“Foi uma mudança enorme e rápida”, diz Igor Polyakov, cientista do Centro Internacional de Pesquisa do Ártico da Universidade do Alasca, nos Estados Unidos, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC.
“Quando iniciamos nosso programa NABOS (para monitorar as mudanças climáticas no Oceano Ártico) em 2002, usamos um navio quebra-gelo russo. Diante de nossos olhos, o sistema mudou e agora não precisamos operá-lo nas mesmas áreas”, acrescentou.
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O Ártico está esquentando mais rápido do que qualquer outro lugar da Terra. Nos últimos 50 anos, a temperatura aumentou mais do que o dobro do restante do planeta.
E o que acontece nessa região evidencia de forma alarmante o impacto do aquecimento global.
Uma das mudanças fundamentais que os cientistas estão tentando entender é a “atlantificação” de uma parte do oceano Ártico chamada mar de Barents.
Em algumas partes do mar de Barents, não apenas a temperatura tem aumentado, mas a própria estrutura do oceano vem mudando, o que pode gerar consequências para todo o planeta.
“O explorador norueguês Fridtjof Nansen foi o primeiro a documentar (na década de 1890!) que houve um influxo de água quente e salgada do Atlântico ao oceano Ártico através do estreito de Fram e do mar de Barents”, explica Polyakov.
As águas mais quentes (com temperaturas acima de zero grau) e salgadas do Atlântico permanecem normalmente separadas do gelo na superfície por uma camada intermediária, devido a um fenômeno exclusivo do oceano Ártico.
“O oceano Ártico é altamente estratificado”, diz à BBC News Mundo a cientista espanhola Carolina Gabarró, pesquisadora do Instituto de Ciências Marinhas (CSIC) de Barcelona e especialista em sensoriamento remoto de oceanos e pólos.
Gabarró participou da Missão MOSAiC, na qual cerca de 600 cientistas de 19 países trabalharam a bordo do navio quebra-gelo Polarstern, que ficou ancorado no Ártico por um ano para estudar as mudanças climáticas.
A cientista explica que a estratificação do oceano Ártico ocorre devido a um fator determinante de sua estrutura: diferenças de salinidade.
“Na camada superior, há água doce e mais fria (menos densa), e na camada inferior, águas mais quentes e salgadas (mais densa)”, diz Gabarro.
Camadas no oceano Ártico
A camada com a salinidade mais baixa no oceano Ártico é a parte superior, onde o gelo se forma.
“Quando o gelo marinho se forma, ocorre um processo chamado rejeição da salmoura ou expulsão da salmoura, pelo qual os sais que estão na água começam a sair”, explica o cientista mexicano Sinhué Torres Valdés, do Instituto de Pesquisas Polares e Alfred Wegener, na Alemanha.
“Ou seja, no processo de congelamento a água se livra dos sais. E aí quando esse gelo derrete a quantidade de sal que há é muito menor e forma uma camada de água doce”, acrescenta Torres Valdés, que também participou da missão no Ártico.
O gelo é mantido separado das águas quentes e salgadas do Atlântico por uma camada intermediária de água fria chamada haloclina (“halo” significa sal e “clina”, gradiente).
“A haloclina é uma camada da coluna de água na qual a salinidade da água muda rapidamente com a profundidade”, diz Gabarro.
Por que as camadas não se misturam
O sal é um peso extra na água. No caso do Ártico, as águas haloclinas são menos salgadas e, portanto, mais leves que as do Atlântico, que, por serem mais salgadas e pesadas, permanecem mais profundas.
Um experimento simples pode nos ajudar a entender por que a água mais salgada e pesada não se mistura com a menos salgada e leve, diz Torres Valdés à BBC News Mundo.
“Você pode encher um copo transparente até a metade e colocar duas ou três colheres de sopa de sal até que elas se dissolvam e então despejar lentamente a água doce. Você verá que duas camadas de água se formam e é assim que funciona no oceano.”
O que é, então, ‘a atlantificação‘?
A estratificação que mantém separado o gelo das águas quentes do Atlântico está diminuindo em partes do mar de Barents.
“Observamos um aumento na temperatura da água na zona, o que produz um aumento do ritmo do degelo. Isso faz com que a coluna de água mude e uma maior quantidade de água do Atlântico penetre no Ártico. Chamamos isso de atlantificação do Ártico”, diz Gabarró.
O termo “atlantificação” foi usado pela primeira vez em um estudo publicado na revista científica Science em 2017, liderado por Polyakov.
O cientista assinala que nos últimos anos o Atlântico está despejando nas bacias polares águas mais quentes e com maior salinidade do que antes.
E esse fluxo anormal das águas do Atlântico é acompanhado por mudanças na estrutura do oceano, verificadas por meio de boias ancoradas com instrumentos que medem a liberação de calor do interior do oceano para a superfície.
“Temos evidências de que a haloclina está diminuindo no oeste do oceano Ártico”, diz Polyakov.
“E os registros das âncoras mostram um enfraquecimento da estratificação no oceano oriental, na bacia eurasiana, com fluxos mais fortes de águas do Atlântico que impactam o gelo marinho”.
Gabarró explica que “a diminuição da quantidade de gelo marinho na zona do mar de Barents, e no oceano Ártico em geral, aumenta o afluxo de água do Atlântico”.
Um estudo liderado por Polyakov no oceano Ártico oriental e publicado em agosto de 2020 mostrou que as águas quentes do Atlântico estão cada vez mais próximas da superfície.
A pesquisa foi baseada em dados de âncoras oceânicas na bacia euro-asiática do oceano Ártico entre 2003 e 2018.
A profundidade da haloclina varia no oceano Ártico. Nos locais estudados, diz Polyakov, “a posição normal do limite superior da água do Atlântico era antes de cerca de 150 metros.”
