Mal podia acreditar que estava andando na água. Um finíssimo espelho refletia as nuvens abaixo dos meus pés descalços. Poderia ser lindo, mas era simplesmente perturbador. À medida que eu caminhava, o chão se metamorfoseava em um deserto insalubre. Parecia lama branca, depois virou uma areia densa salpicada com um pó brilhante finíssimo. O odor era insuportável, fruto da mistura de elementos químicos com matéria orgânica em putrefação. O lago Poopó já foi o segundo maior da Bolívia – tem quase três vezes a área da cidade de São Paulo – e hoje é um cenário árido e sem vida. Perdeu toda a sua fauna. De tempos em tempos eu via algumas manchas cor de rosa enterradas a uns cinco centímetros abaixo do solo – eram penas de flamingos em decomposição, resquícios da vida que um dia esteve ali.
O senhor Silvério Rios Choque me leva até um pequeno barco de pesca que se desmanchava sob o Sol, encalhado a 2 km de sua casa. “Se andarmos mais meia hora, encontraremos outros barcos naquela direção”, me conta com uma voz profunda, falando em espanhol misturado com quéchua. “Certo dia o lago secou completamente. Era a fonte de alimento e sustento dos meus pais e dos pais dos meus pais. E hoje não há nada. Não há mais vida para a gente.”
A imagem do senhor Silvério caminhando parecia uma passagem bíblica – um conto sobre tempos de mudança e de pragas que pairam sobre a condição humana. Mas não. Era apenas um dia normal em um planeta mais quente. O lago anualmente tenta se restabelecer com tempestades rápidas que castigam a região, mas nunca suficientes para elevar a água aos níveis originais. Os pescadores viram a margem ir embora e as mineradoras que exploram prata e estanho se aproximar. Os rejeitos de grandes usinas seguem muitas vezes direto para a água. É como se fossem barragens como a de Mariana ou de Brumadinho, só que tudo indo lentamente para o lago, sem tratamento. O Poopó já chegou a ter 6 metros de profundidade e hoje é um deserto contaminado graças ao assoreamento aliado às altas temperaturas e a exploração descontrolada da agricultura e da atividade industrial. Um genocídio ambiental, que matou os peixes primeiro e, depois, envenenou as aves que os consumiram – um nítido exemplo de como a ação antrópica pode destruir um ecossistema. Fiquei refletindo sobre como a etnia uru consegue resistir mesmo com sua população jovem migrando para cidades maiores e deixando, muitas vezes, idosos em uma situação de miséria.
Enquanto nas grandes cidades sentimos as ondas de calor inclementes e enchentes fora de temporada, nas comunidades rurais isoladas mundo afora a menor variação do clima exerce um impacto significativo nos regimes pluviais e hidrológicos. Na prática, isso impõe um regime de adaptações sem aviso prévio a povos rurais que sempre tentaram compreender o mundo natural e viver em harmonia com ele, respeitando-o e extraindo o suficiente para sobreviver e conservar.
Quando deixei a região do lago que não é mais lago, passei pelo vilarejo El Choro. Vi um casal carregando baldes de água em um carrinho de construção. Eu sorri, acenei e eles acenaram de volta. Os jovens Wilson e Nely Requena vivem em uma pequena casa de esquina. O que era para ser uma conversa rápida se tornou um momento intenso de confissão entre estranhos sedentos de contato humano. Wilson me conta como é difícil viver com pouca água, em condições extremas, tentando driblar as adversidades de uma vida cheia de limitações. As interferências políticas e disputas entre os líderes comunitários, ele diz, mais atrapalham do que ajudam as pessoas. Caminhamos em sua horta orgânica enquanto Wilson me mostra como criou um sistema de irrigação. Ele faz furos pequenos com uma agulha em garrafas de plástico e as enterra no solo cheias d’água. Assim, no ritmo lento da gravidade, o mecanismo fornece uma pequena plantação que lhe garante alguns vegetais. Eu digo que é a sabedoria da água. Ele comenta: “A necessidade é a melhor amiga dos humanos”.
