunda Instância do Nono Circuito dos Estados Unidos emitiu uma decisão favorável à família Severson em 2018, conferindo-lhes a maior parte da propriedade do Duelo de Dinossauros.

Paleontólogos consideraram a decisão um desastre. Equiparar fósseis a minerais ameaçava acabar com um século de ações de reivindicação de propriedade de fósseis e, além disso, os direitos de exploração mineral de uma determinada propriedade são muitas vezes tão fragmentados que se tornaria quase impossível obter permissão para escavações futuras em terras privadas. Assim, em uma aliança com interesses em comum, a Sociedade de Paleontologia de Vertebrados, com dois mil membros, e um consórcio de museus se juntaram a um grupo de proprietários de terras de Montana para apresentar uma petição em nome da família Murray.

Esses grupos nem sempre concordam com o comércio de fósseis privados nos Estados Unidos, então a mobilização em torno da ação judicial “foi uma união rara”, ressalta David Evans, presidente de paleontologia de vertebrados do Museu Real de Ontário.

Phipps e a família Murray também encorajaram o órgão legislativo estadual de Montana a aprovar uma lei reafirmando que os direitos fósseis pertenciam aos proprietários de terras. A lei foi aprovada com unanimidade em 2019, mas ainda não se aplica ao Duelo de Dinossauros, porque a ação judicial federal já estava em trâmite.

Em 2019, o Nono Circuito concordou em julgar novamente o recurso e pediu à Suprema Corte de Montana que avaliasse se os fósseis eram minerais. Em maio de 2020, a corte estadual determinou que não eram. O Nono Circuito concordou em junho, reiterando que a família Murray era a legítima proprietária do Duelo de Dinossauros e que tinha, de fato, o direito de vendê-lo, o que possibilitou a aquisição do NCMNS.

“Aguardei uma eternidade por este momento”, afirma Phipps, que agora estrela o reality show do Discovery Channel Dino Hunters (Caçadores de Dinossauros, em tradução livre). “Não poderia estar mais aliviado com o desfecho da trama.”

O fóssil “Duelo de Dinossauros” talvez represente uma batalha fatal entre um tricerátops e um tiranossauro jovem, retratados na reconstituição do estado de Montana na pré-história.
FOTO DE ILLUSTRATION BY ANTHONY HUTCHINGS

A polêmica das vendas privadas de fósseis

Nem todos os fósseis privados como o Duelo de Dinossauros se tornam parte de acervos de museus públicos. Para muitos cientistas, a notícia da compra do NCMNS foi uma compensação bem-vinda à venda de Stan em outubro, um T. rexfamoso e de grande importância científica, desenterrado por Larson e pelo Instituto Black Hills. Uma ordem judicial obrigou o instituto a leiloar o fóssil para comprar a parte de um acionista da empresa, e um comprador anônimo — muito provavelmente um colecionador privado — adquiriu-o por US$ 31,8 milhões.

Paleontólogos ficaram furiosos com o preço exorbitante, preocupados com o relacionamento entre os cientistas e os proprietários de imóveis nos Estados Unidos, que provavelmente pioraria, e com a extração ilegal mundial de fósseis, temendo um aumento sem precedentes. Em contrapartida, Evans considerou o anúncio do Duelo de Dinossauros como uma “notícia fantástica à paleontologia, sobretudo em vista do ocorrido recentemente com o leilão de Stan”.

Mas nem todos os cientistas ficaram contentes. Thomas Carr, especialista em tiranossauros e paleontólogo da Faculdade Carthage em Kenosha, Wisconsin, é um defensor ferrenho da proibição da venda comercial de fósseis dos Estados Unidos. Ele continua preocupado com a compra do Duelo de Dinossauros, que poderia legitimar e apoiar o que ele considera ser um comércio antiético de fósseis insubstituíveis.

“É bom que o destino desses espécimes tenha sido de fato um museu e que não desapareçam como Stan, mas, por outro lado, a que custo?” explica Carr. “Essa venda parece submeter cientistas e museus ao comércio de fósseis.”

Carr estima que mais de 40 fósseis de T. rex — cerca de metade de todos os fósseis conhecidos — estão em mãos privadas ou comerciais e permanecem fora do alcance da ciência.

Um duelo pré-histórico?

Agora que Zanno e sua equipe podem examinar o Duelo de Dinossauros, anos de estudos científicos começam — inclusive a análise que busca saber se a dupla de fato morreu em uma batalha fatal.

Esse não é o primeiro fóssil com predadores e presas encontrados juntos. Em 1971, paleontólogos poloneses e mongóis encontraram um velociráptor e um protocerátops, um primo antigo do tricerátops, em uma batalha, soterrados em uma duna de areia. Para desvendar o destino dos dinossauros de Montana, os pesquisadores precisarão identificar precisamente como — e quando — cada dinossauro foi sepultado e se cada um carrega sinais inconfundíveis de ferimentos causados por outro de sua espécie, como marcas de dentes.

Felizmente, Zanno e sua equipe obtiveram permissão para visitar o local da escavação original, o que deve ajudar a determinar como o fóssil se formou. “Se não pudéssemos conhecer o local da descoberta dos espécimes e coletar nossos próprios dados, os espécimes seriam muito menos valiosos de uma perspectiva científica”, acrescenta Zanno.

Mesmo sem saber se realmente ocorreu um duelo entre os dinossauros, o fóssil representa uma oportunidade única de estudar espécimes incrivelmente preservados de cada um dos animais primitivos.

O tiranossauro, por exemplo, vai esclarecer como ocorria o processo de amadurecimento do T. rex,desde quando era filhote até se tornar um predador gigantesco. A maioria dos especialistas acredita que o tiranossauro em questão era um T. rex jovem, o que o tornaria um dos poucos fósseis desse gênero e, de longe, o mais completo. Por outro lado, Phipps afirma que o fóssil é, entretanto, um Nanotyrannus, uma espécie controversa de tiranossauro pigmeu que a maioria dos especialistas considera ser, na verdade, um T. rex jovem.

“Para mim, o essencial é a diversidade dos dinossauros antes de sua extinção — acredito que seja o que realmente importa”, afirma Lyson, do Museu de Ciências Naturais de Denver. “Será que se trata de um grande tiranossauro ou dois?”

A rocha em torno dos ossos guarda ainda mais segredos porque contém impressões da pele dos dinossauros e resíduos com indícios formados devido à degradação dos tecidos moles dos animais. Graças aos avanços recentes da paleontologia, futuros cientistas também poderão encontrar conteúdos estomacais ou mesmo vestígios das proteínas originais dos dinossauros encerrados na rocha. “O processo de expor os ossos sem destruir sua pele será muito complexo”, completa Johnson.

Phipps está aliviado, poisos cientistas finalmente poderão analisar o fóssil — e mal pode esperar por uma futura visita à Carolina do Norte.

“Quero levar meus netos ao local um dia e dizer: crianças, seu velho avô foi quem encontrou esses dinossauros”, conta ele. “As pessoas poderão vê-los para sempre. É o que sempre desejei.”

Fonte: National Geographic Brasil