“Agora, essa água está a 80 metros de distância.”
Enigma
Os cientistas ainda estão tentando entender o que causa mudanças na estrutura do oceano. O Ártico é um sistema muito complexo, com condições que variam de um lugar para outro.
Por esse motivo, as observações em um lugar não podem ser generalizadas para toda a região, e decifrar as causas, interações ou impacto de qualquer mudança é um grande desafio.
Um fator que pode influenciar o enfraquecimento da haloclina em alguns pontos é a perda de gelo marinho causada pelas mudanças climáticas.
Quando o gelo derrete no verão, ele alimenta a camada de água que está localizada acima das águas mais salgadas do Atlântico. Mas o gelo do mar no fim dessa estação cobre hoje apenas 50% da área que cobria há quatro décadas.
Outro fator importante é o vento, embora seu impacto varie em diferentes zonas do Ártico.
O gelo é como um cobertor que protege o oceano do impacto do vento.
Se essa manta desaparece, os ventos tornam o oceano mais dinâmico, facilitando a mistura das águas e a aproximação das águas do Atlântico à superfície.
Mudanças que são amplificadas
As mudanças no sistema ártico também podem ser intensificadas graças aos mecanismos de retroalimentação.
Uma das mais conhecidas tem a ver com o chamado albedo, a quantidade de radiação solar que cada superfície reflete ou absorve.
O gelo é uma superfície branca, portanto grande parte da energia é refletida. Mas quando ele derrete, a água ocupa o espaço, que se torna mais escuro e absorve mais radiação, o que por sua vez causa mais derretimento.
A liberação anômala de calor das águas do Atlântico pode levar ao derretimento do gelo. E isso poderia, por sua vez, colocar em movimento o mecanismo de retroalimentação do albedo.
“A atlantificação é acompanhada por outras mudanças no Ártico causadas, por exemplo, por anomalias atmosféricas”, diz Polyakov.
Na Missão MOSAiC, quebra-gelo de pesquisa Polarstern, do Instituto Alfred Wegener, na Alemanha, ficou preso no gelo por um ano até setembro de 2020.
Impacto na vida marinha
O impacto da atlantificação no derretimento do gelo pode afetar o ecossistema em níveis fundamentais.
As correntes oceânicas transportam nutrientes dos quais depende o equivalente às plantas do mar, o fitoplâncton, para a fotossíntese.
“As plantas terrestres precisam de minerais e dióxido de carbono para crescer. O que acontece no mar não é muito diferente. Mas, em vez do solo, temos água do mar onde se dissolvem o CO₂ e os sais que contêm elementos essenciais para a vida, por exemplo nitratos, que são um tipo de sais que contêm nitrogênio, ou fosfatos que contêm fósforo”, explica Torres Valdés, que estuda a distribuição de nutrientes no Ártico.
“O gelo derretido pode fortalecer a estratificação da coluna d’água, evitando que os nutrientes (que são mais abundantes nas camadas profundas) se misturem com as águas superficiais (nas quais o fitoplâncton os usa para crescer).”
O Ártico é estratificado porque existem corpos d’água de densidades diferentes, sendo as menos densas em cima das mais densas. A água do derretimento do gelo tem salinidade muito baixa e, quando o gelo derrete, cria uma leve camada de água. Portanto, quanto mais gelo derrete, mais água leve se forma e ocorre mais estratificação.
O fitoplâncton, que é o primeiro elo da cadeia alimentar, é consumido pelo zooplâncton (organismos animais) de que os peixes se alimentam. E esses peixes são comidos por focas que, por sua vez, servem de alimento para predadores como ursos polares ou orcas. Portanto, os efeitos no nível de nutrientes podem reverberar por toda a cadeia alimentar, impactando o ecossistema.
“Muitos organismos se adaptaram ao longo de muitos anos às condições do Ártico e seus ciclos estão intimamente ligados à formação e derretimento do gelo.”
Muitos desses organismos (fitoplâncton, zooplâncton e peixes entre outros) são o nível fundamental do ecossistema.
“Se esses ciclos forem interrompidos, pode haver consequências para todo o ecossistema”, diz Torres Valdés.
Além disso, os cientistas dizem acreditar que devido à atlantificação algumas espécies, por exemplo peixes, podem estar se movendo mais para o norte, impactando espécies locais, com consequências para os animais marinhos que dependem delas para se alimentar.
E espécies mais comuns de peixes no Atlântico podem estar entrando no Ártico.
Um estudo publicado em 2018 constatou, por exemplo, que gaivotas-tridáctilas (Rissa tridactyla), aves marinhas que se alimentam no mar de Barents, incorporaram mais espécies de peixes do Atlântico em sua dieta na última década.
O estudo chama esses pássaros de “mensageiros da atlantificação”.
Sem volta?
Uma das grandes questões que os cientistas ainda não conseguem responder é em que medida a atlantificação poderia empurrar o Ártico para um caminho sem volta, ou seja, uma mudança irreversível.
“A atlantificação é um mecanismo muito eficaz para derreter mais gelo do que se pensava”, diz Polyakov.
“Acho que é possível que a atlantificação possa determinar algum ponto sem retorno na transição sazonal do gelo marinho nesta região.”
E essas mudanças podem ter consequências muito além do Ártico, impactando o clima global e os níveis do mar.
“O desaparecimento do gelo do mar pode afetar não apenas as regiões polares, mas em áreas remotas”, diz Polyakov.
“Por esta razão, a atlantificação pode ser um dos principais mecanismos que está afetando indiretamente as mudanças climáticas nas regiões de latitudes mais baixas”, conclui.
Fonte: BBC