Era começo de novembro de 2015 quando o lavrador Marino D’Ângelo Junior, morador de Paracatu de Cima, subdistrito de Mariana (MG), ouviu que a barragem de Fundão, depósito de rejeitos de mineração operado pela empresa Samarco, havia se rompido. “Ah, ela está longe, não vai haver problema”, pensou. Foi levar a filha à escola e voltou para trabalhar na horta e cuidar dos bichos. O almoço ainda não estava servido quando a esposa, Maria, começou a receber telefonemas de conhecidos. Aos poucos, o casal foi percebendo que o tal rompimento da barragem era mais sério do que eles haviam suposto a princípio.
Marino buscou a filha na escola e reuniu em sua chácara a mãe, os sogros, a esposa e os dois filhos. Depois daquele dia, a vida da família e de quase todas as pessoas que eles conheciam se alterou drasticamente. Os rejeitos de minério de ferro contidos na barragem rompida se alastraram pela região como um tsunami de lama tóxica e destruíram o que havia pelo caminho. O maior desastre socioambiental do país no setor de mineração fez ruir centenas de imóveis, matou 19 pessoas e deixou milhares de moradores desabrigados.
“Encontramos prevalência de depressão de 28,9% na população de atingidos, cinco vezes mais do que o descrito pela OMS. (…) O transtorno de ansiedade generalizada foi diagnosticado em 32% dos entrevistados, prevalência três vezes maior que a brasileira.”
A casa dos sogros de Marino, a poucos metros da dele, foi completamente destruída, com a lama chegando até o nível do telhado. Quando os rejeitos bateram à sua porta, Marino e família conseguiram fugir para o terreno de um vizinho, que ficava mais ao alto. Logo depois, a luz da região acabou. “Quando a lama chegou, eu estava na cozinha. O cheiro era podre e o barulho, absurdo: parecia um monstro urrando”, conta o lavrador de 49 anos à National Geographic, em conversa por telefone.
Localizada no município de Mariana (MG) e propriedade da mineradora Samarco, da Vale e da BHP Billiton, a barragem de Fundão rompeu em 5 de novembro de 2015. Mais de 32 milhões de m³ de rejeitos de minério de ferro foram despejados no meio ambiente, atingindo o Rio Gualaxo do Norte, desaguando no Rio Doce e chegando ao mar em 22 de novembro daquele ano. Ao longo de 650 km, diversos distritos de Minas Gerais e Espírito Santo foram atingidos.
“O risco de suicídio nesta população é de 16,4%, o que significa que esta parcela dos atingidos revelou já ter pensado, planejado ou tentado suicídio em algum momento da vida. O número é bastante alto.”
“A partir daquele momento, nosso universo estava todo destruído. Não havia mais nossas paisagens, nosso trabalho, perdemos o vínculo com os amigos”, desabafa Marino D’Ângelo Junior. Hoje, o trabalhador rural e a família moram a cerca de 2 km do distrito de Água Claras, em uma casa alugada. Além de ter se tornado diabético e estar hipertenso, Marino acabou desenvolvendo outras doenças nos últimos dois anos. Ele está com transtorno de ansiedade e depressão, e não é o único. “Essa lama não matou apenas 19 pessoas, ela continua nos matando até hoje”, sentencia.
Estudo realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), encomendado pela Cáritas Brasileira, revela que os moradores da região atingidos pela lama apresentam problemas de saúde mental aumentados. A ocorrência de depressão na população de vítimas adultas (maiores de 18 anos), por exemplo, é cinco vezes maior do que a média da população brasileira. O transtorno de estresse pós-traumático, por sua vez, é 12 vezes maior nesta mesma faixa etária de atingidos do que a média da América Latina. O estudo revela ainda a ocorrência de estresse pós-traumático em 82% de crianças e adolescentes afetados diretamente pelo desastre. “É como se a memória da tragédia estivesse sempre voltando”, explica Maila de Castro, médica psiquiatra da faculdade de medicina da UFMG e responsável pela pesquisa.