O que acontece com esse minguante lago no país mais pobre da América do Sul, tem paralelos em diversas outras partes do planeta, como nos lagos Urmia – no Irã –, Aral – no Uzbequistão – e, também, Mar Morto – entre Israel e Jordânia. O Mar Morto é um lago dez vezes mais salgado que o oceano e fica no ponto habitável mais profundo do planeta, chegando a 430 metros abaixo do nível do mar. Seu principal contribuinte, o Rio Jordão, é sagrado para metade da humanidade, mas 96% de sua água doce já foi desviada para uso doméstico por Israel, Jordânia e Síria. O vale onde Jesus foi batizado também sofre com um clima mais quente. Como consequência, a enorme lagoa salgada recua 1,3 metros ao ano, segundo o Banco Mundial.
Em recessão
O encolhimento das bordas do Mar Morto é visível a olho nu, sendo possível perceber as variações mensalmente, me conta um morador da região. Enormes buracos e erosões no solo surgem do dia para a noite – perigos para pessoas e animais. Casas, hotéis e empresas simplesmente se mudam ou são engolidas pelo chão. Falta de água e o aumento da temperatura são a principais preocupações. O rio Jordão é a principal fonte de água fresca para a Jordânia e já foi 4 vezes mais volumoso do que é hoje. “O Mar Morto é um lago salgado notável, cheio de minerais, que testemunhou a herança humana e agora encolhe mais de um metro por ano”, me explica Eshak Al Guzaa, gerente nacional de projetos da organização EcoPeace Middle East. “As bacias hidrográficas estão sendo superexploradas, com uma taxa de bombeamento que varia de 150% [da capacidade] em aqüíferos menores a 210% nos grandes. O desafio da mudança climática está patrocinando nosso fracasso na gestão da água.”
Eu queria testemunhar a lenta morte do Mar Morto e foi assim que cheguei até o extremo sul do vale do Jordão, onde o mar desapareceu por completo dando espaço a uma planície ardente e salgada. Entrei na casa de Um Khaldoun, uma mulher sorridente que tem 11 filhos e estava grávida do 12º. Sua cozinha é anexa ao único banheiro que tem na casa, o que fazem os cheiros de comida e esgoto se misturarem no ar. Com um pouco de água num balde, ela esfregava o chão com seu filho. A luz do sol entra pela janela e deixa o final do dia mais quente e mais triste pra mim. Khaldoun fala pouco mas reclama que cobras começaram a surgir depois que covas de um antigo cemitério ao lado de sua casa se transformaram em ninhos. Hoje ela vive de ajuda de vizinhos, que doam um pouco de água quando possível. Resiliente, ela me parece ser o retrato da mulher do Oriente Médio: forte e íntegra, um rosto para representar a humanidade, que, limpando o suor dos olhos, me dá uma discreta ideia do que seria viver naquelas condições. A vida não é fácil quando se mora no ponto mais baixo habitável da Terra.
Ghor Mazra-a é uma pequena vila de casas escuras de onde ainda conseguimos ver, ao longe, uma linha azul do que resta do Mar Morto. Entrei em uma casa onde moram 25 pessoas. Os simpáticos irmãos Jafar e Amir puxam cadeiras de plástico para mim e para o meu tradutor de árabe. Os sorrisos de boas vindas vão mudando para um tom mais realista depois que tomamos o tradicional chá vermelho. Eles me mostram como guardam a água em galões para beber e me contam que o governo disponibiliza caminhões-pipa duas vezes por semana. É um estresse enorme gerenciar água para tudo e para todos. Naquele dia, o tanque de reserva estava vazio. “Quando acaba, pegamos mesmo das piscinas de irrigação. Sim, sabemos que é suja”, dizem, apontando para uma cratera no meio da areia coberta com um plástico preto para reter água. Vejo um outro homem se abaixando para bebê-la. O senhor Ahmed olha para mim com canto dos olhos mas não se incomoda com a minha foto. “A situação aqui vai muito mal”, ele comenta. Conto para Jafar que tenho viajado muito para documentar famílias que sofrem com a falta d’água e ele me pergunta: “Por acaso existe algo pior do que isso aqui?”. Silêncio. Minha cabeça vai longe, lembro do Brasil, meu país, mas não consigo deixar de pensar na Etiópia.
