A última década apontou um progresso na criação de áreas naturais protegidas no mundo. Essa é a boa notícia. Mas ainda há um imenso desafio para a década que começa neste ano, afinal, um terço das principais áreas de biodiversidade não possui qualquer cobertura.
Esses são alguns dados do relatório bienal Planeta Protegido, lançado em 19 de maio e elaborado pelo Centro de Monitoramento da Conservação Mundial (WCMC) do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e pela União Internacional pela Conservação da Natureza, que contou com o apoio da National Geographic Society.
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Os dados, que mostram algumas boas perspectivas por um lado, apontam também caminhos para o que ainda precisa ser feito, como ações regionais com políticas públicas integradas para reverter a perda da biodiversidade e o reconhecimento de povos indígenas, comunidades tradicionais e o setor privado na conservação e proteção de áreas. Todo esse esforço visa cumprir as metas de Aichi, estipuladas em 2010, durante a 10º Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica, em Nagoya, na província de Aichi, Japão.
A meta 11 definiu como objetivo da comunidade global proteger pelo menos 17% da terra e águas interiores e 10% do ambiente marinho em todo o planeta nos dez anos seguintes, ou seja, até o ano passado.
O relatório de avaliação mostra que as metas ficaram muito próximas de serem atingidas, com 16,64% de ecossistemas terrestres e aquáticos em continentes e 7,74% de águas costeiras e do oceano já em áreas protegidas e conservadas. Há uma expectativa de ultrapassar as metas, pois muitas regiões ainda não foram reportadas.
Mas o documento aponta que ainda há pouca proteção efetiva dentro dessas áreas e a perda da biodiversidade continua. Isso afeta não somente a fauna e a flora selvagens, mas a qualidade de vida, o acesso à água limpa e a alimentação de populações humanas.
Segundo Neville Ash, diretor do WCMC e editor do relatório, o documento foca em tendências mundiais e analisa o progresso das metas globais, mas pode ser extremamente relevante para as políticas públicas em nível nacional e regional. “Muitos governos assumiram compromissos ambiciosos para expandir suas redes de áreas protegidas e conservadas. O relatório enfatiza que tal expansão será mais eficaz se for direcionada aos locais que mais precisam de proteção e se for acompanhada de boa governança e gestão eficaz”, disse Ash em entrevista por e-mail à reportagem. “O relatório também deixa claro que muitos atores – povos indígenas, comunidades locais e setor privado – já estão contribuindo significativamente para a conservação, embora muitas vezes sem reconhecimento ou apoio formal. Ao trabalhar com esses atores, os governos podem obter melhores resultados para a biodiversidade em nível nacional e global.”
Em outubro, espera-se uma nova reunião na China, a COP-15 da Biodiversidade, onde se estabelecerão novas metas, pós 2020. De acordo com Ash, essas metas futuras precisam considerar tanto a quantidade quanto a qualidade das áreas protegidas para ser eficaz. Também é importante levar-se em conta que as áreas conservadas não impedirão a perda de biodiversidade de forma isolada – “a conservação e o uso sustentável da biodiversidade devem ser integrados nas estruturas de políticas em todos os níveis”, diz Ash.
Áreas protegidas eficazes são aquelas que conseguem integrar formas de gestão e atuação que tragam resultados positivos para a biodiversidade. E o papel dos povos indígenas e comunidades tradicionais teve destaque no relatório.
“Os povos indígenas e comunidades locais são guardiões essenciais da vida na Terra. Conforme apresentado em um relatório publicado logo após a publicação do Planeta Protegido, pelo menos 21% e possivelmente um terço das terras do mundo poderiam estar dentro de territórios e áreas conservadas por povos indígenas e comunidades locais”, prossegue Ash. “Essas são áreas onde os povos indígenas e comunidades locais manejam a biodiversidade há gerações. Elas podem contribuir significativamente para o sucesso de redes de áreas protegidas e conservadas se forem reconhecidas com o consentimento de seus habitantes e fornecidas com as formas adequadas de apoio.”
Geração restauração
Proteger e restaurar são ações que andam juntas. Reconstruir conexões entre unidades de conservação e áreas de grande biodiversidade, criando uma rede que ajude a manter os serviços naturais, contribui para a adaptação climática, ajuda a deter a perda de biodiversidade e reduz o risco de futuras pandemias.