Foram avaliados pelo estudo transtornos mentais como a depressão, o transtorno de ansiedade generalizada, o transtorno de estresse pós-traumático, o risco de suicídio e transtornos relacionados ao uso de substâncias. A depressão autodeclarada era de 15% antes da tragédia. Contudo, o diagnóstico de agora corresponde ao dobro disso, ou seja, cerca de 30% das vítimas apresentam quadro depressivo. Este número é cinco vezes maior do que a média do Brasil, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2015. Já o transtorno de ansiedade generalizada foi diagnosticado em 32% dos entrevistados, prevalência três vezes maior que a média brasileira.
Outro dado preocupante refere-se ao risco de suicídio nesta população: ele foi constatado em 16,4% dos entrevistados. Para obter este índice, o atingidos tinham que responder “sim” para pelo menos umas das perguntas que avaliavam este tópico — por exemplo, já ter pensado, planejado ou tentado suicídio em algum momento da vida. “O número é bastante alto”, observa Maila, “sobretudo se comparado a dados da literatura médica sobre doenças psiquiátricas”. Segundo o estudo, 4,4% dos atingidos entrevistados haviam planejado suicídio nos 30 dias anteriores à realização da pesquisa.
Maila explica que o estudo é transversal. Logo, não aponta a causalidade. Contudo, ele revela como estes moradores estão agora em termos de saúde mental. A literatura científica sobre catástrofes mundiais, conforme detalha o estudo da UFMG, aponta que distúrbios como depressão e estresse são amplificados em populações impactadas por desastres de naturezas diversas.
“Pés-de-lama”
Coordenado por Maila e Frederico Garcia, o estudo foi conduzido por uma equipe de mais de 60 pesquisadores, que rumou para a zona rural de Mariana em novembro de 2017, dois anos após a tragédia. A coleta de dados, segundo Maila, foi rápida e intensa. “Queríamos minimizar a exposição deles, pois a população já estava bem desgastada”, conta. Para fins de pesquisa, a equipe entrevistou apenas pessoas que tiveram a casa invadida pela lama, nos subdistritos de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Paracatu de Cima, Borba, Campinas, Pedras e Ponte do Gama. Segundo o estudo, mais de 72% dos atingidos entrevistados tiveram que deixar suas casas com urgência após o acidente, enquanto cerca de 70% sentiu que corria risco de vida.
“Essa lama não matou apenas 19 pessoas, ela continua nos matando até hoje. Perdemos nossas paisagens, nosso trabalho, o vínculo com os amigos…”
A equipe abordou cerca de 480 indivíduos, mas apenas 270 foram entrevistados. “As pessoas ainda estão um pouco desconfiadas”, observa Maila. Segundo ela, mais de 60% dos atingidos diz ter sofrido preconceito de outros moradores, já que a mineração era o motor da economia local e, agora, as atividades da Samarco estão paralisadas na região. Por meio da assessoria de imprensa, a Samarco informou que não há previsão de retorno para as atividades e que cerca de um terço do quadro de funcionários da empresa foi dispensado. Esta situação, segundo Maila, tem aumentado o preconceito em relação aos atingidos, já que muitos moradores da região perderam seus salários, e agora são as próprias vítimas que recebem um valor mensal como forma de ressarcimento.
Durante a pesquisa, a equipe da UFMG constatou que a situação entre as crianças atingidas pela lama é bastante crítica. Muitas delas sofrem bullying nas escolas, sendo chamadas, por exemplo, de pés-de-lama. “As crianças voltavam para casa chorando”, conta a pesquisadora. Por conta disso, uma instituição de ensino apenas para os filhos das vítimas foi criada. Nas entrevistas, os pesquisadores puderam notar também o quanto o impacto não-material do rompimento continua a afligir aquelas pessoas. “Eles perderam a sensação de pertencimento”, avalia Maila. “Para o povo do interior de Minas Gerais, estar fora de casa significa muito. Pessoas que nasceram na zona rural foram colocadas na cidade. Perderam horta, cachoeira e toda uma tradição secular de vida”.
Coordenador operacional da Cáritas Brasileira de Minas Gerais, entidade que assessora os atingidos pelo desastre, Gladston Figueiredo diz que o resultado do relatório da UFMG não surpreende os que trabalham diretamente com os moradores da região devastada pela lama. “Nosso convívio com eles no dia-a-dia já havia nos alertado para isso: há muitas queixas por parte deles em relação a estresse e depressão”, observa ele. O estudo da UFMG foi encomendado pela Comissão dos Atingidos e pela Cáritas e os resultados devem munir as vítimas com dados para ampliar o diálogo com o serviço de saúde pública da prefeitura de Mariana e buscar mais políticas públicas específicas para esta situação.