Os baldes amarelos
Cruzei a Etiópia de sul a norte pela segunda vez para documentar histórias da água no começo de 2020. A Etiópia é emblemática para nos ensinar sobre o que acontece no mundo – trata-se do segundo país mais populoso da África e da nação com menos água potável disponível por habitante. Pela característica climática, geográfica e populacional, é na Etiópia onde podemos ter uma dimensão visual do que é viver com pouco, aproveitando apenas o se que tem naquele dia. A água é a agenda diária da grande maioria das mulheres e crianças. Para onde quer que olhemos, há alguém com um galão de plástico amarelo nas costas.
A economia etíope é baseada na agricultura. Cerca de 86% da população é formada por agricultores rurais. A região sul do país é uma amostra do que foi a África antiga. As tribos do vale do Omo, ao sul, isoladas e culturalmente preservadas, são um exemplo de como o homem vivia em compromisso com a vida, praticando a caça e a coleta e, depois, a agricultura e a pecuária. Pouco mudou, mas nos últimos 20 anos a região foi invadida por uma enxurrada de turistas. Celulares, carros modernos e redes de energia dão um tom interessante para um lugar que obriga o passado a coexistir com o futuro. As tribos estão se adaptando cada vez mais às tecnologias e às possibilidades trazidas pelo governo, por pesquisadores e ONG’s. Em algumas comunidades da etnia hammar, por exemplo, os buracos em rios que são cavados à mão nas épocas secas para procurar uma linha barrenta de água para beber, agora estão dando lugar a cisternas que captam águas de chuvas, a partir de grandes terraços que são construídos em áreas abertas. Eu já tinha visto sistemas parecidos em diversos locais no mundo, inclusive no semi-árido brasileiro.
Visitei o vilarejo Bita Gelefa e o nível da água estava tão baixo que as pessoas se revezavam, entrando uma de cada vez, em uma pequena abertura por uma escada até o fundo de um tanque de chuva, pegando de dez a 20 litros por vez. Desci junto e testemunhei o martírio diário de mulheres como Bona Arbane, 32 anos, cujos músculos dos braços brilhavam cheios de veias, num ambiente reluzente como num cenário de teatro – trágico e literário, onde um pequeno capítulo de crise hídrica se manifesta em silêncio. A subida com o galão na mão em uma escada de ferro é uma operação inimaginável, que exige equilíbrio e muita força. Algumas repetem a operação quatro ou cinco vezes ao dia. Ao saírem descalças do ambiente úmido, o desafio é evitar os escorpiões que se acumulam em volta do buraco da escada – uma delas me mostra um que havia acabado de matar. Um pequeno problema leva a outro, e toda a cadeia de demandas hídricas cria desafios não ditos que jamais podemos saber. Na caminhada de volta, do alto de uma colina amarelada, pude ver uma estrondosa nuvem com bilhões de gafanhotos – um toque apocalíptico e inesperado para um fim de dia que eu jamais vou esquecer.
O que me comoveu foi testemunhar como as comunidades rurais vivem das mesmas práticas há incontáveis gerações, transferindo conhecimento de pai pra filho, no ofício de ler, lidar e sobreviver com as regras e desafios da natureza que rege a vida em meio a planícies e montanhas. Nada passa despercebido para os agricultores – cada linha de água no solo tem o seu valor, toda sombra é aproveitada. Onde houver uma grande acácia, também haverá uma colmeia artificial em que as abelhas podem acolher seu mel. Os animais domesticados são respeitados e as pessoas trabalham. Muito. Não existe calor ou chuva que tire os agricultores de sua labuta – é emocionante ver tanta gente trabalhando juntas, enquanto há alguma luz do dia. O campo não para, os turnos parecem não ter fim.
“Os agricultores de terras altas da Etiópia dependem de um sistema alimentado pelas chuvas. Eles confiam nas chuvas bimodais que estão por vir. O período mais chuvoso entre julho e agosto é o que traz esperança para deixar as encostas verde claras e fazer com que a colheita mantenha a família”, explica Lemlem Sissay Fetene, consultora internacional na Divisão de Alimentos e Nutrição do Departamento de Agronegócios da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento Industrial (Unido). “A esparsa chuva da primavera traz apenas o suficiente para germinar as sementes e obter ciclos curtos. As chuvas são cada vez mais irregulares, o que torna os agricultores vulneráveis e desafia a sustentabilidade de seus meios de subsistência.”