Essa restauração de áreas degradadas é o desafio lançado pela ONU para a próxima década. Neste Dia Mundial do Meio Ambiente, 5 de junho de 2021, a PNUMA e a FAO lançam oficialmente a Década das Nações Unidas para a Restauração dos Ecossistemas.
Os próximos 10 anos serão críticos para a humanidade. Segundo o comunicado da ONU sobre a iniciativa, cientistas identificaram esse período, que também marca o prazo final dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, como “a última chance de evitar as mudanças climáticas catastróficas”.
A cada ano, perdemos serviços ecossistêmicos que respondem por 10% da produção econômica global. Ou seja, caso isso seja revertido, “ganhos massivos nos aguardam”, defendem o diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, QU Dongyu, e a diretora executiva do PNUMA, Inger Andersen, no prefácio do relatório.
Na semana de lançamento da Década, a publicação de um outro documento deve ajudar a apontar os caminhos para essa a restauração.
O relatório Tornando-se #GeraçãoRestauração: restauração de ecossistemas para pessoas, natureza e clima, também da ONU, mostra que a humanidade está usando cerca de 1,6 vezes a quantidade de serviços que a natureza consegue fornecer de forma sustentável – estamos no cheque especial e a degradação já afeta 40 % da população mundial.
Para reverter isso, a conservação sozinha não é suficiente. A restauração de ecossistemas é um dos caminhos, e deve envolver sociedade, políticas públicas e setor privado. A meta é recompor um bilhão de hectares no mundo todo. Os ecossistemas que precisam de restauração urgente, de acordo com o novo relatório, são áreas urbanas, água doce, oceano, savanas, montanhas, florestas fazendas, pastagens.
Novamente, não é só a natureza que se beneficia, mas nossa saúde e economia. O estudo mostra que cada um dólar investido na restauração, pode gerar até 30 em benefícios econômicos. A cada ano, perdemos serviços ecossistêmicos que respondem por 10% da produção econômica global. “Se conseguirmos reverter essa tendência, ganhos passivos nos esperam”, defendem Inger Andersen, diretora executiva do PNUMA, e Qu Dongyu, diretor geral da FAO, no prefácio do documento.
Soluções baseadas na natureza
“Restauração [de ecossistemas] é uma das formas mais explícitas de integrar a conservação da biodiversidade, viabilizando habitats naturais para a ocupação das espécies e incorporando a agenda de mitigação climática, porque a gente garante o sequestro de bons volumes de carbono”, explica em entrevista por telefone a bióloga Aliny Pires, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e uma das coordenadoras executivas da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES). “Ao mesmo tempo em que a diversidade é impactada pelas mudanças climáticas, ela tem um papel fundamental de garantir uma agenda de adaptação e mitigação para o clima.”
Desde 2015, o BPBES produz relatórios temáticos sobre diversos aspectos relacionados à vida natural, desde clima, passando por polinizadores e água. Um deles, produzido em 2018, trata da restauração de ambientes naturais.
“A restauração é capaz de recuperar parte do que foi perdido nesse processo histórico de degradação da biodiversidade brasileira”, defende Aliny. “Ao passo que também cria possibilidades de incluir novas cadeias produtivas, de gerar renda para populações tradicionais, de funcionar como uma atividade chave para o desenvolvimento socioeconômico do país.”
A bióloga conta que, nestes primeiros dias de junho, grande parte dos pesquisadores e pesquisadoras da plataforma estão em intensa atividade, preparando um outro relatório sobre a relação e urgência da conexão entre clima e biodiversidade, que será lançado globalmente pela Plataforma Intergovernamental de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos e o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC.
Observar a realidade hoje, principalmente no Brasil, com cheias históricas no rio Negro, uma forte estiagem no Sudeste, uma seca que se estende há mais de um ano no Sul, índices crescentes de desmatamento na Amazônia, no Cerrado e na Mata Atlântica pode ser desesperador. Mas analisar esses relatórios, frutos do trabalho de pesquisadores incansáveis que lutam para apontar caminhos, é um vento de ânimo. Temos muita coisa por fazer e transformar.
E, nesse quesito, da transformação, cada um pode fazer a sua parte. Que comece a década da restauração.
Fonte: National Geographic Brasil