Vidas rompidas
Marino vivia na região atingida pela lama havia mais de três décadas. Nascido em Ouro Preto (MG), mudou-se quando os pais adquiriram um terreno por lá e a família começou a trabalhar com vacas de leite. Conheceu Maria, casaram-se e construíram sua casa ali. Depois do desastre, a Samarco e a defesa civil tentaram hospedá-lo em um hotel na cidade de Mariana, mas ele bateu o pé e disse que não iria. Conseguiu, então ser removido para a casa alugada em Águas Claras, onde está até hoje. A casa é subsidiada pela Fundação Renova, entidade sem fins lucrativos criada para tratar da reparação e da compensação dos problemas sociais e ambientais decorrentes do rompimento da barragem de Fundão.
O estatuto de criação da Renova, chamado de Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), foi assinado pela Samarco, os governos de Minas Gerais e Espírito Santo, e diversos órgão do governo federal, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), e a Agência Nacional de Águas (ANA). O estudo da UFMG mostra que cerca de 85% dos entrevistados reside em domicílios alugados pela Renova. Quando questionados sobre a qualidade da assistência indenizatória recebida pela entidade, 3,5% deles a classificaram como ótima; 28% como boa; 26,7% como regular; 11,6% como ruim e 10,2% como péssima. Mais de 18% dos entrevistados não quiseram ou não souberam responder a esta questão.
“O processo tem sido realmente lento e moroso, e é por isso que as pessoas estão ficando doentes.”
Apesar de ter recomeçado a criar porcos e cabras, Marino sente que sua vida está estagnada, o que agravou o quadro depressivo. “É muito ruim viver em algo que não é seu, a gente não consegue planejar o futuro”, lamenta ele, “estamos vivendo a vida que a empresa impôs”. Para o trabalhador rural, a Fundação Renova está restringindo direitos, em vez de garanti-los. “A empresa quer ganhar tempo. Nossas vidas estão paradas e não há prazo para nossas questões serem resolvidas”.
Informada sobre a porcentagem de insatisfação dos moradores (cerca de 22% classificou a assistência da entidade como ruim ou péssima; e 18% não respondeu à questão), a Fundação Renova argumentou que o processo de reparação é bastante complexo, não só pelo ineditismo das soluções que precisam ser encontradas, mas também pelo ambiente de “alta informalidade” em que o processo se desenvolve. A entidade informa que cerca de 20 mil pessoas são assistidas pelos auxílios financeiros implementados por ela e que R$ 3,6 bilhões foram destinados para ações de reparação e compensação. A entidade se diz empenhada em discutir e encaminhar as ações de reparação com participação efetiva das comunidades impactadas, por meio de reuniões que já contaram com a participação de cerca de 58 mil pessoas.
Por fim, a Renova informa que irá desenvolver um estudo para avaliar a tendência de aumento de transtornos mentais nesta população, incluindo o uso de álcool e outras drogas. O relatório deverá estar concluído em fevereiro de 2019 e seus resultados serão usados para nortear novas ações na área da saúde.
“O processo tem sido realmente lento e moroso”, acredita Gladston Figueiredo, da Cáritas, “e é por isso que as pessoas estão ficando doentes”. Para ele, o rompimento dos padrões de vida dessa população e a falta de perspectiva para uma resolução apropriada faz com que os moradores se sintam enganados, além de o reassentamento ser discutido mais lentamente do que os atingidos gostariam. “Eles dizem que a Renova está empurrando as questões com a barriga”.
Para Marino, os idosos são os que estão sofrendo com a readaptação pós-tragédia. “Eles passaram a vida inteira naqueles lugares e agora são obrigados a morar na cidade”, relata. O lavrador conta que, quando a lama ainda estava “fresca”, todo dia tinha um repórter na região. Mais de dois anos se passaram e ele teme que a causa seja gradativamente deixada de lado. “É muito triste ficar brigando pra conseguir ter sua vida de volta”.
Fonte: National Geographic