A grande maioria dos agricultores etíopes vivem em função da ecologia, não trazem nada de fora, como sementes, nutrientes e pesticidas. Também raramente irrigam o solo – deixam que as chuvas façam isso. Eles observam a natureza e fazem as previdências para atender suas necessidades, mas pequenas variações na temperatura média mudam também os hábitos das plantas, bactérias e insetos. Quando a água vem em tempestades rápidas existe a impressão que há muita água disponível. No entanto, apenas uma pequena parte dela pode ser captada – é como se não houvesse nada.
No extremo norte da Etiópia, fui de carro de Lalibela até Mekele, um panorama campesino entrecortado de pães de açúcar com plantações que sumiam no horizonte repletos de trabalhadores em diligências puxadas por bois e uma infinidade de casinhas, ora esculpidas em esterco de vaca, ora de madeira coloridas. No meio de tudo isso, pequenos filetes de água ainda fluíam em meio a um calor escaldante. Alguns eram apinhados de gente agachada em volta. As mulheres com jarros de plástico buscavam água para as necessidades da casa, para beber e para fazer o prato tradicional etíope, a ingera. Crianças sempre corriam em volta, sorrindo, brincando, também carregando sua cota menor de água, dando uma música ao cenário de tirar o fôlego que se desenhava diante de mim a cada curva. Foram 12 horas dirigindo e não vi o tempo passar, pois me sentia abraçado pelo ambiente em aparente harmonia entre seres humanos e natureza. Mas algo não me parecia certo – havia alguma tensão no ar.
Um frio começou a se pronunciar ao cair da noite em Mekele, uma cidade inesperadamente grande, barulhenta, cheia de caminhões, edifícios e universidades. De lá eu chegaria mais adiante ao ponto mais baixo da África, a depressão de Afar. Dali pra frente, portanto, seria só descida. E então calor, muito calor. É a maior média de temperatura do planeta. Nesta noite eu dormi sob as estrelas, tentando repassar na minha memória tudo o que eu havia vivido até então. Quando o sol despontou no horizonte, comecei a ver as pessoas carregando galões nas costas no quadro que se formou entre os meus pés. Na estação seca, quando não há uma bomba para sugar o subsolo, a única alternativa é sair caminhando. Eu perguntei onde as pessoas encontravam água, e alguém apontava o queixo na direção do horizonte onde não havia nada. A região é erma, não fosse alguns grupos de turistas chineses e europeus indo fotografar a deslumbrante paisagem amarela-esverdeada de enxofre de Dallol ou o vulcão cuspindo um rio de magma em Erta Ale.
Eu estava em um 4×4 e a minha peregrinação pela água seguia rápida pelas beiradas das estradas empoeiradas, numa paisagem marciana, onde pedaços de tendas do ACNUR, órgão de refugiados das Nações Unidas, eram reutilizados para moldar uma moradia pequena, redonda, que geralmente abriga dez pessoas ou mais. Havia centenas delas pelo caminho. Após três semanas fotografando a Etiópia, no último dia antes de voltar para casa, tive uma oportunidade sublime de entender mais sobre a rotina dos habitantes de Afar nesta região infecunda, caminhando com duas mulheres até um imenso cânion em busca de água. Elas estavam tímidas e um pouco incomodadas com a presença da minha câmera. Andamos por cerca de uma hora entre paredões imensos, verdadeiras montanhas. E então, um filete de água brotou do cascalho no chão. Era tudo o que sobrou do rio naquela estação do ano. Elas se agacharam e, com uma garrafa pet cortada, recolheram pacientemente 20 litros de água cada uma. Não teve conversa, nem sorrisos, nada. Silêncio absoluto. Antes de terminarem, usaram a água corrente para lavar os pés e os rostos antes de seguir o longo caminho de volta.
Érico Hiller é fotógrafo colaborador de National Geographic. Atualmente trabalha em um longo projeto sobre a crise hídrica ao redor do planeta que contará com um livro, a ser lançado em outubro de 2020, e um documentário longa-metragem dirigido por Lucas Bogo, que sairá em 2021. Conheça seu trabalho no Instagram.
Fonte: National Geographic – Érico Hiller